OS PROFESSORES TAMBÉM
LEEM
Os professores também leem. Esta asserção, aparentemente de
mérito, é uma discreta insinuação, na qual tropecei e não pude deixar de me
interrogar pelo uso da conjunção aditiva também
que pressupõe que os não professores são leitores assíduos e os docentes,
principais agentes educativos, lá vão praticando a leitura mais por dever do que
por gosto pessoal. Esta farpa arremessada, calculo que por um cidadão anónimo mordaz,
interpreto-a de duas maneiras. A primeira, porque ainda se questiona a instrução
distinta dos professores, que sabemos são hoje em dia praticamente todos licenciados.
Com licenciatura de crédito, presume-se. Logo, com (muitas) leituras feitas,
necessariamente. E provas diárias dadas. A segunda, porque se trata de uma
classe profissional tão díspar nas suas áreas de formação e de interesses que
haverá alguns, segundo esses olhares mais críticos, que pouco se dedicam à
leitura metódica. Estarão em causa livros de cultura geral e de diferentes
áreas. Estará também, com certeza, em causa a atitude genuína do amor pelo
livro. Um nome ainda a criar do tipo «filobiblia». Já para não falar da
bibliofilia, cuja versão mais pro comercial serão certos alfarrabistas das
nossas bairristas localidades.
Será a «filobiblia» essencial para educar para a cidadania? Serão
os professores intelectuais os mais admirados pelos alunos?
E não incluo aqui a leitura assídua de periódicos que
exigiria uma reflexão profunda distinta, por gente com experiência para tal,
nos lugares próprios, como na Conferência dos 15 anos do Setúbal na Rede do passado dia 5 de janeiro. Até porque hoje em dia
os jornais já se encontram praticamente postos nas mãos (ou nos olhos) dos seus
consumidores, antes mesmo que cada leitor se decida a pensar neles. Segundo a
experiência do jornalista José Mendes, que participou na referida conferência,
apesar da crise socioeconómica dos Media,
estes nunca estiveram tão presentes na vida dos cidadãos. Há crise, mas também
há mudança de paradigma.
No caso dos livros, embora alguns já se encontrem disponíveis
online, (ainda) implicam investimento
de procura e de dinheiro.
Não obstante recentes estudos revelarem que a docência é uma das
atividades profissionais mais apreciadas, pelo seu reconhecido empenho
pedagógico e social, continua, no entanto, a ouvir-se recorrentemente que
muitos professores são uns chatos e que não sabem motivar nem ensinar os
alunos. Serão estes, os chatos, os que leem pouco, nomeadamente sobre as novas
abordagens pedagógicas para uma Educação de sucesso? Ou são as ações de
formação, creditadas ou não, e a troca de experiências personalizada que mais ajudam
ou ajudarão os professores na sua prática letiva e nas atitudes para os valores,
bem como na seleção dos melhores métodos didáticos para cada um? Claro que qualquer
uma destas questões tem sido suficientemente abordada por um espectro alargado
de estudos e opiniões, umas mais esclarecedoras do que outras, umas mais atuais
do que outras, realidades a compartilhar e descobrir, bem como uma infindável
lista de bibliografia diversa, alguma dela com suficiente interesse. Salvaguarda,
desde já, para o segredo do sucesso educativo que depende, em muito, da
capacidade de cada profissional responder ao grande desafio que é a prática do
dia-a-dia escolar com todas as idiossincrasias de cada aluno, de cada grupo, na
sua escola e naquele meio. Os bons profissionais não se fazem sozinhos…
Em boa verdade, alguma coisa tem sido feita em prol da
Educação nas últimas décadas no que toca ao incentivo ao livro. A prática de leitura
dos adolescentes e dos jovens tem aumentado. Ainda num certo ângulo de
liberdade e participação social. Mas é com satisfação que circulo nas livrarias
da Margem Sul e de Lisboa, sobretudo, e vejo malta nova a folhear livros de
matérias diversificadas e de se dirigirem aos pais e amigos num discurso que
espelha o seu interesse pelo domínio da nossa admirada ferramenta linguística.
Os agrupamentos e demais instituições, com a escolaridade obrigatória, têm um
universo estudantil mais heterogéneo. Sobretudo aqueles que se localizam num
meio social multicultural e, por vezes, socioeconómico problemático. O respeito
e o intercâmbio são indispensáveis. Por isso, todos os contributos são
bem-vindos. E o ato da escrita disciplina o pensamento e o uso da palavra. E
questiona a ação própria e do outro. As razões para nos equivocarmos são
muitas, como dizia Freud.
