sábado, 29 de novembro de 2014

Essa ferramenta-mãe chamada memória


O TEMPO DAS HOMILIAS PARTILHADAS 

Perdoem-me esta evocação do passado. Eu que até nem costumo prender-me demasiado ao passado, porque procuro investir no presente e no futuro, mas dei por mim há dias a contar ao Manel as minhas memórias quase inéditas ao longo destes anos do Grupo de Jovens da paróquia de S. Pedro de Alcântara. Num tempo pós-25 de abril.

Narrativas que são passaportes no tempo. Se tivesse aqui uma guitarra e quem a tocasse, tentava contá-las em verso. Assim confidencio-as sem compasso. Em duas palavras escorreitas. Como se tivesse apressada por ter a matéria para dar à espera…

Tinha então pouco mais de 10 anitos. Aproveitando o entusiasmo da minha irmã mais velha e as suas ideias de convivência com a malta do bairro que ia à catequese, fui percebendo que a igreja não eram só silêncios, missas cansativas e rituais repetidos.

Havia, na altura em Alcântara, muitos jovens como eu, sobretudo mais velhos, que tinham conversas giras e procuravam conviver fora dali.

Os adultos, que vieram mais tarde a ser especiais amigos, alguns eram professores das escolas da zona. Um deles, o Carlos, foi professor da minha irmã na Ferreira Borges.

Foi um período de muitas atividades comunitárias, de reflexão, ensaios musicais e outras. E um diácono extraordinário, o João Afonso, que conseguiu convencer o nosso inflexível pai para um retiro de 3 dias em Sassoeiros, Oeiras, alegando que era muito importante nas nossas vidas. E foi-o, deveras!

Agradeço este texto a esses meus amigos, quantos deles já não vejo há muito! E à ferramenta-mãe de que me sirvo e que é essencial a qualquer escritor: a memória.

A memória que muito já se estudou e disse. E muito ainda está por dizer e apurar. Porque há memória sensorial, visual, poética, factual…sempre criativa no seu complexo potencial que é sempre individual e dinâmico!

E, continuando, nessas vivências de grande intensidade comunicativa, comunitária e ritualística, percebi então que a religião é o que podemos pensar e agir em interação comprometida e aprofundada.

Os jovens ativos daquele grupo viveram grandes tempos de mudança do 25 de abril, únicos, conturbados, mas maravilhosos. E passaram a questionar os rituais do Catolicismo.

Os privilegiados, que fomos da revolução, pudemos pensar em mudar regras. Algumas ainda que temporariamente.

Uma delas foi a homilia convencional que passou a partilhada.

O padre Ernesto, mais novo que o padre Alfredo da paróquia, embora com um consentimento protelado, acabou por conseguir dizer missa só para o grupo de jovens, na sala de cima das reuniões, que consistia em ler uma passagem bíblica devidamente preparada e depois partilhar a palavra, abrindo o debate sobre o tema da narrativa ou parábola, num timing acordado que era mais ou menos respeitado. E mais as mãos dadas durante a oração, mais as saudações na «paz esteja convosco», mais a hóstia recebida na concha da mão, cânticos com músicas pop e letras inéditas…mudanças que em boa parte se mantêm e são hoje um dia a dia convencional alargado, que nem se pensa na história da sua conquista.

Passado pouco tempo, o padre Ernesto foi transferido.

O padre Alfredo ainda me casou e batizou os meus filhos, mas entretanto morreu.

A minha tia Conceição, freira, mestra-superior da família, e de tantas outras, também.

Mas todos continuam vivos naquilo que deram e ensinaram. E nas palavras que os recordam.

As palavras têm o dom de não deixar morrer os sentimentos e de dar fala ao silêncio.

As palavras são assim: despertam a música que há entre nós. A elevação de sermos.

                                                                          Alcântara, 29 de novembro de 2014

                                                                                            Rosa Maria Duarte



 

 

 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Parabéns, Alentejo!

Eis que finalmente foi a vez do Alentejo. Rosto trigueiro dourado no alto telúrico dos cantes na Senhora da UNESCO.

Assim é que eiii, compadres. Chiçã, já nã era sem tempo.

Eu cá nã nasci no Alentejo, bem entendido, mas que tenho lá a minha raiz bem portuguesa, é uma grande verdadi.

Ai Zequinha se fosses vivo! Até te balançavas no meio dos altos coros.....................

