sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

o livro das quantidades dinâmicas


VOLTAR ATRÁS PARA QUÊ?

O espaço e o tempo não só afetam, como são afetados por tudo o que acontece. Diz-nos Stephen Hawking na sua Breve História do Tempo (Gradiva: 2011). E fala-nos de imensas coisas na imensidão do tema. Da teoria da relatividade sem qualquer tempo absoluto. Da ideia que já lá vai, destituída em 1915, de que o espaço e o tempo eram um palco onde os acontecimentos ocorriam, mas que não era afetado por eles. Que a curvatura espaço-tempo é afetada quando um corpo se move ou uma força atua. E também a estrutura do espaço-tempo que afeta o movimento dos corpos e o efeito das forças. Em suma, cada indivíduo tem a sua medida pessoal de tempo, que depende do local onde está e da maneira como está a mover-se.

Perante esta (nova) realidade, repensada hoje dentro de mim, sinto a medida de tempo mover-se por pensamentos ritualísticos recentes, ainda convencionados. Que continuo a querer humanizar na minha mente. Uns mais coletivos do que outros. O reencontro e a conversa familiar. A prendinha, quão modesta, para simbolizar a dádiva. Beijos, abraços e lacinhos. Um tempo cultural afetado por um espaço social. O individual e o tribal afetado pelo social. O depósito de sentimentos em escolhas que tocamos e representam a alegria da dádiva. Um tempo natalício no espaço da oferta. A inevitabilidade de cada prova única e o ritualismo que há em cada um. A festa do tradicional que deve atender a momentos afiançados de um prazer diverso de cores e de luzes, cheiros e paladares, radiações e espetáculos de intenções, os embrulhos, as formas, os brilhos, os formatos, as surpresas, as emoções, a valorização e o reconhecimento do outro. Sem olhos melindrosos em cada nuca. Que cofia e confia no olhar recolhido e no pé do próximo mais matreiro.

Afinal a conjuntura exige contenção. De palavras. De atitudes. De gratidão e de explicação. E a contenção desperta um novo tipo de preocupação pelo outro. Felizmente. De exigente moderação. Verdades mais económicas. Disfarçadas de razão. Carradas de valimentos. Uma irrupção subatómica de compaixão por aqueles que vivem do comércio das prendinhas que tanto gostamos de oferecer. Oferecer mais do que comprar, pelo que de energia e paciência o ato da compra muitas vezes reclama. Nem que seja em segunda mão. Ou num esconso olhar. Sem pejo nem preconceito. Ou em sentimentos ocultos. O indivíduo do terceiro milénio a esforçar-se por abarcar as vicissitudes do novo espaço-tempo. Um novo olhar sobre a imaginação ou sobre a falta dela. Reciclar os hábitos do passado. Uma imaginação que ora nos socorre, ora nos desequilibra. Diz-nos Irene Lisboa. Voltar atrás para quê? Os alfarrabistas nunca desatualizados. Alguns, verdadeiros museus do livro e de instrução universal. Catalogados pela sua natural familiaridade intemporal ou sustentados na liberdade espacial enigmática. Epicamente sobreviventes a muitas convulsões psicóticas politicosociais e económicas. Nesta Lisboa, a lusa capital. E não só…Para não falar das feiras do livro, umas mais emergentes que outras. Que tanto se ajeitam nas quadras presenteiras. Hinos ao enamoramento livresco. Sem censuras. Conspirativos à leitura.

A alegria absurda por excelência é a criação. Clarice Lispector, em epígrafe n’ Um Sopro de Vida, recordando-nos Nietzsche. Quem não sentiu num livro um frémito de vida criativa, esta alegria absurda por excelência que quase toca a fina melancolia, poetizada por Jorge Barbosa?

E junto à Bertrand da rua que celebra Garrett, numa das várias bancas de livros que decoram os passeios do beco, estuquei a polifonia do tempo para cumprimentar Voltar atrás para quê? de Lisboa escritora. A alma da autora adolescente despida. Mas que somos nós mais do que uma contradição permanente? (p.114)

Enfim, a grandeza infinita do momento. O tal segundo do não-tempo sagrado em que a morte se transfigura. Lispector.

                                                                                         Lisboa, 28 de dezembro de 2012

                                                                                                        Rosa Duarte
 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

quando cantar é cheirar


SOA BEM, SOA A CASTIÇO
 

Ai Chelas, cantas a Lua

E a fama sua

Na noite sorrateira

Das vielas

E o primeiro fadista

De calça escura

Faz coro com os recantos

De Marvila

Se chove encobres

De jornais o transeunte

Arrepios com cheiro

A bagacinho

Tascas e guitarradas

Mais escondidas

Cheiram a fado chorado

E a vinho.
 

