3.1. Da música e da literatura
A literatura e a música convivem de muitas
maneiras, umas vezes completando-se, outras simplesmente acompanhando-se
(LONGRE, 1994:7)
A literatura e a música pertencem a sistemas
semióticos comparáveis. Tanto a linguagem verbalizada como as notas musicais têm
origem na voz humana e são sons.
O texto linguístico e a partitura musical combinam
desde a origem da nossa civilização. Na Idade Média, o poeta tinha que saber
escrever, compor e ter uma bela voz. Muitos andavam de terra em terra a distrair
e a ensinar as populações.
O teatro, já desde a Antiguidade Clássica, com
palavras e o som aliados às artes plásticas e ao guarda-roupa, tem constituído
um espetáculo de confluência das múltiplas áreas do saber.
Mesmo na prática religiosa, a letra e a
música têm sido imprescindíveis à boa encenação ritualística e à atitude devocional
e espiritual.
É inquestionável o apelo que o escritor sente
pela música e vice-versa. Há muitos compositores que passam a escrever letras e
letristas que passam a compor. Escritores que se tornaram músicos e músicos que
passaram a escrever peças de música.
Os conceitos de autor e polifonia surgem
associados tanto na música como na literatura, ainda que com uma semântica naturalmente
específica.
Segundo Longre, Rousseau defendeu que o homem
começou a cantar antes de falar. Que a música vem antes da palavra porque é uma
linguagem universal, vinda do coração, das emoções, das paixões e da Natureza
(LONGRE, 1994:18).
Ao comparar a música e a literatura,
verifica-se que, ao longo da sua história, o princípio era o da imitação da
realidade, ou seja, da natureza das coisas e dos homens. No século XVIII,
nomeadamente com Rousseau, a música é vista como a língua das paixões ao
remeter para o universo moral.
Segundo Rousseau, a música e a literatura despertam
no corpo e no espírito os sentimentos que evocam, interpenetrando-se e
completando-se (ROUSSEAU, 1755/1781).
A literatura e a música conjugam-se de forma
única no próprio processo de criação para o fim último que é a obra de arte.
Juntas, elevam-se ainda mais no espírito do criador e, segundo um entendimento
bíblico dos talentos dotados ao homem, atingem o excelso da criação divina.
Esta relação-invenção ou relação-criação é uma
condição para a investigação comparatista.
Trata-se de uma nova visão e uma redescoberta
dos fenómenos que se julgavam já estudados.
É o polimorfismo comparatista que anima a
atitude dos que viram a Literatura Comparada em crise, repensada por René
Wellek em “The Crises of Comparative Literature” (1958).
Os estudos comparatistas continuam a trabalhar
com outras disciplinas, incluindo as artes plásticas e a música.
A literatura já não é considerada superior à
música e a música já não tem o exclusivo de despertar emoções.
Com o Romantismo, o músico atingiu um
estatuto social nunca alcançado. A música desempenha um papel mais ativo e até
mais filosófico. Nas obras literárias, a música apresenta-se como oportunidade
de as personagens se descobrirem a si próprias e, muitas vezes, desencadearem
um processo de redenção e purificação da alma. Como o «De Profundis» de Mozart.
Para muitos escritores e poetas do
Romantismo, e também desde então, que a música não é apenas uma presença na
escrita. A música é uma ajuda para gerar ideias e para desencadear o ato
criativo na atividade literária. Pode ser uma verdadeira inspiração ou, então,
ajudar a um simples despertar da imaginação que se constrói em interação com
ela.
Natureza, viagens, solidão, melancolia são
alguns dos temas do Romantismo que se espelham também no fado. Em Portugal, são
desta altura os primeiros registos da música marginal urbana que é o fado, cujos
fadistas começaram por ser apenas pessoas do povo e até marginais. Não há
dúvida sobre o seu pendor fatalista e romântico à sua maneira, capaz de
despertar a máxima emoção e de provocar paixões. Mas são sobretudo retratos do
quotidiano citadino que animam o fado.
Poema musical ou música poética, o facto é
que por vezes a fronteira entre estas duas artes é difícil de demarcar.
O nosso fatum
não pode continuar imperturbável. É Pessoa quem nos diz, um jovem educado no
culto de um individualismo quase excêntrico. Como perturbá-lo? Criando uma
explosão poética mais libertadora da nossa consciência.