Venham de lá essas gargantas regadinhas do bom azeite e pomada de boa cepa!

E Mais: o cante alentejano não pode ser acusado de culto da personalidade, ora bem...pela simples razão que não há vedetas, só há gente aquecida pelo ombro cantadêro, pois atão. Melhores músicos só os do instrumento humano.

Força, pessoali do mê coração!

Poetas da Vidiguêra e Florbelas do Fado em tom Maior: PORTUGAL NO MUNDO.

Vamos embora Pacheco, que se faz tarde.
Brindemos, porra, que as (a)migas são de coentrada. À Nossa, comadres.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

um inofensivo esclarecimento...


A LITERATURA É FADO

NÃO HÁ FADO SEM POESIA.

E A POESIA É A FORMA EXCELSA DE FAZER                 LITERATURA CANTADA

EM VERSO E EM PROSA.

                       QUANTOS ESCRITORES, PINTORES E ARTISTAS DE OUTRAS EXPRESSÕES SE DEDICAM

A RETRATAR LISBOA E O SEU FADÁRIO RIBEIRINHO?

E QUEM DIZ LISBOA,

                                           DIZ COIMBRA E OS SEUS AMORES DO MONDEGO,

A ZONA DO PORTO E OUTRAS GENTES VAREIRAS,

                                                                                 O ALENTEJO E OS SOBERBOS CANTARES,

E TODOS OS LUGARES AQUÉM E ALÉM TEJO, EM TODO O PEQUENO GRANDE

                                                             PORTUGAL.

 

A LITERATURA PORTUGUESA É A AMANTE DO FADO.

 

QUEM RECLAMA O FADO, DÁ SOM À POESIA.            E QUEM DEDILHA A VOZ,

                                                 PLANGE UM FADO.

 

A ESTÉTICA LITERÁRIA SENTE              E              DESCREVE A MELODIA DA PALAVRA EM

 NÍTIDAS  PINCELADAS NUMA VIDA SONHADORA.

              INVESTIGAR UM UNIVERSO LITERÁRIO, É SER ARREBATADO POR ELE. 

                                   A CUMPLICIDADE ENTRE NÓS É O FADO.

 

E NÃO HÁ FILTROS OU CÂNONES SOCIAIS QUE ROUBEM O FADISTA
                  AO FADO E A QUEM O OUVE.                            

                                                                                                             
                            

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

crónica de opinião publicada no «Setúbal na Rede» e no «Diário da Região»

Educação
por Rosa Duarte
(Professora)


Nas escolas, os rapazes são sobretudo vítimas do bullying homofóbico

Há dias, depois do noticiário das oito da noite, estava sentada no sofá da sala em frente ao televisor, quando apanhei a meio uma reportagem sobre jovens em risco. Hesitei, mas acabei por me prender (é que são sempre impressionantes de tão reais…). Não me acrescentou muito ao que já sabia, mas ouvi com apreensão as atuais estatísticas que apontam o suicídio como a segunda causa de morte dos adolescentes, liderada pelos acidentes de viação.

Infelizmente o problema do bullying não é um problema social só da atualidade. Apenas se tornou mais visível pela sua ação de combate. A importação do termo é evidentemente mais recente do que os maus-tratos verbais e físicos infligidos aos seres vulneráveis, que são menos iguais, dentro e fora do nosso país.  
 
A denúncia é a atitude acertada no sentido da sua resolução, para que melhor se possa ajudar com experiência e eficácia. Os casos mais complicados, que demoram a ser detetados, são aqueles que habitualmente são minimizados e descredibilizados pelos habilidosos agressores que procuram por todos os meios influenciar o ambiente humano à volta, com o intuito de neutralizar possíveis queixas ou sinais dados pela vítima, derrubando quaisquer intenções de denúncia. E os próprios, com vergonha ou medo, deixam-se andar, às vezes preferindo convencer-se de que os outros é que têm razão, e autoinfligindo-se. Ou então esperam, quem sabem em vão, resolvê-los por conta própria.
 
