sábado, 31 de dezembro de 2016

Hino à Beleza


HINO À BELEZA

Agora    atenta
Como posso conter
Meu sorriso
Na penumbra dos dias cinzentos
Se tu, Beleza,
Engrandeces
A Vida
No Amor Fraterno
E repousas teu luminoso rosto
Nas costas de um gigante,
O sentimento?

Agora    sensível
Como posso a emoção
Esconder
Se tu, Beleza,
Me encantas
Com a Alegria
De mais um dia
Abençoado de natureza
Morno entardecer
Na espuma solta
À beira-mar  leitosa?

Se és tu, Beleza,
Que cresces no firmamento,
Anfiteatro marítimo de estrelas
Cais candente intercósmico,
Não me dissuadas, ó Bela,

Do culto da Existência

Brindado
Bordado
Barco macio
Em frota alada
Timoneiro celestial
Infinito
Exposto humildemente
Irmãmente
Para agradecer
A roda dos desígnios
Maiores.



Rosa Maria Duarte

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Há o outro riso, o branco, in «O Canto do Cisne no Retorno do Eu ao Ato da Escrita»

3.1.         O riso branco e a ironia da morte


Só quem voltou para contar é que pode rir-se assim, garante. […]E ri-se, ri-se muito a cada página, mostrando os dentes como serras. A ironia da coisa, só a percebeu depois de ter despejado as palavras todas no papel e ao escolher o subtítulo Valsa Lenta, saboreado a cada passo, com o braço a fazer figas por trás da cintura da morte. Explica: “A ironia do relato não foi propositada. Só depois percebi que há humor na morte quando vista à distância.” (in Visão nº 217, de 15 a 21 de maio de 1997)
O humor e o riso sempre foram poderosos instrumentos facilitadores de interação e de afirmação de vontade humana. Na criação da obra de arte é fundamental o riso na liberdade do indivíduo para a sua construção pessoal e social. Esta vitalidade é multifacetadamente explorada pelo artista, que muitas vezes assume um papel importante na consciência crítica de um país ou de uma cultura. Não só o riso na cultura da vida como na cultura da morte. Segundo Friedrich Nietzsche, o Homem é o animal mais melancólico, mas também o mais alegre. A vida para o que ri da morte quer ser encarada diferentemente.
No homem, contudo, há mais de criança do que no jovem, e menos tristeza: compreende melhor a morte e a vida.
Livre para a morte e livre na morte; divino negador, quando já não é tempo de afirmar: assim compreende a vida e a morte.
Não seja a vossa morte uma blasfémia contra os homens e contra a terra, meus amigos; eis o que exijo da doçura da vossa alma.
Vosso espírito e vossa virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente inflama a terra; senão a vossa morte será malograda.
Assim quero morrer eu para que, por mim, ameis mais a terra, meus amigos: e eu quero tornar-me terra, para encontrar o meu repouso naquela que me gerou. (NIETZSCHE, Assim Falava Zaratustra, 1998)
 “Rir até que a morte nos separe”, como no título de uma peça de teatro da Associação Cultural de Recardães. Agora também o título de Jonathan Tropper Até que a morte nos una (J.TROPPER, 2015). É a ligação à vida segundo uma atitude talvez mais corajosa e entusiasta, pretensamente de sua aceitação ou de desdramatização, mesmo que momentânea e circunstancial, frequentemente por razões de melhor sociabilização.
Aqueles que vão respondendo aos apelos criativos e desenvolvem o seu talento artístico, que todos temos latente, vão podendo desfrutar do privilégio da observação interior de si a partir de cada experiência inédita, sendo o artista um útero da fecundação de ideias. Mesmo o escritor da morte dá vida às palavras.
A arte é uma vivência. É uma manifestação de experiências. Em potencial incubação de expressões. De diversíssimas interpretações da realidade. Da tristeza, com o humor. Como a previsibilidade da morte. É exemplo o epitáfio do ator Raul Solnado, pensado pelo próprio: “Aqui jaz Raul Solnado, muito contra a sua vontade.”
O que é mais sagrado para um humorista é a liberdade. E a doença aprisiona o Homem na dor e na incapacidade. José Cardoso Pires sentia-se incomodado com a ideia da aproximação da morte com dor e em situação de humilhação. E o riso permitiu-lhe encarar a vida de forma diferente. Porque a vida para o que ri é menos pesada.
Óscar Wilde (Pensamentos de Óscar Wilde, 2011) entendia que a vida já era séria demais, para falar dela sempre a sério. Se todos vamos morrer, porquê encará-la de forma chorosa ou sisuda. O homem humorista, quando é religioso e aceita a existência de um deus, é a de um deus que ri.
António Alçada Baptista tem uma obra que se intitula precisamente O Riso de Deus. O autor acompanha a vida de Francisco, o personagem central deste romance, nas suas deambulações pelo mundo dos acasos e encontros e da intimidade de algumas mulheres cúmplices da mesma procura, e instaura uma forma de questionamento radical que decorre do facto, inédito na sua escrita, de ser toda uma vida posta em balanço, tendo por contraponto esse limite que é a morte. Acreditando em Deus? Possivelmente. Mas um deus que ri, que joga, um deus apaixonado pela pura alegria de existir.