Liberdade pela arte. E não há arte sem
liberdade; ainda que a liberdade individual seja, em boa parte, uma construção influenciada
pelas vivências e experiências. José Rodrigues Miguéis dizia: “O universal está
no meu quintal. A questão é saber cavar”. O ato criativo, que é individual, é
uma linguagem universal.
Pela ficção, a arte literária livra-se da
tirania dos factos.
Há sempre uma função social inevitável da
literatura, até pelo seu pendor de imortalidade, mas o ato criativo é um mundo
em si-mesmo, com um olhar próprio, uma linguagem sua, que não é duplicação da
realidade.
São muitas as cumplicidades comunicativas nas
linguagens artísticas. A escrita com a música e o desenho, por exemplo, em De Profundis, Valsa Lenta de Cardoso
Pires. Naturalmente, as obras autorais exigem desses humanos o génio que os
habita. Humanos, por ventura, tão inquietos e inacabados quanto qualquer outro.
Que recorrem à intertextualidade e à multidisciplinaridade para chegar mais
perto do leitor.
Se a arte só pudesse ser feita por
pessoas-modelo, os santos seriam os maiores artistas. O caso de Wagner, segundo
o próprio Nietzsche, é exemplo da genialidade e do desconcerto ideológico…
O próprio título De Profundis, Valsa Lenta é todo ele uma metáfora musical. Embora o
De Profundis seja o requiem escolhido pelo autor para
remeter para a temática da proximidade da morte, a expressão Valsa Lenta apela à dança de compasso
binário lento que o acidentado associa para se rever, na sua escrita, em
situação de parceiro numa dança com a morte, que não tem pressa e interage com
ele suavemente durante os dias em que perdeu quase completamente a memória: a
«morte branca» ou a «viagem à desmemória».
Com o
despertar dessa «quase hipnose», José Cardoso Pires regressa a casa, à sua
Lisboa, “[…] em saudação de primavera em pleno mês de Janeiro […]” (PIRES,
1998:62), saído da babilónia do Hospital de Santa Maria e põe música de fundo, mas
agora uma música burlesca “[…] se possível, como o «Quarteto das Dissonnâncias»
de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a música é um
privilégio abençoado […]” (Idem,
1998:62)
Regressado
à quase normalidade dos seus dias lisboetas, “Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol,
cá vou eu […]” (Idem, 1998:61) no seguimento
do estudo do testemunho autobiográfico de José Cardoso Pires, sentimos necessidade
de conhecer os passos mais secretos do homem que ele foi, amante das tertúlias
e da boémia. Percorrer os lugares da Lisboa que tão bem vivenciou e desfrutou.
Conhecendo Lisboa “por dentro”, como só ele a
conhece, José Cardoso Pires, à sua maneira, emitiu-lhe o bilhete de identidade
e após uma marca inconfundível por debaixo do retrato. Com isto, a imagem é da
cidade, a impressão digital é muito dele e o documento acaba por ser de ambos.
(Vasco Graça Moura, »José Cardoso Pires e o Prémio Literário D.Dinis, em Actos da Homenagem a Cardoso Pires – 14/15
Maio 1998, Areal Editores, maio 1999)
De
forma ainda que indireta, reconhecer na Lisboa de Cardoso as raízes da cultura
ibérica que subjaz à influência poético-musical, igualmente cara a José Luis
Sampedro: "morir
forma parte de la vida y me gustaría escuchar hasta la última nota" (in
carta de Marga Iraburu de 12-09-05). A
ação humanista de Sampedro está, por exemplo, conotada no blogue «A Viagem dos
Argonautas» com o fado de Coimbra «É preciso acreditar» de Luiz Goes, pela
temática socialmente interventiva.
O facto é que José Cardoso representa, também
no De Profundis Valsa Lenta, o homem
da capital que recobra o ânimo aos primeiros sinais quotidianos da vida
lisboeta. “[…] e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de
papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao
volante. Escrevo: é um meio-dia de inverno.” (Idem, 1998:61). É como se a manhã o tivesse salvo, agora que já é
meio dia e sente que recuperou a identidade, logo a liberdade de ser quem é.