Os mais vulneráveis, sabemos, são os menos experientes, logo os mais jovens. Mas não apenas necessariamente… Quando se quer agredir, mesmo em idades mais avançadas, basta acionar um mecanismo gradual de isolamento social para a pessoa em causa. E assegurar o seu ostracismo distorcendo a imagem social dessa pessoa, afim de secar quaisquer tentativas do próprio se defender, pondo-o a ridículo. O requinte pode levar à nomeação de um pseudoamigo para se aproximar e vigiar os pensamentos da vítima, conquistando-lhe a amizade e construindo um disfarce de igual vítima dos mesmos agressores, mostrando-se afável publicamente para sanar qualquer suspeição de coação psicológica ou agressão verbal. E isto foi-me retratado por uma jornalista idónea, com quem converso regularmente, e está a fazer o levantamento de situações como estas, reais, nas escolas e na sociedade em geral, entre alunos e não só…
 
É certo que a vida tem adversidades para todos e que a sobreproteção também pode ser um problema quase tão grande como o bullying. Que muitas vezes é uma reação natural, ainda que excessiva, de controle e proteção contra, nomeadamente, o bullying. Há pais, e sobretudo mães, que querem tanto aos seus filhos que não os deixam lidar eles próprios com as situações adversas, quando até certo ponto são próprias do processo de integração e crescimento desses jovens. E não sabem, os mesmos pais, como intervir na medida certa no momento adequado. O apoio especializado (médico e pedagógico) é fundamental e deve estar o mais acessível e divulgado possível, sobretudo em cada comunidade educativa.
 
Com filhos únicos e crianças com alguma debilidade, registam-se sensivelmente mais situações de superproteção que, mais tarde em adultos, se vão traduzir por uma adaptação mais lenta a situações sociais novas, com uma menor preparação psicológica para os embates mais inesperados do quotidiano. Os desgostos amorosos são exemplos sintomáticos. Vários exemplos reais poderiam aqui ser citados, mas basta referir o conhecido personagem Pedro da Maia na obra-prima de Eça de Queirós, Os Maias, que é uma real caricatura social de um tipo de educação à portuguesa, segundo o olhar atento e crítico do seu autor sempre atual.
 
Embora cada vez mais os pais estejam cada vez menos disponíveis para acompanhar os filhos, melhor ou pior na sua educação, devido em particular ao aumento de horas de trabalho, a verdade é que a sua experiência de vida os tem apetrechado e aproximado dos mesmos, pois eles já têm a experiência do ambiente escolar e, muitos deles, em ambiente urbano e populoso. Muitos pais percebem que a prática de atividades extracurriculares ajudam os seus filhos a acrescentar mais competências ao seu desenvolvimento, sejam elas físicas, emocionais, artísticas e/ou outras. O interesse pessoal é um bom ponto de partida para a autoimagem e deve ser encorajado. E desenvolver talentos pessoais fortalece os vulneráveis e desmoraliza os agressores. Reforça a autoestima e ajuda à integração social. E essa ideia que, erroneamente, se quer passar de que há pessoas com excesso de autoestima, não é de todo verdadeira. Quem investe mais na sua afirmação pessoal, pode ser mal interpretado e dificultar o seu papel de interação social, mas é indubitavelmente um claro sintoma de que há carências que precisam de ser superadas. Talvez haja, sim, mais autoconfiança.
 
Hoje é muita a informação. Há já ações de ajuda para o bullying (embora não as necessárias...) Há mais comunicação entre as escolas e os encarregados de educação.
 
Então o que é que falha?
 
É ainda necessário um processo educativo alargado a todos os educadores (que devem estar atentos), dentro e fora da escola, que liberte a nossa cultura de preconceitos e de ações de rejeição, nomeadamente das atitudes homofóbicas imaturas frequentes, fruto de uma mentalidade ainda estigmatizada por um passado repressor.
 
É que os nossos jovens rapazes continuam a ser as principais vítimas do bullying homofóbico.


Rosa Duarte - 12-11-2014 08:58

desenho a lápis de cera
autoria: Rosa Maria Duarte
 

[Setúbal na Rede] - Nas escolas, os rapazes são sobretudo vítimas do bullying homofóbico

[Setúbal na Rede] - Nas escolas, os rapazes são sobretudo vítimas do bullying homofóbico

terça-feira, 11 de novembro de 2014

dia 3 de dezembro no restaurante «A Muralha»

   Queridos Familiares, Amigos, Colegas, Visitantes e Estimados Anónimos,

   É com muito prazer que vos venho convidar para o lançamento do meu 2º CD de Fado, que se intitula «FADO FIRMADO», no dia 3 de dezembro de 2014, às 18h00m, no restaurante «A Muralha», que fica sensivelmente em frente ao Museu do Fado, em Lisboa (Alfama).