Em abono da verdade, creio poder afirmar-se que o catolicismo contemporâneo nasceu do riso do Papa João XXIII, da sua bondade, ao convocar o Concílio Vaticano II e promover a liberdade religiosa e o ecumenismo.
O Homem, na sua história mais remota, procurou proteger-se do medo do mundo e da morte através das práticas religiosas em penitência, logo evitando o riso, por este ser entendido como profano e aprazível. No fado português, por exemplo, que é uma expressão musical internacionalmente reconhecida, embora também tenha um pendor religioso e, sobretudo, de sofrimento, quando se refere ao riso, não se retrai e dá com frequência destaque ao riso solto e franco. («Lá vai a Rosa Maria que é a alegria desta ribeira/ouve e ri à gargalhada qualquer piada por mais brejeira” fado: a Rosa da Madragoa com letra de João Dias e música de Moniz Pereira).
Curiosamente, os sufis do Islão são considerados a gente que mais ri.
Ao longo da história da literatura ibérica são muitos os exemplos clássicos da música e do teatro em que o riso é reação libertadora do medo, apesar da melancolia característica da gente do mar e temente a Deus.
São de valor inestimável os tratados nacionais e estrangeiros sobre o papel do riso na literatura peninsular e europeia.
O riso é uma habitual ferramenta de descompressão na interação com os outros e na atitude que se quer facilitadora perante os problemas quotidianos. Mesmos face a dramas, como na doença. Daí que o riso seja algo quotidianamente etiquetável, consoante a expressão mais ou menos espontânea ou doseada de quem o produz. E as cores são popularmente associadas ao riso. Como o riso amarelo de quem não tem vontade de rir…
A base teórica dos estudos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin, acerca do riso e da carnavalização, e por Linda Hutcheon, evocam os conceitos que remetem, também, para o discurso carnavalizado, tendo como eixo norteador a crítica social, evidenciada através da paródia.
Nas obras de Cardoso Pires e Sampedro, o riso que aí é descrito é mais o branco, porque há uma urgência em rir para afugentar a “mulher de branco”. Até pela desmemória do escritor português, pela incerteza do sucesso operatório das enfermidades dos seus colegas de quarto; pela condição física indolor de Sampedro nos Cuidados Intensivos. “[…] me he perguntado, mientras estoy escribiendo, si no será que en el Monte Sinaí he adquirido una nueva memoria en lugar de la habitual, lo mismo que la serpiente cambia de piel entera y deja atrás su camisa” (SAMPEDRO, 1998:36)
Segundo Bakhtin, neste caso “é como se víssemos um vestígio do riso na estrutura da realidade a ser representada, sem ouvir o riso propriamente dito” (BAKHTIN, 1982:142).
Na revista Ler de outubro 2008, a escritora e jornalista Filipa Melo escreveu um texto In Memoriam a José Cardoso Pires que subintitulou «Ars moriendi: um riso branco». Esta expressão latina «ars moriendi», que significa a arte de morrer, foi originalmente usada em dois textos latinos do século XV que foram guias da tradição ocidental para ensinar como morrer.
O ato de escrever sobre a morte é uma forma por excelência de refletir sobre a arte de morrer. Daí que faça sentido falar da arte de morrer em De Profundis, Valsa Lenta, porque havia alguma consciência da desmemória de si num encontro de serenidade natural.
O texto de homenagem de Filipa Melo parte da proposta de não se procurar nada e se achar tudo para que José Cardoso Pires seja lido e não contado, passados os respetivos anos após a sua morte. A sua escrita, filha do jornalismo e de algum modo da influência de escritores norte-americanos como Hemingway, continua a falar por si.
Linda Hutcheon (1985) aborda a paródia que é um ingrediente evidente no episódio dos companheiros de quarto de Cardoso Pires, qual estratégia retórica utilizada para despertar a consciência do leitor, neste caso, para confrontar o mortal com a doença e com a morte. A paródia, de acordo com a esta autora, é um processo integrado de modelação estrutural, de revisão/reexecução, inversão e “transcontextualização” – formas de reciclagem artística – de obras de arte anteriores.
No âmbito da temática académica do retorno ao ato da escrita, é conscientemente uma procura não definida da genologia deste testemunho.
Memória, Memória Descritiva e, daí, Memória duma Desmemória poderia chamar-se a este relato se o rigor científico me tolerasse um título de metáfora tão esguia e o gosto da escrita o não rejeitasse por exibicionismo fácil. Todavia, culpa minha, foi na memória ou na tragédia da memória que, com maior ou menor erro, concentrei o acidente vascular cerebral que acabo de redigir. Se esse enfocamento é aceitável do ponto de vista neurológico não sei, mas foi a experiência sofrida que mo ditou na interpretação forçosamente diletante em que a tentei descrever. (PIRES, 1998:65)
Auge da maturidade literária que não é proporcional ao tempo de vida, é ela mesma variável e discutível, seja mais aos quarentas como em Fernando Pessoa, aos setentas como em José Cardoso Pires ou aos noventas como em José Luis Sampedro.
