A BERMA DA ESTRADA
Gosto infantilmente de saborear o jogo de equilíbrio numa berma de
estrada, fazendo tentativas primárias para o conseguir, ali perto junto ao
prédio onde moro. Alinho os pés concentrados nas pedras do lancil, procurando
não descair o pé no alcatrão, e marcho como que em sentido, sem tropeções nem
desalinhos. Conquistando o meu sentido firme e a marcha coordenada, dou por mim
a distrair-me com as poeiras luminosas no ar junto ao meu nariz, à minha volta,
num feixe de pequeninos insetos, que se deslocam em direção à esquina do
quarteirão. Continuo a imaginar-me senhora de mim no arame do trapézio. Então
aventuro-me e ergo a cabeça para ver um pedaço de céu da minha rua e dou conta
de um pássaro de asas bem abertas em contraluz, num azul meio aberto na
claridade tímida do sol madrugador ainda quente de setembro. Este ano o calor
está a agraciar-nos com a sua demorada despedida. A solidão do frio invernoso
não é muito apreciada por estes lados da margem sul costeira, amantes, como eu,
do estio macio e dialogante. Até na cidade, ou nestas suas imediações urbanas,
as fileiras de prédios incaracterísticos se deixam namorar pelo brilho e pelo
esvoaçar dos pombos e dos pardais nos beirais.
Um canto finamente melodioso dos madrigais de folha caída é o chilreio dos
melros, eternos encantadores de gente madura nos sonhos peregrinos e
campestres. Há pedaços nítidos da madrugada nas esquinas das pracetas. Alguns
carros demoram-se, espantados com o espetáculo natural refletido no sapal. Espelhos
matizados de água num desenho genesíaco de céu nascente. Rasgos violáceos e
rosa perfurados pela boca estelar de brilho amarelado.
De pasta na mão, salto do passeio e olho as horas. Apresso-me. Esqueci-me
de abrir o vidro para sentir a brisa fresca e aromática da alvorada. Espero.
Desfruto por breves instantes do silêncio abafado na viatura, como se eu tivesse
desligado o volume da vida no exterior. A minha mente acompanha o silêncio. Só
o zunido latente dos estalidos atómicos em movimento no espaço e do fluxo vital
do meu corpo. Reconheço este momento. Costumo saboreá-lo ao fim da tarde,
quando me disponho a ausentar-me, a suspender-me do ruído. Mas logo me decido a
abrir o vidro do carro para saudar o rei Sol e embalar-me no êxtase da oração
matutina: «obrigado por mais um dia».
Conduzo-me e reparo nas bermas da estrada. Estão a precisar de um bom
calceteiro. Ocorre-me o restaurante que havia aqui perto que servia um apreciado
frango de cabidela… Há muito tempo, no tempo em que eu comia animais. Foi n´«O Calceteiro» que comuniquei a um casal amigo
a minha primeira gravidez. Tinha de deixar em breve o cigarro. Conseguiria
aguentar os sacrifícios? Teria de deixar de sair nas manhãs de sábado para tomar
a meia de leite no café do senhor Zé?
Preocupações minúsculas. Mas vivia
então o medo de perder hábitos. De não sentir vontade de imitar os
equilibristas à beira do passeio calcetado. E também de caminhar em cima dos
muros e de me empoleirar nos marcos de pedra. E de espreitar às janelas baixas
das casas e imaginar quem lá vivia. O que é que nos faz esperar confiantes pelo
melhor momento do dia? Decerto o serão em família.
Quando virão as primeiras chuvas?
4 de outubro/2011
Rosa
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