O bom livro é gerado com esforço e generosidade. Dá ânimo e
satisfação a quem escreve e a quem lê. E a quem o vende. É um parceiro
inseparável dos educadores. Por isso, continua a fazer sentido manterem-se as
leituras integrais de obras literárias e não literárias nos programas
disciplinares curriculares de todos os anos de escolaridade até ao 12º ano. Com
eventuais reformulações periódicas, naturalmente. E certas iniciativas que
também têm implementado os contratos com os alunos no âmbito das orientações do
Plano Nacional de Leitura. Leituras extensivas a partir das escolhas do aluno,
num leque variado de categorias. E também, por exemplo, trabalhados num espaço
de opinião individual, de cinco minutos no início da aula, que também pode e
deve incluir os Media.
Não obstante o uso crescente das novas tecnologias, o
fenómeno do acolhimento do livro convencional continua surpreendente. É certo
que a informatização simplificou e economizou o processo de edição, e até de
uma forma ainda quase inédita em Portugal, segundo nos explicou Nuno Ribeiro no
passado dia 5 em Setúbal. Mas o livro encadernado ainda continua a ser
indispensável, e a ser apreciado, até pelo mais ferranho cibernauta. O próprio
Nuno Ribeiro quis ver em formato papel o seu livro intitulado Digital, que parece ser bastante
elucidativo sobre estes avanços tecnológicos imparáveis. Alguns são a baixo
custo. De alargada distribuição e cómodo acesso. Com encomendas de confiança, também
via internet. De facto, não há desculpas para não ler. A não ser o
analfabetismo, que, felizmente, é cada vez menos. Ou a falta de tempo, mas esse
nem que se roube a tarefas inglórias como aquela de repisar mentalmente vezes
sem conta as chatices do dia.
Um dos livros interessantes, por exemplo, a ler sobre
educação, mesmo não sendo recente, é um cuja tradução portuguesa tem por título
Aviso aos alunos do ensino básico e do
secundário do escritor e filósofo belga Raoul Vaneigem (Antígona: 1995). Eu
já conhecia a Internacional Situacionista dos anos 60 que aspirava a grandes
transformações sociais e políticas. Com todas as suas valências e controvérsias.
Mas vale a pena recordar a proposta educativa deste escritor, pelo seu vigor
combativo e audaz. Uma reflexão corajosa sobre a educação e os modelos
pedagógicos, embora nem sempre consensuais. Apesar do raking das escolas e dos polémicos valores subjacentes condicionarem
muito a rebeldia dos nossos jovens, o sentido crítico destes continua atuante e
revela-se na proximidade cúmplice com os seus professores e educadores.
Não obstante as virtudes nas recentes reformas do ensino e
dos esforços de uns quantos professores para educare, no sentido latino de trazer à luz a ideia ou
filosoficamente fazer a criança passar da potência ao ato, da virtualidade à
realidade, sabemos que tal não passa pelo aumento do número dos alunos por
turma. Ou pela falta de psicólogos e animadores culturais. Ou pela ausência de
espaços próprios para os alunos permanecerem e interagirem, como uma sala de
alunos, uma rádio escolar, alguns entretenimentos, um palco.
Decidir oferecer um livro é um bom sinal de aprendizagem do
ser humano. Do aluno e do professor. Um, por exemplo, com apenas 84 páginas e encontrado
numa banca de livros de rua. Porque hoje o leitor pondera antes de comprar. Num
tempo em que o orçamento é escasso. Cada vez mais. Mas sabe que a cultura
também precisa do seu apoio e de espaço de respiração no implacável mercado
económico.
A verdade, mesmo que dura, é preferível, logo boa e intemporal.
Como esta: um bom livro ajuda sempre a (re)pensar. Mesmo que a sua proposta de
mudança pareça demasiado radical para a sociedade em que vivemos. Que soe a utopia.
Ou balizada por uma época de ousadas propostas ideológicas. O caso do citado livro,
escrito segundo a experiência e a vivência do seu autor, em muitos aspetos mantém
a atualidade e apresenta-nos alternativas a uma realidade tão bem conhecida.