Filipa Melo refere-se ao «modo josé», pois é um autor que sempre foi avesso ao modo indireto de dizer as coisas. Como também José Luis Sampedro, no seu inseparável jeito interventivo de economista da igualdade social.
Com um caráter vertical invejável, José Cardoso Pires teria «pavor do ridículo literário», como um reflexo do «nojo» que sempre sentiu pela pequena burguesia, de que descendia. Na sua linguagem, rejeitava o barroco, a redundância, o equívoco e o medíocre, porque os associava à deferência graxista, à genuflexão e ao salamaleque. Os seus livros falam da dignidade e desse esforço no ofício da escrita, de uma procura contínua de «conta justa, pincelada sem alarde». Com humor, q.b..
Corvos santificados, mártires à maré e doutores heréticos a receitarem milagres, espécies destas só em Lisboa. É um povo de cais e fado a cavalo dum diabo complacente, a gente que aqui se faz. Por isso, o à-vontade com que se junta na mesma cama o pecado com a virtude e o engenho com que sabe por uma vírgula burlesca numa estória de má sina. Por pudor é capaz de dizer amizade em insulto enternecido, por desdém agride à maneira de elogio: "Chico esperto, mãozinha bruxa", chama ele ao traficante desalmado. No entre-suspeito ouve de manso, pois sim, está bem abelha, e fala pianinho para prevenir e aclarar. Mas se o caso não entra nos acertos é capaz de perder a paciência e então, "gatos ao mar", arranca em discurso de finalmente.[...] (PIRES, 1997:42)
Por isso ele corrigiu os seus livros até à exaustão, “até à boca da impressora”. E o seu bom humor e ironia, apreciados por muitos, pelos seus colegas de escrita, como António Lobo Antunes, Jorge Amado, e tantos outros, não lhe comprometeram o tempo de sobriedade no recolhimento voluntário e necessário para a sua escrita.
Um dia foi chamado a um momento difícil de contingência humana, confronto com a commedia della paura, “uma pega de caras da morte concretizada por uma razão trocista.” Um AVC.
Era um escritor que explorava o estar consigo próprio e a consciência de si. Escreveu sobre como se via, escritor fumador, a pensar ao espelho, a «ver para lá» e a «ver para trás» e a duvidar-se (E Agora, José?, 1977). Já com as duas filhas, uma casa ao lado da igreja de S. João de Brito, em Alvalade, veio a comprar a casa da Costa da Caparica só para escrever, num isolamento voluntário, virado para o mar, que tanto apreciava. Ele sabia que a vida demasiado social, como a de Hemingway, poderia condenar a sua carreira de escritor.
A “revolução dos cravos” fora-lhe muito cara no que significou de direito à liberdade. E o seu romance, O Delfim, já então publicado, constituiu «uma crítica feroz ao saudosismo português», no que de revivalismo fascista alguém o experimentou.
A vida fora-lhe sempre rica em experiências:
Depois de ter sido - fôlego - comissionista de drogaria, apontador de cais, praticante de piloto sem curso expulso em apenas sete meses, agente de vendas, correspondente de inglês, intérprete de uma companhia de aviação, «copy-writer» de publicidade (fonte para Alexandra Alpha, a protagonista do romance homónimo que motivava nele um «particular orgulho»), editor, jornalista, cronista, professor universitário de Literatura Portuguesa e Brasileira, Cardoso Pires, com dez livros publicados, vive só da escrita. Ao espelho, José, «um gato escaldado por cinquenta anos de água benta que mia dobrado a adivinhar a chuva», pergunta: «De resto quem te ouve? Quem dá crédito à tua liberdade?» (MELO, Filipa, in revista LER, «José Cardoso Pires in Memoriam», 2008)
O riso face à morte é lúcido e ironicamente indignado.
O seu amigo Alves Redol, com quem chegou a passar algumas das suas férias, morreu solitário nos seus ideais e fê-lo pensar e lamentar um país que não escuta os seus escritores, porque são considerados «animais incómodos». Em vários textos (em Dispersos 1, Dom Quixote) insurgiu-se contra a «estratégia do requiem», o «elzevir necrológico». O elogio artificial aos mortos. Mas Filipa Melo interpela-o:
Mal sabes, agora, José, quando te questionas sobre quem te ouve, que virás a ser um dos escritores portugueses mais celebrado em vida, com o reconhecimento e os prémios nacionais mais importantes, e o único em tão estreita, e sarcástica, comunicabilidade com o tempo que será capaz de escrever sobre a morte própria, a fazer-lhe figas como os gatos. (in Revista Ler, outubro/2008)
Ao espelho, o escritor vê-se e vê que «o mal é esse». A manipulação das coordenadas temporais e a busca de «um tempo português» («O Tempo Dentro de Nós», Diário de Lisboa, 6.5.1970). O tempo circular «inventa[-se] quotidianamente para iludir a morte», tal qual o trabalho da escrita. Filipa explica isso:
