terça-feira, 11 de dezembro de 2012

revista LER


FESTIVAL  LER  25 ANOS

No fim de semana passei por lá. Uma nova magia, é certo. Porque já não é aquele São Jorge com matinés de último cartaz, salas à pinha e bilhetes esgotados, mas não há dúvida que recebe o dinamismo revigorado e a versatilidade cultural.

No âmbito do Festival da revista Ler, fui no domingo ouvir. E ver a falar duas pessoas distintas. Gonçalo M. Tavares que é uma câmara inteligente multifocal, ou uma régie interna e externa da sua experiência de ser humano atento e sensível a tudo o que se pensa ou falta pensar e conhecer. Com palavras. E, duas horas mais tarde, António Lobo Antunes, o mestre da polifonia mental e sentimental das palavras inventadas. E quão belas.

Gonçalo M. Tavares escolheu um vídeo breve. Para falar sobre a avaria. Só ele estava em palco sob um único foco de luz. O resto era escuro e vultos esbatidos. De olhos baixos, fez uma breve saudação. Disse. Quando estamos com muita pressa dentro de um elevador, o elevador não acelera. Um recordista e uma senhora de cem anos chegam ao mesmo tempo. Há a nossa velocidade e a velocidade do mundo. O ritmo de um recipiente que não depende da nossa vontade. Há pessoas que nos dizem para andar mais depressa. Há outras que nos dizem para andar mais devagar. Tenho a sensação que estamos num recipiente em que não controlamos a avaria.

Continuou. Distraidamente começo a ler um livro. As avarias podem ser vistas. São falhas filosóficas. O carro não arranca. A luz falha. É algo que não pressupõe olhar para o outro lado. Se a avaria apanhar dois vizinhos no elevador, tal faz com que estes conversem e se conheçam melhor. A partir de qualquer coisa que não estava prevista (como no filme Cloud Atlas…). É a pedagogia filosófica. Todos nós temos a nossa avaria. Eu já vi várias vezes pessoas a ler porque tinham o computador avariado. O filósofo diz que a filosofia anda sempre à volta de um centro, do essencial. Sempre à mesma distância. Tem a ver com a morte, o medo, o desejo. A tecnologia é uma linha reta. Estamos fascinados com a tecnologia que nos afasta do centro.

A avaria é um corte. É qualquer coisa que permite que eu fique mais próximo do centro.

O olho. E pensou no olho. Há estudos de fisiologia animal. Por exemplo, o olho do polvo é apenas uma fenda na pele. Ver não é algo para sentir. Ler não é uma imagem como uma imagem através do olhar. Ver é por detrás da imagem. Ver é uma extensão do cérebro. A parte de trás é que faz o julgamento. Eu via apenas uma bola na minha direção. Então apanhava com ela. Só ver não chega. Ver é interpretar eticamente. O ver transforma-se numa leitura. Quando os nossos olhos tomam decisões. Nós percebemos que não somos imortais. As decisões tomam peso. Mas vivemos como imortais. Agimos como imortais.

O que é um leitor?

Um leitor é um animal que procura um esconderijo. A atividade de ler é de quem pressente que vai morrer. Não nos podemos afastar das tarefas.

O que é que é ler?

É como se os olhos fizessem um itinerário, uma caminhada. São os olhos a caminhar. Cada sucessão de letras pode ser uma surpresa. Há uma tensão diferente no gesto de pegar e ler cada livro. Há frases como que apanham a energia do relâmpago. A escrita e a leitura podem ter energia luminosa. Nós podemos olhar de lado. Ver pelo canto do olho.

Será que vemos a vida?

Se lêssemos a vida, os nossos olhos estariam sempre da esquerda para a direita. O olhar para a beleza é um privilégio. «Olhar uma obra de arte é uma operação às cataratas», dizia Malraux. É preciso termos tempo para parar e olhar o que é bonito.

Nós podemos começar a escavar. Ficar algum tempo no mesmo sítio. O que é mais alto, tem raízes mais profundas. Não é possível ser profundo se estamos sempre a mudar. Mas se depois de escavarmos batermos em pedra, perguntamos. O que é que faço enquanto não morro?

É que uma avaria temporária é uma oportunidade. E se for uma avaria definitiva?

A civilização vai-se degradando…

O que Gonçalo M. Tavares disse foi o que a minha memória julga recordar e o que os meus sentidos me fizeram chegar.

António Lobo Antunes teve um entrevistador. Estes quiseram olhar o público. Os projetores devolveram alguma luz à plateia. Então António conversou. A meiga voz, como de seu hábito. Lembrou pensamentos e palavras conhecidos e outros. O seu passado. Recordou o seu amigo José Cardoso Pires que colecionava frases de escritores (eu também gosto…). Reafirmou o seu gosto por fitas piegas. Há livros bons que não gosta e livros maus que lê. Love Story, por exemplo. E que há asneiras ótimas que não se pode falar delas.

Com 14 anos já queria ser escritor. Mas agradece não ter ido para Letras. Admite que cada vez fala mais da sua família. Lembra muito o pai. Acha que por defeito seu foi injusto para com ele. E fala de amizade. Para si, a amizade é uma delicada atenção. É instantânea. Como com o Zé. ALA gostava de morrer de mão dada. Os mortos andam por aí, citando Bento Domingos. Sente-se o cheiro. E citou: «Nada é mais imprevisível do que o passado.» Lembrou Jorge Amado, Eugénio de Andrade, Alves Redol, Vitorino Nemésio, Vitor Aguiar… Recordou palavras de um escritor oitocentista: «O mundo da literatura é uma cavalariça aberta. Todas as bestas lá entram.». Faz outra citação: «É estranho caminhar no nevoeiro. As árvores não se conhecem umas às outras.»

É impossível viver sem a eternidade. Quando António teve o cancro, o médico devolveu-lhe a eternidade. O minuto de Maria Antonieta foi eterno. O tempo na infância é imenso porque são dias de permanente descoberta. É a rotina que mata o tempo.

Por isso a cultura assusta. Imaginem que as pessoas se punham a ler Camões…

Não é meia-noite quem quer. Houve uma saudação física próxima de afeto.

Decerto continuarei a ler oportunamente a Ler.

                                                                  Lisboa, 9 de dezembro de 2012
 


                                                                                Rosa Duarte

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