   Agradeço mais uma vez ao meu produtor Vital D'Assunção pelo apoio ao longo destes meses. E pelo seu engenho e experiência na arte da viola de fado e do baixo.

   Agradeço também ao Filipe Lucas que está sempre pronto a acompanhar-nos com a sua mestria de grande guitarrista e ao Monte da Música que tem sido o berço dos CD's da Rosa Maria Duarte (fora tantos outros de outros fadistas que ajudou a nascer).

   Obrigado por existirem.


 
Lisboa, 11 de novembro de 2014
 
Rosa Maria Duarte

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

a pedido de um aluno


OS LIVROS NA MINHA INFÂNCIA

Alto, louro, olhos azuis, de mão pesada e ágil, ele era muito metediço e matreiro. Tinha p’rá aí uns treze anos. Ainda que não parecesse, gostava muito de nós, da nossa pequenez e fragilidade feminina, mas invariavelmente cumprimentava-nos ao longo corredor da casa com uns bons calduços e uns beliscões miudinhos que faziam inchar as nossas carnitas rosadas tão tenrinhas.

Todos éramos mais novos do que ele. Na época éramos só três, para além dele mesmo. Por isso tínhamos de respeitar o nosso irmão mais velho, mesmo nas suas diabruras. E respeitávamo-lo. Era, até, mais do que respeito…

Eu e a minha irmã padecíamos do mesmo fraco: gostávamos dos seus livros. O bebé que era o meu irmão a seguir a mim ainda era muito pequenito para reclamar estes devaneios e aventuras visuais e táteis. É que lá em casa não havia dinheiro para livros. Mas estes de que falo eram os da escola do mais velho, e com esses não se brincava!

Mas as duas, abelhudas cúmplices minorcas, íamos sorrateiras até ao quarto do nosso irmão mais velho visitar os manuais escolares que ele tinha guardados religiosamente, em especial dois, com imagens do nosso agrado: o livro de Religião e Moral e o livro de Ciências da Natureza. Levávamos os livros até à sala de jantar contígua e, às escondidas da mãe (o pai passava temporadas fora), folheávamos gulosamente todas aquelas imagens que nos pareciam reais e grandes, com muita cor e nitidez. Passávamos-lhes os dedos a avaliar a forma de cada bicho e de cada folha fotografados. Daí vieram-nos mais tarde as manias com os herbários, as grandes coleções de folhas recolhidas da serra do Alvito e da Tapada da Ajuda. Mas isso foi bem mais tarde.

Eu não sabia o nome do livro de Religião e Moral e chamava-lhe o livro do filho do pai que mataram. Por muito que olhasse, continuava impressionada com a imagem de Adão a empunhar uma faca para matar o filho a mando de Deus. Olhava-a, olhava-a e não me conseguia decidir do que sentia...

Eu e a minha irmã tínhamos essa ocupação secreta que nos unia, enquanto o bebé chuchava às escondidas debaixo da mesa da sala.

O meu irmão mais velho, esse sabidão ruidoso, quando entrava em casa, estava sempre à espera de nos apanhar de surpresa, e caçava-nos muitas vezes, com os habituais gritos encenados, em flagrante delito. Nós, ruborizadas e choramingonas, lá atirávamos os livros para debaixo dos sofás e das cristaleiras, no meio da atrapalhação, na esperança da ocultação. Na esperança de que ele estivesse a fazer só de conta que tinha dado conta da infração, por mero hábito torturador. Mas quase sempre apanhávamos mais calduços e beliscões. À séria. A doer. E foi assim que ficámos preparadas para, se quiséssemos, ingressar em qualquer corpo dos fuzileiros. Ainda hoje somos umas mulheres guerreiras, imbatíveis, na nossa aparente feminilidade. Que fazem pensar duas vezes quem ousa nos beliscar…

E, curiosamente, quando o nosso irmão deixou de ser um ‘enfant terrible’, passou a olhar e a tratar-nos com umas ladies, com preocupação e desvelo. «Rosa, não cortes o cabelo que te fica bem comprido». Surpreendia-nos.

À minha irmã um dia ensinou-lhe a tocar guitarra. Eu não tive na altura essa sorte porque ainda tinha os braços pequenos. Mas como tinha olhos curiosos, fui incumbida de lhe trazer os livros, que me indicava por escrito, da carrinha da biblioteca da Gulbenkian, que estacionava na calçada da Tapada às quartas-feiras e, se eu quisesse, podia trazer um também para mim. Visto que eram três por semana. Uauh!