Na oficina de Cardoso Pires, o tempo recusa a vida percorrida «de bloco-notas na mão», é antes feito da seleção da memória «das coisas, dos seres, dos cheiros» que permite a realidade objetiva e os sentimentos. É tempo sem Deus, tempo honesto, suado (dirá a Alexandre Pinheiro Torres: «o que se escreve sem esforço ninguém o lerá com gosto»), responsável, individual, em aproximação contínua ao que António Lobo Antunes, um dos dois ou três amigos íntimos do escritor, definiu como um «núcleo impartilhável de vida, cheio de sombras e recessos, que as tuas personagens nos traziam como que por acaso, no desleixo vigiado sem o qual a elegância não existe» (crónica «Para José Cardoso Pires, ao ouvido», Público, 24.1.1999).
Algum tempo de recuperação e José Cardoso Pires retorna ao ato da escrita, reconstruindo a sua experiência mnésica em De Profundis, Valsa Lenta. Na primeira pessoa. O «Eu» transformado «noutro alguém». Na manhã de 12 de Janeiro de 1995, ao jeito de cartilha «Como te chamas?», José responde: «Parece que é Cardoso Pires.» Foi internado de urgência no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde lhe foi diagnosticado um acidente vascular cerebral (AVC) de gravidade acentuada, provocado por um coágulo de sangue que se alojara na zona nobre do cérebro, o hemisfério direito. Durante oito dias, embotada a memória, em estado de afasia, o escritor despersonalizou-se, «tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal». Entretanto, um telex da agência Lusa descreve o seu estado clínico como correspondendo a uma «morte cerebral»; ele chamar-lhe-á depois «branca e amável», «branca e nula». Irónico, cita uma das frases que lhe soa bem: «A notícia da minha morte foi um exagero.» (Mark Twain)
Em 1997, Cardoso Pires escreve De Profundis, Valsa Lenta com­pe­li­do talvez por aquele fenómeno que os téc­ni­cos cha­mam «sín­dro­ma de Lá­za­ro». O retorno espontâneo da circulação, após tentativas frustradas de reanimação. O resultado é este registo literário que é uma ex­pe­riên­cia de quase-mor­te e a recuperação das capacidades cognitivas e discursivas.
Sendo a maior (e mais instintiva?) proeza técnica do escritor, uma competição desenfreada entre o Eu e o Outro de si (a primeira e a terceira pessoas verbais), o livro exibe a condição humana na mais crua luta pela sobrevivência e na mais profunda simbiose com o poder da imaginação. Para uma morte branca, ao espelho, José convoca uma escrita de uma brancura iluminada: «essa escrita branca foi sempre o meu sonho, uma escrita despojada, uma escrita substantiva tanto quanto possível» (entrevista a Maria Teresa Horta, Diário de Notícias, 11.7.1997).
No prefácio, o neurologista João Lobo Antunes explica por que é «intrigante» este caso clínico, um «testemunho impressionante de como o génio criativo floresce no sofrimento». Perante a morte, o escritor portou-se como um marialva («Hemigway disse: “[A morte] é mais uma Puta.” É isso. Pena que a definição não seja minha.» - entrevista de Maria Leonor Nunes, JL, 21.5.1997). De frente para a morte, José Cardoso, descarado, ri, com as suas gargalhadas comedidas, inesperadas e nada católicas. Constrói na tragédia uma comédia negra, e põe a navegar uma (des)razão surrealista.
“Satanás deve-se fartar de gozar com os sinais de humor da morte. O que eu vi naquele hospital, o que eu senti…tudo aquilo tem um humor terrível.” (entrevista a Filipa Melo, revista Visão, 15/5/1997)
Após De Pro­fun­dis, Val­sa Len­ta, Cardoso Pires regressa ao jogo do tempo de vida. Nunca aquela que possa existir para lá do tempo, mas a que põe em causa a sua duração. Como num jogo de miúdos, interroga-se quanto tempo mais quer…
A preocupação é ontológica, de encontrar um caminho para terra incógnita, sem dor, sem humilhação e sem metafísicas. Entre 1996 e 1997, conversamos por várias vezes sobre a morte. O que fica dessas conversas é o caso humano, sui generis, p’rás urtigas com a literatura, que só servirá para que ainda publique um «requiem» a Lisboa, como se navegasse, como se navegasse, «ancorado à cidade que [o verá] partir» (Lisboa, Livro de Bordo, 1997).
José Cardoso Pires diz que: «A morte faz parte do cerco da vida. […] Não há imortalidade. Morremos e morre tudo, não existe mais nada.» Aos 71 anos, agnóstico («a minha mãe era uma católica fervorosa e, por isso, fui criado numa igreja um pouco de campanário: aliás de onde saíram muitos agentes da Pide...»), Cardoso Pires despreza a Igreja, que é apenas «uma entidade desmitificada, uma força social». Admite que a vitória sobre a morte até pode ter surgido como «um milagre», mas um milagre da Ciência, pela qual passou a sentir um fascínio «quase infantil, quase idiota», e um feito de médicos como João Lobo Antunes, «grandes na sua profissão, ligados à humanidade e ao coração e, ao mesmo tempo, com um humor criativo». Preocupa-o o medo físico do fim porque «Não quero que me mantenham à tona deste planeta a fazer figuras tristes»; rejeita os balanços de vida («até porque não me convinha fazê-los») e escuda-se com «a ironia da morte».
Dizem-lhe que: «Está com um óptimo aspecto.» Responde, sem pontos de exclamação, antes com uma monotonia escarninha: «Pois, não estou morto.»