“Pois não tem até hoje obedecido a empresa escolar a esta preocupação
dominante: melhorar as técnicas de domesticação com vista a que o animal dê
lucro?” (p.10)
Este tom de crítica do autor é incisivo e de ultimato à Escola,
pois apenas se pauta pelo infortúnio da incerteza no futuro e pelo poder político-económico,
em vez de viver para o que cada um deve valorizar nas suas capacidades ao
aprender e gostar de compreender e construir. “Chegou o tempo de investir na
paixão irreprimível do que é vivo, do amor, do conhecimento e da aventura,
paixão que a cada instante, quem quer que tenha decidido criar-se segundo a sua
«linha do coração» há-de inaugurar.” (p.19).
Alguém disse um dia que não descobrimos os livros, são eles
que nos encontram e nunca é por acaso. Mas então temos que abrir o nosso
espírito para eles nos acenarem e nós possamos ir ao seu encontro. “Não será a
consciência duma presença viva no sujeito e no objecto capaz de manifestar
aquilo que há de mestre no aluno e de aluno no mestre? Onde faltar a
inteligência da vida, só se estabelecem relações de brutos.” (pp.39/40)
Raoul Vaneigem reconhece que todos os anos dezenas de
inventivos professores dos ensinos básico e secundário sugerem métodos firmados
num novo acordo dos seres e das coisas. Mas, mais ou menos inventivos, importante
é que os professores possam e saibam trabalhar em verdadeiro espírito de equipa
e em esforço concertado em prol do bem maior que é a Educação.
Todos os seres humanos nascem com um potencial criativo.
Diz-nos o famoso Ken Robinson, no seu livro intitulado O Elemento (Porto Editora: 2010).
Uma das muitas ideias e desafios que Ken nos lança é olharmos para os olhos dos
nossos filhos e daqueles de quem gostamos e, em vez de persistirmos em ideias preconcebidas
sobre as suas personalidades, que afiançamos conhecer bem, tentemos perceber
quem realmente eles são. A importância do conhecimento e do reconhecimento individual
para a compreensão e a autossatisfação. O sucesso coletivo versus o sucesso
individual e vice-versa. Os professores têm consciência disso. Assim eles próprios
consigam lidar com os seus desejos e o grau da sua própria autossatisfação. E com
a sua tão indispensável atenção integradora de todos. É sua tarefa diária fazer
uma observação paciente e ponderada do comportamento de cada um dos seus alunos
e, de algum modo, de cada um dos seus pares.
Qual é então o Elemento que nos fala Ken Robinson? É saber ser,
antes que o mundo imponha restrições. E cita a pergunta desafiadora de Terence
Tao, um jovem matemático australiano de origem chinesa atualmente com 37 anos:
“Se eu pudesse fazer o que quisesse – sem ter de me preocupar com a minha
sobrevivência ou com o que os outros pensam de mim -, para onde me inclinaria?”
(p.103)
A frase “os professores também leem” despertou-me esta
necessidade de escrever e de pegar em livros que trouxe para aqui para junto do
computador, que é a minha ferramenta crucial. No entanto, a minha mente ateima
em pensar na revista que folheei há pouco, de que sou assinante, a Superinteressante, pois também sou mãe
de dois jovens, cuja capa deste último número que recebi há dias contém um
lindo bebé rechonchudo a soprar bolhinhas, com o título: Sobreviver a 2013, Aprenda a Ser Feliz, oito lições de vida…Oito
segredos de base científica, afirmam. Quais? Apreciar a solidão, cultivar e
preservar a amizade, saber ajudar, saber perder tempo, procurar afinidades (com
livros, acrescentaria eu), saber dosear, ter mente sã em corpo são e saber
aceitar os outros como são. Só bons conselhos. Neste começo de 2013, com todas
as preocupações acrescidas, sentimo-nos ainda mais responsáveis uns pelos
outros. O que é bom. Mesmo no ato solitário da escrita. E o escritor, ou o
mesmo o jornalista, descobre-se privilegiadamente no ato solitário da escrita.
Dizia José Cardoso Pires que para amar é preciso descobrir. E essa descoberta é
fundamental para a realização humana, desde os verdes anos, num processo
infindável de completamento e de refutação. Porque não recorrendo também à fina
ironia?!, aquela que nos agita a mente individual e coletiva, para que não nos
deixemos adormecer ou cristalizar no tempo, mas dinamizar e indagar com atos
transformadores, inclusive com boas leituras, que são partilhas de ideias,
neste caso, com vista a um processo educativo cooperativo e plural. Sem medo
das regras nem das mudanças. Com autonomia e humildade. Onde não haja idade
para ler. E onde os livros nos façam felizes.
Laranjeiro, 8 de janeiro de 2013
Rosa Duarte