A Severa  numa

Chelas faduncha

Soa bem, soa a Roseta

Um Maurício

Numa Casa de Fados

Soa bem, soa a castiço

Uma voz que se ergue

No palco

A menina que teima

Em cantar

Cantam bem porque

São daqui de Chelas

Madre Deus, do vale de Chelas

Da Mitra e de além-mar.
 
 

Chelas cheira aos cafés

De Xabregas

E o mosto cheira sempre

A rouco e a Dão

Cheira a xaile de enguiço

Se há tristeza

Cheira a decote maduro

Quando é paixão

Nos lábios há a leveza

De um sorriso

Chouricinho, bagos

e cantiguinhas

e as ouvintes perdem o juízo

quando lhes chega o timbre

a marialvas.

 

A Severa numa

Chelas faduncha

Soa bem, soa a Roseta

um Maurício numa

Casa de Fados

Soa bem, soa a castiço

Uma voz que se ergue

No palco

A menina que teima

Em cantar

Cantam bem porque

São daqui de Chelas

Madre Deus, vale de Chelas

Da Mitra e além-mar.

 

Adaptação feita por Rosa Duarte

Chelas, 26 de dezembro de 2012
 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

à tua...


SOU UMA ESCOLA DE FADO

Saber o que se passa no mundo.

Ligo a rádio ou a televisão, folheio um periódico…Não. Melhor do que isso. Vou conectar-me com o planeta. Sento-me ao computador. Quantas vezes? Hoje em dia…bem, é a ligação segura a uma distância confortável. Opções infindáveis. Sem negas ao vivo ou olhares dissonantes. Nem gestos alheios sorrateiros. É o meio mais conquistador... Quase… Haverá outros. Embora a tradição já não seja o que era. Pesquiso sites sobre tradição. O som em forma de arte, por exemplo. Olha este: sou uma escola de fado. A bem dizer, até que é um bom assunto. A nossa música sem taxas alfandegárias. Um som sem deferências, com as notas sem quedas na bolsa. Há o da desgraçadinha, da enjeitada, da moça caída, dos olhos fatais… uma tristeza cantada com alegria elevada às lágrimas, com tantas notas belas que é um espanto de arrebatamento. Continuo: situada em Lisboa, cerca de 30 alunos, de canto e guitarra portuguesa e viola, alguns com prémios, 17 anos, há 4 anos todos os domingos das 16 às 20 horas...

Ó Fernando Jorge, és fadista e não revelavas. Cantas e encantas. E é esta a escola deste meu amigo. Sempre em grande matiné do fado. E da mulher que ontem o trauteou. E da filha que o filmou. Ah Fernando fadista! Guitarra pin na lapela e tudo. Nós estávamos lá e pudemos testemunhá-lo. Um role de fadistas consentidos, uns mais lançados do que outros, com a mesma entrega, o mesmo amor à arte, a mesma alquimia de fechar os olhos e ver todos os amigos ausentes, todas as dores aliviadas, todas as paixões consumadas e o aroma de um chouricinho assado à espera com um jarrinho à casa. Para os apreciadores, pois claro. O Fernando foi convidado a cantar mais um fadinho à nobre gente. Lindo! Bravo! Palavras arremessadas por incontinência vocal, amordaçadas pelo silêncio partilhado.

Nós, fracos apoiantes, já pensámos num oportuno corridinho às aulas do Clube Lisboa Amigos do Fado para abrirmos, à vez, a nossa goela a ver se de lá sai alma lusa dolorida ou fado rafeiro desalmado. Uma desgraça nunca vem só…lá diz o velho ditado.

Melhor é impossível. Em Chelas, lugar castiço, prendado com janelinhas enfeitadas de roupa pobre de pontas e de molas, xailes vistosos dependurados, um beco dos aflitos, a praça do querido Fernando Maurício e outros requintes de amor à vista.

Só visto, cantado é sempre um risco.

Boa, senhor Armando.