Humor negríssimo, iluminado entre ruínas, a lembrar o diálogo a duas máscaras daqueles dois homens-corvos no quarto do hospital, «dois passarões arruinados, a agredirem-se e sem consciência de que se refugiam no humor para fugir ao medo que têm da morte». José tem a certeza de que Satanás se farta de rir com estes dribles, se calhar até foi ele que lhe deu o neologismo, «simoso», a arma pronta para designar todos os objetos, tudo à volta, sem vulto, nulo: «Desligava-me das coisas porque sabia que só era capaz de as fixar durante alguns segundos. Aceitava o mundo com um fatalismo transigente.»
Apesar de não se sentir inquieto no seu estado instintivo de aceitação, sabia que o riso esgaçado dos seus companheiros de quarto era escurecido pelo medo e agravo da morte. A sua doença começou com «um desmaio súbito», um sono misterioso que acabou «como um tipo que põe o sujeito e o predicado numa frase, para a meio e depois regressa para lhe colocar o complemento».
Regressou à vida com a sua fúria felina de fixar o território, num encantamento agradecido, «como se estivesse bêbado, imensamente grato a um mundo que me parece absolutamente maravilhoso». Em pouco tempo, estava de novo a ver para lá («Pá, lava-me essas rugas. Riscam o espelho.») Um tipo resiste e marra e escoiceia, «esse é [também] o modo josé de rosnar a vida». Um tipo tem é que se documentar, estar preparado. Avaliar e golpear a memória.

