sábado, 28 de julho de 2012


A BERMA DA ESTRADA

   Gosto infantilmente de saborear o jogo de equilíbrio numa berma de estrada, fazendo tentativas primárias para o conseguir, ali perto junto ao prédio onde moro. Alinho os pés concentrados nas pedras do lancil, procurando não descair o pé no alcatrão, e marcho como que em sentido, sem tropeções nem desalinhos. Conquistando o meu sentido firme e a marcha coordenada, dou por mim a distrair-me com as poeiras luminosas no ar junto ao meu nariz, à minha volta, num feixe de pequeninos insetos, que se deslocam em direção à esquina do quarteirão. Continuo a imaginar-me senhora de mim no arame do trapézio. Então aventuro-me e ergo a cabeça para ver um pedaço de céu da minha rua e dou conta de um pássaro de asas bem abertas em contraluz, num azul meio aberto na claridade tímida do sol madrugador ainda quente de setembro. Este ano o calor está a agraciar-nos com a sua demorada despedida. A solidão do frio invernoso não é muito apreciada por estes lados da margem sul costeira, amantes, como eu, do estio macio e dialogante. Até na cidade, ou nestas suas imediações urbanas, as fileiras de prédios incaracterísticos se deixam namorar pelo brilho e pelo esvoaçar dos pombos e dos pardais nos beirais.

   Um canto finamente melodioso dos madrigais de folha caída é o chilreio dos melros, eternos encantadores de gente madura nos sonhos peregrinos e campestres. Há pedaços nítidos da madrugada nas esquinas das pracetas. Alguns carros demoram-se, espantados com o espetáculo natural refletido no sapal. Espelhos matizados de água num desenho genesíaco de céu nascente. Rasgos violáceos e rosa perfurados pela boca estelar de brilho amarelado.

   De pasta na mão, salto do passeio e olho as horas. Apresso-me. Esqueci-me de abrir o vidro para sentir a brisa fresca e aromática da alvorada. Espero. Desfruto por breves instantes do silêncio abafado na viatura, como se eu tivesse desligado o volume da vida no exterior. A minha mente acompanha o silêncio. Só o zunido latente dos estalidos atómicos em movimento no espaço e do fluxo vital do meu corpo. Reconheço este momento. Costumo saboreá-lo ao fim da tarde, quando me disponho a ausentar-me, a suspender-me do ruído. Mas logo me decido a abrir o vidro do carro para saudar o rei Sol e embalar-me no êxtase da oração matutina: «obrigado por mais um dia».

   Conduzo-me e reparo nas bermas da estrada. Estão a precisar de um bom calceteiro. Ocorre-me o restaurante que havia aqui perto que servia um apreciado frango de cabidela… Há muito tempo, no tempo em que eu comia animais. Foi n´«O Calceteiro» que comuniquei a um casal amigo a minha primeira gravidez. Tinha de deixar em breve o cigarro. Conseguiria aguentar os sacrifícios? Teria de deixar de sair nas manhãs de sábado para tomar a meia de leite no café do senhor Zé?

   Preocupações minúsculas. Mas vivia então o medo de perder hábitos. De não sentir vontade de imitar os equilibristas à beira do passeio calcetado. E também de caminhar em cima dos muros e de me empoleirar nos marcos de pedra. E de espreitar às janelas baixas das casas e imaginar quem lá vivia. O que é que nos faz esperar confiantes pelo melhor momento do dia? Decerto o serão em família.

  Quando virão as primeiras chuvas?               
          4 de outubro/2011  
            Rosa                                                                                                                                                                       

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