                                                                          Lisboa, 17 de dezembro de 2012

                                                                                         Rosa Duarte

sábado, 15 de dezembro de 2012

entre bons amigos


A NARRATIVA DO PRESENTE NATAL


A narrativa é o melhor presente de Natal. Em qualquer ciclo da idade do homem. É a grande ciência da temporalidade humana. Que começa quando eu, por exemplo, penso no genesíaco sopro desta minha existência. Como se me visse a nascer. Na tela da minha mente, claro. Uma memória sustentada em narrativas, imaginada no presente deste pensamento. É a grandiosa magia da imagem pela palavra pensada. Não apenas mais um olhar, que é sempre outro, mas com um novo olhar. Um olhar como este neste preciso instante para as fotos do meu parto. Imagino-as. A minha mãe na sua cama. À semelhança do ritual dos nascimentos dos mais novos. Em casa. Com parteira aos pés do leito. Reconstituo a mesma azáfama no quarto ao lado. Onde eu realmente era autorizada a aguardar. Seria impensável para os meus pais fotografar estes dolorosos e maravilhosos momentos. Como em geral nos anos sessenta em Portugal. Persisto na narrativa. Revisito as fotos do meu batizado que se estragaram. Ou que nunca existiram por ausência de fotógrafo de serviço. Fui o terceiro nascimento do mesmo casal. Porque não estava lá aquela câmara fotográfica do meu pai que tanto me fascinava…?

Bem haja a generosidade do Natal. Mesmo aquele que se celebra como um aniversário. Em cada calendário. Mas em especial aquele Natal que é o nascer profundo e permanente. Na descoberta de quem somos. O Natal mais autêntico e efetivo. Os momentos da redescoberta pela atenção ou leitura da revelação que proporcionam instantes próprios de um Natal intemporal. Não sem um tempo, mas de um acontecer sem premeditações. Não repetido, mas único e vivido. Um Natal pessoal e intransmissível. Cada um com o seu no seu coração. Reconhecidamente sentido pela sua intrépida presença.

Esta é a narrativa do Natal, consciente da sua respiração, dos nobres gestos, temperatura macia da pele que a reveste, cumplicidade sensorial, magnetismo generoso nos dedos, o pensamento no ecrã coletivo, o faroleiro cursor na luz intensa do nascer para os instantes na contraluz das regeneradoras palavras. E vermo-nos por dentro do lado de fora do espaço e sem o grilho do tempo castigador. Vermo-nos assim, aqui, no instante presente, arrebatados pela reflexão e pela comoção do pensamento. Sentirmos o tempo único na existência constante de uma nova perceção, prenhes da presença que trazemos, a ideia, e sairmos da nossa massa para nos projetarmos de um só lado, o nosso. O presente Natal em comunhão. Em confraternização. Sem ponteiros no pensamento. Com pulsação no sentimento. O nosso amor à compreensão do que nos liga a cada instante ao nosso pequeno mundo dialogante e ao tempo sucessivo a que somos alheios no instante da ideação festiva. Os minutos incontáveis do acontecer que se silenciam pelos nobres momentos. O encontro. A vivência amorosa da temporalidade humana. A narrativa fotográfica em diálogo com o nosso olhar em ação. O presente natalício das boas memórias recuperadas neste presente. Somos um tecido acrescentado no tear humano de mais um Natal de seiva fraterna vigiado por um corso de olhares serenamente reunidos em contemplação. Somos um poema dedilhado em sinfonia fértil de indagação fraterna.

Feliz Natal.

                                                                           Lisboa, 15 de dezembro de 2012

                                                                                       Rosa Duarte

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

revista LER


FESTIVAL  LER  25 ANOS

No fim de semana passei por lá. Uma nova magia, é certo. Porque já não é aquele São Jorge com matinés de último cartaz, salas à pinha e bilhetes esgotados, mas não há dúvida que recebe o dinamismo revigorado e a versatilidade cultural.

No âmbito do Festival da revista Ler, fui no domingo ouvir. E ver a falar duas pessoas distintas. Gonçalo M. Tavares que é uma câmara inteligente multifocal, ou uma régie interna e externa da sua experiência de ser humano atento e sensível a tudo o que se pensa ou falta pensar e conhecer. Com palavras. E, duas horas mais tarde, António Lobo Antunes, o mestre da polifonia mental e sentimental das palavras inventadas. E quão belas.

Gonçalo M. Tavares escolheu um vídeo breve. Para falar sobre a avaria. Só ele estava em palco sob um único foco de luz. O resto era escuro e vultos esbatidos. De olhos baixos, fez uma breve saudação. Disse. Quando estamos com muita pressa dentro de um elevador, o elevador não acelera. Um recordista e uma senhora de cem anos chegam ao mesmo tempo. Há a nossa velocidade e a velocidade do mundo. O ritmo de um recipiente que não depende da nossa vontade. Há pessoas que nos dizem para andar mais depressa. Há outras que nos dizem para andar mais devagar. Tenho a sensação que estamos num recipiente em que não controlamos a avaria.