A memória vasculhada no seu hábito das pesquisas, e quanto à morte não seria diferente. Cardoso Pires começa por semear referências, bibliografia, recortes, espalha-os pelo caos cifrado do escritório da casa de Alvalade. Algumas que já foram citadas no capítulo da receção desta obra. Dá conta do que foi o início desta viagem à desmemória com uma citação de Rainer Maria Rilke: «Oh Senhor, dai a cada um a sua própria morte! Aquela que provenha da vida, em que conheceu amor, sentido e desespero.» Está num ensaio que oferece os sublinhados que fez nele que são uma chave para aquilo que também ele defende. O livro chama-se How We Die (Cómo Morimos, na tradução espanhola, da Alianza Editorial, de 1995) e foi escrito em 1993 por Sherwin B. Nuland (SBN), professor de Cirurgia e História da Medicina na Universidade de Yale, um registo de experiências de quase-morte.
Cardoso Pires destaca, em sintonia com a linha de pensamento de Nuland, a risco fluorescente: «Sinto mais curiosidade pelo microcosmos do que pelo macrocosmos; interessa-me mais como vive um homem do que como morre uma estrela, como uma mulher abre caminho pelo mundo do que como um cometa cruza os céus. (…) O mistério que me fascina é o da condição humana, não o da condição do cosmos. (…) Nada me agradaria mais do que uma prova da existência [de Deus], assim como de uma bem-aventurada vida futura. Mas, por desgraça, não vejo qualquer indício dela na experiência de quase-morte.» O escritor fizera essa «marcha de sonâmbulo iluminado» (De Profundis). E concluíra que o ars vivendi é o ars moriendi (SBN), sem intermediários, transitivos ou reflexos.
José Cardoso insiste que o instrumento para a arte de morrer é a dignidade, acima de tudo. Quem por ela levou a vida direito, tem direito a morrer com ela («Não há maior dignidade na morte do que a da vida que a precedeu», SBN). Admira os médicos que asseguram aos seus doentes uma morte fácil, acompanhada, lúcida, mesmo com recurso à eutanásia ou ao suicídio assistido. Num documentário, dirigido por Clara Ferreira Alves e emitido em 1998, assegura: «A Medicina não anda cá só para curar, anda a ajudar a matar também, é fundamental. Por isso é que eu tenho uma grande admiração pela eutanásia, eu tenho um grande respeito pela morte ajudada, e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.» 
José Cardoso Pires morreu a 26 de outubro de 1998, após mais de três meses de coma profundo provocado por uma paragem cardíaca e respiratória. De certeza que nesse dia, a essas 2h30 da madrugada, um anjo sobrevoou a cidade: «Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra.» (Alexandra Alpha).
Um tipo livre, o Pires, sem peneiras, amante de universos marginais, tinha de acabar numa história rara, com uma geometria misteriosa como a que desejou às suas personagens. A história é a de José, um homem que escreve colado ao seu tempo, regista a identidade de um país sem cor, autofágico e fechado, depois perde ele próprio a identidade num passe que afinal lhe abre a desmistificação do processo maior, o da morte. Distinguem-no lucidez, independência e coragem e, sobretudo, o riso, um riso branco até contra a morte, que «é sonho e esquecimento» (SBN). De resto, e agora: quem te ouve, José? Quem dá crédito à tua liberdade? E José responde, de profundis, com a sua voz cava: «Disse e vivi, Acta est fabula
Os seus amigos, que são muitos, recordam a sua verticalidade e humanismo, nomeadamente político-partidária. Alexandre Pinheiro Torres recorda-o assim:
É esta frase que eu relembro de José Cardoso Pires (para ele a ouvir-me no Panteão?): «Escrever é duro. É muito trabalho, Alexandre. Mas o que se escreve sem esforço ninguém lerá com gosto.» Magister dixit. Até porque José Cardoso Pires estava e não estava em Lisboa, cidade que ele adoptou, cantou e celebrou. Mas, no fundo, a roê-lo, a região pobre de onde saiu (Peso de Vila de Rei, Castelo Branco, Beira Interior), a que um dia chamou de «Sicília Abandonada, deserto de pedras, padres e pedintes». (in Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 105-112)