“Quem pinta, pinta-se” é uma frase que define
uma postura de reflexão sobre si-mesmo, mas fechada e redutora; porque quem
pinta de olhos e mente aberta, reinventa os modos de estar e dizer-se no mundo,
abrindo-se paralelamente ao mundo e suas significações. (JAIME SILVA, 2013)
José Cardoso Pires, que era muito amigo de
artistas plásticos como Júlio Pomar, dizia-se mais próximo destas pessoas do
que propriamente dos seus colegas escritores. (vídeo Grandes Livros – Episódio 3: “O Delfim”, José Cardoso Pires, 2009,
parte 1/6)
A noite, propiciadora ao convívio, foi-lhe inspiradora
pelo seu fascínio. Este José que se sentou muitas vezes ao balcão a escrever,
perto da televisão (que havia na altura) do Procópio, no bar ex-líbris da zona
das Amoreiras, frequentado por jornalistas, políticos, artistas como a Amália
Rodrigues, enquanto esperava pelos seus amigos, como me confidenciou o
funcionário mais antigo da casa. Mas habitualmente era visto à conversa, como afirmou
a proprietária do referido bar, Alice Pinto Coelho, em entrevista à revista CARAS:
– O José Cardoso Pires
escreveu, a respeito do Procópio: “Um
chafariz à porta de um bar é cá uma saudação que enternece o maior malvado.” Era outro assíduo?
– Muito assíduo. Escolhia sempre a mesa 2, onde estava o Nuno Brederode dos Santos, e ficavam a discutir até às tantas com todos os que, entretanto, se juntavam a eles. (Revista CARAS, 17 out/2011)
– Muito assíduo. Escolhia sempre a mesa 2, onde estava o Nuno Brederode dos Santos, e ficavam a discutir até às tantas com todos os que, entretanto, se juntavam a eles. (Revista CARAS, 17 out/2011)
No seu retorno à vida, que considerou um
renascer, a música foi a expressão artística que elegeu: “[…] já lá dizia o
empreiteiro Ramires por outras palavras.” (Idem,
1998:62).
Naquela Lisboa onde também o fadista Carlos do Carmo teve o privilégio de
conhecer o José Cardoso Pires (mais o Zeca Afonso, o Mário Castrim…), quando
regressou à capital (JL nº 1124, nov.
2013). Na Fotobiografia de José Cardoso
Pires, Inês Pedrosa afirma que José Cardoso ouvia “[…] a voz imensa de
Carlos do Carmo, sobretudo trazendo dentro a voz do seu Alexandre O’Neill, numa
Gaivota que o Zé ouvia até à exaustão, sempre maravilhado.” (PEDROSA, 1999:14)
Deambular e contactar com a realidade é a
cultura viva, à semelhança do escritor observador atento e participativo nos ambientes
sociais, que converte o espírito jornalista em matéria narrativa ao sorver a
ambiência dos locais noturnos.
Como dizia o pai de António Lobo Antunes:
“Resisto a tudo, menos às tentações.” (citação do próprio António Lobo Antunes
quando entrevistado por Fátima Campos Ferreira na RTP1 no dia 20 de janeiro de
2014). As tentações maiores são, neste caso, a observação e a ideia para o ato
criativo. Como à luz de William Turner, nas artes plásticas: “Cada olhar é um
olhar de estudo.” (SHANE, Eric, Turner,
1995)
David Mourão Ferreira afirmou um dia, num
programa da RTP (Parabéns, 1994), que
a fadista Amália Rodrigues fez mais pela poesia do que muitos especialistas e
estudiosos da área. Criar, interpretar e partilhar.
No livro Ano
de Morte de Ricardo Reis, este heterónimo de Fernando Pessoa confidencia: “O
que é preciso estar triste para me divertir assim” (SARAMAGO, 1984), reconhecendo-se
nele o português de alma, ainda que se tenha expatriado espontaneamente no
Brasil.
O próprio José Cardoso Pires teve de se
exilar no Brasil por causa da perseguição da P.I.D.E. e deixar a família.
De igual modo, numa conjuntura política
adversa em Espanha, José Luis Sampedro foi expulso da Universidade e teve de se
exilar em Inglaterra no final dos anos sessenta. Foi breve o seu exílio, mas o
suficiente para se socorrer da força do seu idioma para escrever.
Os valores culturais portugueses também
estiveram sempre presentes e associados ao trabalho literário do escritor luso.
É exemplo a representação da
obra teatral O Render dos Heróis de
José Cardoso Pires que em palco acompanhada à guitarra por Carlos Paredes, um
músico que acompanhou outros trabalhos de teatro e de cinema, nomeadamente as Bodas de Sangue e A Casa de Bernarda Alba de Federico Garcia Lorca.
Rosa Maria Duarte
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