Continuou. Distraidamente começo a ler um livro. As avarias podem ser vistas. São falhas filosóficas. O carro não arranca. A luz falha. É algo que não pressupõe olhar para o outro lado. Se a avaria apanhar dois vizinhos no elevador, tal faz com que estes conversem e se conheçam melhor. A partir de qualquer coisa que não estava prevista (como no filme Cloud Atlas…). É a pedagogia filosófica. Todos nós temos a nossa avaria. Eu já vi várias vezes pessoas a ler porque tinham o computador avariado. O filósofo diz que a filosofia anda sempre à volta de um centro, do essencial. Sempre à mesma distância. Tem a ver com a morte, o medo, o desejo. A tecnologia é uma linha reta. Estamos fascinados com a tecnologia que nos afasta do centro.

A avaria é um corte. É qualquer coisa que permite que eu fique mais próximo do centro.

O olho. E pensou no olho. Há estudos de fisiologia animal. Por exemplo, o olho do polvo é apenas uma fenda na pele. Ver não é algo para sentir. Ler não é uma imagem como uma imagem através do olhar. Ver é por detrás da imagem. Ver é uma extensão do cérebro. A parte de trás é que faz o julgamento. Eu via apenas uma bola na minha direção. Então apanhava com ela. Só ver não chega. Ver é interpretar eticamente. O ver transforma-se numa leitura. Quando os nossos olhos tomam decisões. Nós percebemos que não somos imortais. As decisões tomam peso. Mas vivemos como imortais. Agimos como imortais.

O que é um leitor?

Um leitor é um animal que procura um esconderijo. A atividade de ler é de quem pressente que vai morrer. Não nos podemos afastar das tarefas.

O que é que é ler?

É como se os olhos fizessem um itinerário, uma caminhada. São os olhos a caminhar. Cada sucessão de letras pode ser uma surpresa. Há uma tensão diferente no gesto de pegar e ler cada livro. Há frases como que apanham a energia do relâmpago. A escrita e a leitura podem ter energia luminosa. Nós podemos olhar de lado. Ver pelo canto do olho.

Será que vemos a vida?

Se lêssemos a vida, os nossos olhos estariam sempre da esquerda para a direita. O olhar para a beleza é um privilégio. «Olhar uma obra de arte é uma operação às cataratas», dizia Malraux. É preciso termos tempo para parar e olhar o que é bonito.

Nós podemos começar a escavar. Ficar algum tempo no mesmo sítio. O que é mais alto, tem raízes mais profundas. Não é possível ser profundo se estamos sempre a mudar. Mas se depois de escavarmos batermos em pedra, perguntamos. O que é que faço enquanto não morro?

É que uma avaria temporária é uma oportunidade. E se for uma avaria definitiva?

A civilização vai-se degradando…

O que Gonçalo M. Tavares disse foi o que a minha memória julga recordar e o que os meus sentidos me fizeram chegar.

António Lobo Antunes teve um entrevistador. Estes quiseram olhar o público. Os projetores devolveram alguma luz à plateia. Então António conversou. A meiga voz, como de seu hábito. Lembrou pensamentos e palavras conhecidos e outros. O seu passado. Recordou o seu amigo José Cardoso Pires que colecionava frases de escritores (eu também gosto…). Reafirmou o seu gosto por fitas piegas. Há livros bons que não gosta e livros maus que lê. Love Story, por exemplo. E que há asneiras ótimas que não se pode falar delas.

Com 14 anos já queria ser escritor. Mas agradece não ter ido para Letras. Admite que cada vez fala mais da sua família. Lembra muito o pai. Acha que por defeito seu foi injusto para com ele. E fala de amizade. Para si, a amizade é uma delicada atenção. É instantânea. Como com o Zé. ALA gostava de morrer de mão dada. Os mortos andam por aí, citando Bento Domingos. Sente-se o cheiro. E citou: «Nada é mais imprevisível do que o passado.» Lembrou Jorge Amado, Eugénio de Andrade, Alves Redol, Vitorino Nemésio, Vitor Aguiar… Recordou palavras de um escritor oitocentista: «O mundo da literatura é uma cavalariça aberta. Todas as bestas lá entram.». Faz outra citação: «É estranho caminhar no nevoeiro. As árvores não se conhecem umas às outras.»