Quando se deu o 25 abril, apesar da luta continuar pela causa comunista que lhe valeu um certo carisma, a sua saída do Partido foi aceite pelos camaradas, como nos revelou o seu velho amigo Urbano Tavares Rodrigues.
José Cardoso Pires foi muito apreciado por Urbano pelas exímias narrações das noitadas de Lisboa, destacando a preferência do autor pelo livro Alexandra Alpha. Partilhou com José Cardoso Pires a sua paixão pela liberdade. Para Urbano, Che Guevara foi o seu modelo de luta pela liberdade, que conheceu pessoalmente. E também o nosso Salgueiro Maia.
A Lisboa de Cardoso Pires era, sobretudo, os lugares que ele gostava de frequentar. Que entretanto muitos foram desaparecendo. O próprio ambiente é outro.
Por exemplo, o Bolero no Martim Moniz, o Conde Redondo, a Sé, o Parque Mayer, a cervejaria Ribadouro (“uma baía de cascas de tremoços com canecas à mistura”). Na sua escrita, às vezes sarcástica, a ternura é quase impercetível por pudor, (como na sua própria vida), em que os humanos são prisioneiros do seu destino.
            Em Alexandra Alpha, por exemplo, estão misturados todos os elementos geradores do fatalismo: solidão, erotismo, álcool, violência, impotência e a morte.
Foi então que se ouviram na guitarra as notas do Fado do Arsenal: o bando dos bêbados calou-se imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e levantava a mão a impor silêncio e concentração.
Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a aclarar o tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas. E pronunciou sem soltar um som a letra do Fado do Arsenal, batendo os lábios ao ritmo do instrumento e com as pausas, as voltas e os arrastados que mandava a regra. Fazia os gestos sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem uma palavra, sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som.
Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se a cantar. Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som, lendo-lhe a letra nos lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa única, disse François Désanti, ouvir um mudo na voz dum coro de bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e quase religioso. Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias figuras ao mesmo tempo. (PIRES, 1987:111-113)
            José Cardoso Pires, escritor e homem de Lisboa, é um nome associado ao museu do fado, ao portal do fado, ao livro de oiro de Alfredo Marceneiro, ao fado vadio, ainda que haja registos pouco credíveis de que se tivesse manifestado no ano 1973 a desfavor do fado com letras de poetas eruditos, opinião que José Gomes Ferreira e o artista plástico Júlio de Sousa teriam partilhado na altura. José Gomes Ferreira, que numa das suas crónicas chamou às casas de fado “casas de sofrer”.
            Amália Rodrigues foi apoiada nomeadamente pelos literatos Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira e Alexandre O’Neil. E ainda hoje são cantados os nossos poetas em bonitos fados. Como Nuno Júdice por Carlos do Carmo.
            Na entrevista (em anexo 2.) com a filha mais velha do escritor, a Ana Cardoso Pires, esta assegurou-me que o pai nunca se opôs à poesia literata como letra de fado, bem pelo contrário.
            Na entrevista a Artur Portela em Cardoso Pires por Cardoso Pires, José Cardoso Pires refere com orgulho que vivia na rua Carlos José Barreiros, em Arroios, na qual em frente da sua porta vivia o Manuel de Oliveira e logo ao lado o poeta Senhor de Brito, que era redator do semanário A Canção do Sul e companheiro de grandes fadistas muito aplaudidos daquele tempo como o Miúdo da Bica, Frutuoso França, Natalina Bizarro, Mário José Paninho. (PEDROSA; 1999:23)
            E no Jornal de Letras de 19 de novembro de 1997, Cardoso Pires reafirma o seu amor ao fado e à cidade de Lisboa, a propósito da sua última publicação de crónicas Lisboa, Livro de Bordo.
            Um fado da vida que não pesa e que, encarado com sentido de humor, parece gostoso e repetível. “En el umbral de los ochenta años ya va siendo hora de empezar de nuevo.” (SAMPEDRO, 2013:84)
            Viver em liberdade e morrer em serenidade. Confidenciou José Cardoso Pires: “Se eu tiver aquela morte, estou porreiro.” (PEDROSA, 1999:112)