A princípio, quando subi o degrau para entrar na carrinha cinzenta, um pouco curvada, olhava as prateleiras com estranheza, a cheirarem a tinta e a papel velho. Com uma série de livros, todos eles com as capas escuras e lisas. Talvez a chamarem por mim. Resolvi então descobrir o que tantas letras estavam a fazer dentro de tantos livros.

Comecei arbitrariamente pelo V: Veríssimo, Erico, Olhai os Lírios do Campo. Soou-me bem e o rapaz que conduzia a carrinha, e que tinha pouco mais que a idade do meu irmão, encorajou-me.

Dali em diante, a simples visita semanal tornou-se um compromisso amoroso revigorante. Ainda hoje somos companheiros diários de grande nobreza e de diálogo intenso, com tantas histórias para contar.

No quotidiano, quando trabalho com os meus alunos os contos da Clarice Lispector, por exemplo, eles, intrigados, perguntam-me porque é que a autora-personagem da «Felicidade Clandestina» confidencia que, em pequena, ao emprestarem-lhe um livro, sentia o coração quente como o de uma mulher amando o seu amante. E eu conto-lhe a minha história. Ah… E sorriem, com algum enlevo e esclarecidos.

É que eu ainda continuo a gostar de me balouçar na cadeira com um livro aberto no colo, acariciando-lhe a textura e a cor, quantas vezes em êxtase deveras puríssimo. Antes de virar a última página…

                                                                      Laranjeiro, 6 de novembro de 2014

                                                                                  Rosa Maria Duarte
 

domingo, 2 de novembro de 2014

a pedido do meu amigo Toni


O FADO DA MINHA INFÂNCIA

Para mim falar de fado é simples, mas doloroso ao mesmo tempo.

Simples porque sei que vive de sentimentos genuínos de gente humilde, mas, por vezes, doloroso ligado à faina dura do mar, marcado pela distância física que eleva a mágoa o grito silencioso de saudade.

Eu nasci e cresci com ela em casa.

Vivi os meus primeiros vinte anos de vida com os meus pais, mais cinco irmãos, na rua de Alcântara nº 17 – 2º andar, num andar alugado com esquerdo e direito. Éramos muitos. O meu pai é que sustentava a casa.

Volta e meia, quando o meu pai regressava do mar, a minha mãe engravidava. Nessa altura, os partos ainda eram feitos por parteiras que iam a casa das parturientes. Só o meu irmão mais novo, o Alex, nasceu na maternidade Alfredo da Costa. A minha mãe já tinha quarenta anos e foi aconselhada pela obstetra a ir para a maternidade.

O meu pai manteve-se durante muitos anos marinheiro da marinha mercante. Fez serviço no paquete Vera Cruz, Santa Maria e outros que não me lembro.

Apesar da cultura familiar rigorosa e muito conservadora, até pelo facto de o meu pai estar ausente de casa durante muitos períodos no ano, nós tratávamos os nossos pais com à vontade e tratávamo-los por tu. Eles não se importavam. Os bairristas são assim, descontraídos e afáveis. E deixavam-nos brincar e jogar à bola  na rua, nas traseiras da rua principal, na rua das Fontainhas, que era fabril e menos movimentada. Ainda que os horários das nossas brincadeiras fossem muito controlados...

Havia muita miudagem para jogar: às escondidas, à apanhada, à barra, à linda falua…barrigadas de brincadeira. E estávamos sempre a esticar a sorte…gritávamos para o 2º andar: mãe podemos ficar mais um bocado? A mãe nem respondia. A vassoura ficava à nossa espera atrás da porta…

Os nossos pais não tinham muita instrução, mas eram pessoas atentas. Eram amantes da Amália, da Hermínia, do Alfredo Marceneiro, do Fernando Farinha, do Maurício, do Max, do Carlos Ramos e de tantos outros.

Mas, até por algumas curiosas parecenças físicas, a referência vocal do meu pai era o Alberto Ribeiro, ator galã que contracenou no filme «Capas Negras» com Amália Rodrigues. Foi com um tema deste cantor que o meu pai ganhou o segundo lugar no concurso de fado da Emissora Nacional, há muitos anos, quando era eu ainda uma raquítica miudita. Há quase quarenta anos!