É impossível viver sem a eternidade. Quando António teve o cancro, o médico devolveu-lhe a eternidade. O minuto de Maria Antonieta foi eterno. O tempo na infância é imenso porque são dias de permanente descoberta. É a rotina que mata o tempo.

Por isso a cultura assusta. Imaginem que as pessoas se punham a ler Camões…

Não é meia-noite quem quer. Houve uma saudação física próxima de afeto.

Decerto continuarei a ler oportunamente a Ler.

                                                                  Lisboa, 9 de dezembro de 2012
 


                                                                                Rosa Duarte

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

um palco em cena


JOAQUIM BENITE 

Desculpem. Não pude estar presente para lhe fazer a minha última homenagem. Sei que milhares o fizeram, felizmente. Muito merecidamente. Mas mesmo assim gostaria de apresentar o meu profundo sentimento cheio de memórias espetaculares de que preciso agradecer-lhe. Um contributo inestimável e contagiante no teatro português. E em particular na dádiva do teatro às escolas, que foi como  o conheci, aquele diretor que falava connosco e nos pedia opiniões depois dos ensaios gerais. E nos proporcionava o convívio despretensioso e espontâneo, preenchido de tópicos atuais e recreativos. Como aprendi. E continuarei a aprender, naturalmente…

Às vezes não precisamos de conversar muito para nos conhecermos pessoalmente. Vemo-nos e comunicamos em grupo. Assim foi com o Joaquim Benite. Com a discreta saudação. E às vezes a conversa breve e casuística. Os seus assessores ofereciam-me, em seu nome, o resto da disponibilidade necessária. A Sónia e a sua menina encantadora. O Miguel e os outros. Em equipa, dando a conhecer a arte teatral a muitos meninos e jovens de estratos socioeconómicos problemáticos e a revisitá-la. Antes a preço zero. Numa altura em que as Câmaras podiam apoiar mais iniciativas como as do Teatro Municipal de Almada. O António Assunção a fazer o Monólogo do Vaqueiro numa sala dos barracões da Moinho de Maré. Ator convidado da Companhia. E tantos outros, nas instalações junto à escola primária em Almada. Que os maravilharam. O Dom Quixote. Os Dias Inteiros nas Árvores. Os Dias Felizes. A Mãe Coragem. O Valente Soldado Schweik. O Carteiro de Pablo Neruda. Guerras do Alecrim e da Manjerona. O Memorial do Convento. A Purga do Bebé…eram abertas inscrições destinadas a todos os que quisessem alinhar. Bastava estar à hora junto ao autocarro cedido. À noite, sobretudo.

Somos um país de atores, escritores, poetas e lenhadores. Aquele escritor que vai talhando nas suas tábuas o esforço e a comoção. Assim é o muito trabalho do sonhador que quer reerguer uma Companhia na periferia de Lisboa, sem se retrair com distâncias e com os “desertos” do sul. O teatro do oprimido. A voz do camponês e de operário. A minoria na maioria. A multiculturalidade. Sempre avante. Sem constrangimentos. E assim nasceu um festival cheio de Teatro que fez de Almada o lado certo instituído e irrevogável. A capital do mundo do Teatro português, ibérico e ibérico-americano. Mas não só.

O nosso Quim que nasceu homem e se imortalizou. Cá continuará.

O meu obrigado.

                                                      Laranjeiro, 7 de dezembro de 2012

                                                               Rosa Duarte

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Parabéns, filho.


CESINA BERMUDES

Faz hoje 26 anos que a minha adorada obstetra, a Dra. Cesina Bermudes, assistiu ao parto do meu primeiro filho, na avenida António Augusto de Aguiar. Parabéns, querida Cesina! porque o mérito e a alegria também foram muito teus… E sempre para com todos.