Rosa Maria Duarte


Autobiografia (página 15)

Como vocês já devem ter notado nas fotografias, eu comecei por ser uma criança que evitava o contacto visual e não gostava muito de sorrir.
Os meus pais tinham medo de intrusos menos pacíficos no bairro popular que era o bairro de Alcântara. Mas a gente que lá vivia, ainda que muita com problemas económicos e familiares, era quase tudo boa gente. É certo que tínhamos muito perto o Casal Ventoso, mas não era por aí...
Contudo, a educação era (para as raparigas) não entrar em cafés, não falar com estranhos, enfim, como o meu pai dizia: - Ter personalidade. E a minha mãe acrescentava: - Muito riso, pouco siso.
Eu era o protótipo de menina tímida e obediente. Portanto não sorria.
Só que a certa altura, a vizinha começou a fazer o reparo. Muito educada, sim senhor, mas com cara de poucos amigos.
Então nova estratégia conselheira aliviou-me o tom sério. Pouco a pouco, comecei a ser simpática e a esboçar um sorrisinho. Aliás, comecei a observar as minhas pares.
Há aquela alegria espontânea das crianças na qual os pais não têm (muita) influência. E que as torna irresistíveis. Eu não era assim.
Tinha muitos irmãos. Convivia com eles. Não tinha problemas de comunicação. Mas com a adolescência fui-me tornando mais fechada. Até porque eu era apreciada por ser boa ouvinte e melhor conselheira. E não fazia os meus próprios desabafos. Daí a importância da escrita na minha vida desde muito nova.
Agradeço ao olhar sorridente e ao canto que abriram a minha personalidade e me ajudaram a ser mais eu.
Mas isso nem sempre me facilitou a vida...
Saber adequar as nossas atitudes às circunstâncias é uma mestria que se ensina, se aprende e se depreende. 
As relações humanas continuam a ser, a par da satisfação individual e grupal, de permanente instabilidade e preocupação, mesmo entre países, devido mais à desconfiança por fraco conhecimento do outro do que à falta de bons sentimentos humanos. 

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

As brumas de Deus

Sinto as brumas de um Deus no orvalho das largas folhas
ervas que dançam verdes-divinas ao cair fresco da chuva,
árvores de fortes ramos e pinhas de natal a ganhar balanço
no vento uivante e de um gelo metálico inverno-azul frio
e água dura no lago-espelho do rosto-infante-ave de Deus.

Olho o imenso nevoeiro quase-alado de perfume telúrico
terracota de húmus e raízes fundas de vida firme no amor
de alguém maior que o universo num céu leitoso de cinzas
desenhando rostos mudos de olhar brilhante fixo e sério
faces e faces sempre novas e luzidias de vontade divina.

Recebo na pele a dor de um abraço desesperado do acontecer
e a cor rosada na face que me alarga o infinito imaculado
semeando um Deus que quer habitar um coração pequeno
de amor pelas mãos inchadas e amorosas do Criador
que me adormece todos os dias no calor de mais um sonho.

Rosa Maria Duarte