Apesar da proximidade da minha casa às famosas casas de fado de Alcântara, nunca me foi autorizado aproximar-me de lá. Nem se falava nelas lá em casa. Só soube da sua existência já era quase adulta. Até então era uma espécie de tabu.

Já rádio e televisão não faltavam lá em casa. Ouvia-se muita música. Gravadores e gira-discos também, mas só mais tarde quando os meus irmãos mais velhos começaram a trabalhar.

O meu pai acordava sempre muito cedo. Ia para a casa de banho acompanhado do seu transístor para ouvir a Emissora Nacional e a Rádio Renascença. Gostava muito dos parodiantes de Lisboa. E ali ficava, na casa de banho, uma, duas, as horas que fossem necessárias para se escanhoar bem, a cantarolar e a assobiar, de janela escancarada na cozinha contígua virada para a fábrica dos parafusos com uma linha de Tejo no horizonte, em camisola interior de alças e pele repleta de creme Nívea para compensar o forte bronze do mar.

A minha mãe preferia as radionovelas como a Simplesmente Maria. Chamava-me para ouvir com ela a rádio, porque achava um desperdício gastar as pilhas do rádio só com ela. E chorava a cada instante com a história triste da Maria, que era uma simplesmente maria. Um sucesso radionovelesco.

O meu pai marinheiro, apesar de tudo, procurava não se ausentar por períodos muito longos. Evitava as viagens de longo curso. Não muito mais de um mês. O seu marialvismo acentuado era, contudo, genuíno, que incluía, felizmente, os bons rituais familiares bairristas. O domingo era família (quando não estava em trabalho). Ou íamos para o Alvito fazer uma sardinhada e brincar para o parque infantil, ou íamos para a Tapada da Ajuda depois de almoço e estendíamos camas de rede e montávamos carros de esferas.

O campo era o oxigénio do meu pai. Para ele, assumido beirão do Fundão, Valverde. Para a minha mãe também, mas não tanto. Porque costurava em casa e não sofria tanto com a agitação da cidade. Ela gostava e gosta da sua terra na Serra da Estrela, mas veio cedo para Lisboa com oito anos, e nunca lhe sentiu muito a falta.

Em contrapartida os filhos, todos, adoravam e adoram a sua terra, uma aldeola chamada Vide. Até o marido que quase gostava tanto da terra dela como da dele.

Desde que nascemos têm sido grandes momentos lá. Se algum verão não permitia as férias na Vide, era um desgosto infindável para nós, criançada às vezes tão insuportável. Éramos muitos, uma escadinha, quatro rapazes e duas raparigas, estas, umas marias-rapazes. Fazíamos marcação cerrada, se não fôssemos. Com tortura psicológica requintada. Papelinhos em todos os bolsos dos casacos dos nossos pais a repetir: vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide...

Belos tempos. Era o lugar mágico, a Vide. Ainda é. Os nossos pais tinham mais paciência para nós. Podíamos estar sempre fora das paredes da casa. Íamos tomar banhos revigorantes ao rio. Brincávamos todos juntos, até com os nossos pais. Às vezes o clã familiar ainda se alargava mais. E cantarolava-se. Faziam-se festivais da canção. Cantavam-se histórias. Faziam-se caminhadas na serra. Ía-se à chinchada. Adivinhavam-se as constelações na brilhante e majestosa abóbada celeste, tão  natural e recortada pelo horizonte serrano…

Não levávamos tv. Nem queríamos. Só música da rádio e muito fado vadio…

Onde está a pequena Rosa Maria do vestido de veludo vermelho, mangas em balão, sapatos de verniz preto e fivela na procissão da Nossa Senhora da Assunção?

O tempo, esse grande escultor. Um construtor demolidor... O nosso pai morreu. A nossa mãe envelheceu. A família multiplicou-se. E o fado perdurou e mantem-nos ligados pela saudade.

É por isso que eu não consigo deixar de cantá-lo. Porque o fado não é de quem o canta.

O fado é um recado intemporal, repetido, mas sempre único e sentido.

É a memória de uma família, de um povo que canta o seu destino em cada voz dolente e oferecida, em oração.

É o silêncio que se vai afinando em verso, desde a infância até ao entardecer.

                                                                        Alcântara e Madragoa, 2 de novembro de 2014

                                                                                                            Rosa Maria Duarte