Numa manhã fria e húmida de quarta-feira, num quarto de primeiro andar, abria eu os olhos nos intervalos das fortes contrações, respirava fundo, soprava a contar mentalmente, abstraindo-me das dores do rápido dilatamento das minhas ancas, e a Cesina ao lado, pouco antes sentada à minha cabeceira a ler, e que se levantava a todo o momento para me reforçar as instruções e o alento. Acho que é o grande momento do primeiro amor, este, de uma mãe caloira a parir, neste caso, nas mãos de uma grande mãe de tantos «bebés cesina» que ajudou a nascer. Apesar de ela própria nunca ter concebido. Eu dormia profundamente nos intervalos das contrações, cada vez mais próximas. O Daniel só nasceu às 17h40m. O pai fora sempre convidado pela própria médica para as consultas e teve um papel determinado durante o trabalho de parto. De caderno em punho, com pesagens diárias, de manhã e à noite, em nove meses, assim foram as minhas duas gravidezes. O bebé varão tinha o cordão enrolado ao pescoço, mas não foi problema para ela. Apenas um susto. As prendas de Natal que lhe oferecíamos eram invariavelmente Toblerones. Dizia-se assumidamente gulosa. Também gostava muito de doces à base de leite condensado. Tinha a despensa com as prateleiras de cima cheias dessas latas. Ademais, não gostava de receber flores. Preferia-as viçosas a perder de vista nos campos.

O seu nome está indelevelmente associado às primeiras mulheres que se formaram em Medicina no Portugal salazarista, com 19 valores, e à introdução do parto sem dor.

Embora conheça bem a sua história e a sua longa atividade multidisciplinar inestimável, porque participo modestamente de uma parte dela há algum tempo, quis certificar-me do rigor dos dados guardados na minha memória confrontando-os com os vários blogues e sites sobre esta exemplar cidadã, teósofa e profissional. Com muita satisfação, constatei serem muitos e fidedignos. O seu pai foi Félix Bermudes, um dos portugueses mais conhecidos do seu tempo, para além de ter sido um dos sócios-fundadores do Benfica, foi autor de peças de teatro de grande êxito e de livros muito divulgados. Cesina Bermudes sempre considerou o seu pai a sua grande referência. Dele achava que tinha recebido o seu forte caráter e coragem. Já a sua irmã era mais feminina e mais frágil. Cesina cedo se envolveu em movimentos cívicos (o que era raro para as mulheres do seu tempo) e na contestação à ditadura. Foi a primeira portuguesa doutorada em medicina ("ainda por cima em Anatomia", gracejava com orgulho), mas o Estado Novo impediu-a de assumir o seu lugar de professora na Faculdade de Medicina de Lisboa. Essa interdição pesou-lhe sempre, como o manto escuro da tacanhez social e da discriminação fascista. Contudo, outro feito inscreveu-a na História da Medicina Portuguesa: foi uma dos três introdutores do parto psicoprofilático (vulgar parto sem dor) em Portugal, no início dos anos cinquenta e à sua divulgação se dedicou incansavelmente, aplicando-o e ensinando a parteiras e a formadoras. Durante décadas foi Presidente de Ramo da Sociedade Teosófica Portuguesa e optou pela alimentação vegetariana. Em 1997, no ciclo "Natureza e Equilíbrio Sob a República e o Estado Novo" na Biblioteca-Museu República e Resistência, foi a primeira oradora no primeiro dia dedicado ao parto psicoprofilático. Esse ciclo foi videogravado e segundo parece pode ser visionado no referido Museu, constituindo uma excelente introdução à obra viva e à destacada personalidade de Cesina Bermudes.

Uma das suas grandes amigas foi a Dra. Maria Guilhermina Nobre Santos, durante anos Presidente da Sociedade Teosófica de Portugal, professora de Francês e poetisa. Muitas vezes lhe dei boleia, como antes tinha dado à sua amiga Cesina, já falecida, esta normalmente da Rua Santos Drummond onde tinha o consultório para o Campo Mátires da Pátria, onde morava na altura Guilhermina. Não sabia eu então que a Lhalhá, como os netos apelidaram a Dra. Guilhermina, viria a ser mais uma excelente pessoa que entrou na minha vida e que muito me tem inspirado. Apesar dos seus noventa anos há poucos dias celebrados, a Lhalhá não deixa de nos brindar com a sua encantadora presença, na casa da nossa sempre admirável Isabelinha, sua filha única, não obstante a natural fragilidade e comoção. A fada dos cabelos brancos, como ela lucidamente nos contava que um sem-abrigo seu conhecido a tratava. Era uma exímia contadora de histórias. Hoje continua a mesma pessoa reverente, amável, doce e serena. Que fará de cada das suas dores um ato psicoprofilático…

Há quem diga que o nosso melhor professor é o exemplo. E estes, não tenho dúvida, são pequenos grandes exemplos de serviço à humanidade. 

Parabéns, filho.

                                                         Lisboa, 3 de dezembro de 2012

                                                                          Rosa Duarte