sábado, 28 de julho de 2012

tralhas sob telhas


                                                           TRALHAS SOB TELHAS


   Disperso o olhar pela leve renda de teias de aranha entre os pedais das bicicletas penduradas na marquise de cabeça para baixo. São restos de memórias da infância dos nossos rapazes, quando alinhávamos uns quantos carrinhos em miniatura, uns dinossauros de plástico e outros animais, numas prateleiras de madeira feitas cá em casa. Uma espécie de sótão na marquise do lado da rua principal, se é que a importância da rua neste dormitório também conta. Amontoados num cesto de verga escurecida pelo tempo, os cabos da única máquina de filmar cá de casa, que era um ritual a ligar à tv. E víamos as filmagens mais recentes; as primeiras: um campo de papoilas a perder de vista num largo pasto rente à estrada que levava ao tanque da água. A câmara aproximava-se para fazer experiências de pequenos planos e de câmara fixa. A Primavera alindou-se para a gravação. Uma ou outra figura humana aparecia para atestar a autoria e a propriedade do equipamento. Mas o registo não foi só experiência; converteu-se num tesouro memorialístico dos piqueniques em família na Tapada da Ajuda, onde a família se reunia em três gerações, todas saudáveis e convivas, em comunhão com a livre vegetação recetiva à nossa presença, com pinhas e pinhões, figos de piteira, caudas de cavalos a sacudirem as moscas, a égua Boneca que edificava um pescoço reluzente para a erva seca junto da cerca, os porcos pretos a grunhirem ao sol, a vozearia distante da rapaziada que jogava rugby no campo próprio e que era regado por uma geringonça de vários repuxos.  

   Inclinada sobre o biombo reparo na esteira de campismo enrolada com guita que muito teria para contar, em especial sobre as noites escutistas, auscultadores médios quebrados, barbatanas de bodyboard a espreitarem, caixas vazias de equipamento diverso à espera de uso, um aspirador semi-industrial com um laçarote de oferta (brincadeira de despedida de solteiro), em contraponto com os sinais de decoração recente a ambicionar um espaço de lazer de jardim exíguo, com modos de inteletualidade e convívio.

   Não fosse esta contração no estômago de quem sente um tempo a distanciar-se do olhar, nem este texto teria sido pensado. Sempre que aqui me sento, olho desprendidamente a marquise à minha frente, que agora me está a abafar. Daqui, cheia de momentos neste espaço, é como se sentisse um princípio de despedida, talvez de mim, de quem eu era quando convivia com os sentidos de um outro tempo, nesta casa, a partir desta casa, neste casulo de humanos em gestação permanente. Tomara que fosse eu já uma mariposa preparada para voar. Que quisesse regressar (ainda sinto raízes). Desanuvio o ventre respirando profundamente. Tenho de trocar de roupa para ir trabalhar.                                                  
                                                                                              20 de Setembro de 2011

                                                                                                          Rosa Duarte

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