O mar era a vida do meu pai, até certa altura, embora mesmo depois não deixasse de ser... Mas era também um homem cosmopolita, do progresso, queria sempre as últimas novidades, corria mundo. Todavia, as suas raízes eram do campo, como as da minha mãe.
Por isso ao domingo o seu programa de eleição era o campo. Às novas gerações é que nem sempre isso agradava...
Eu tinha um trunfo: a companhia da minha amiga Ilda que vivia no Alto do Casalinho na Ajuda para falar de assuntos mais da nossa condição. Quando os meus pais faziam questão que eu fosse com eles para a Tapada, eu saía do portão de cima e ia chamá-la. Éramos colegas da Ferreira Borges. Eu achava piada, por ex., ela dizer que nunca usava verniz porque que lhe fazia calor nas unhas.
A Tapada era onde o meu pai fazia as sestas ao ar livre, para recobrar forças para os dias da semana, mesmo depois de reformado. Quando íamos almoçar para o Monsanto também dormia por lá (aliás, o nosso pai até adormecia a jogar às cartas connosco na Vide). Um refúgio para descansar era um sítio com pouca gente e muito verde.
Nós éramos alfacinhas (embora sem gema, claro!). Queríamos a animação de uma cidade como Lisboa. Lembro-me de pensar na sorte que tínhamos tido por nascermos na capital, a cidade mais importante de Portugal.
Lembro-me também de pensar a sorte que tinha tido de nascer numa família como a minha. E tinha pena das famílias mais pequenas. De pensar a sorte que tinha tido de nascer na minha rua e no meu prédio, porque achava que era o melhor sítio de todos.
E no entanto, só na adolescência é que fui conhecendo a cidade de Lisboa. A pouco e pouco. O meu trajeto era casa-escola, escola-casa. Íamos ver a iluminação à baixa, no natal, e pouco mais. Excecionalmente circulávamos no centro da cidade. Atravessar a então ponte de Salazar, só uma vez quando miúda com a minha prima Beta.
Ouvia falar de tudo, que o meu pai era um exímio contador de histórias. Contava muitas à hora da refeição. Quando estava bem disposto.
Ele dizia que nos queria à mesa antes de se sentar. Ao almoço, tinha que ser à uma da tarde. Ao jantar, às oito da noite. Impreterivelmente. O meu pai gostava de palavras como esta: impreterivelmente! Gostava de se arranjar para ir ao S. Carlos. A minha mãe não tinha sido habituada a essas coisas.
Nós, sem querer, falávamos alto a conversar à mesa. Então o meu pai mandava calar com voz rija e a partir dali comíamos todos em silêncio. Até que a certa altura começava a contar mais uma história... Quando tínhamos acabado de fazer uma fita, por exemplo, contava a história do menino que vivia com a madrasta e que ela não lhe dava os legumes da sopa, apenas o caldo. Contudo, o menino continuava saudável, porque as vitaminas dos legumes passam para o caldo.
Quando o meu pai comprou o primeiro automóvel, um Opel Record de cor clara, ia quase todas as noites tapá-lo com uma lona comprida que lhe dava imenso trabalho. Os nossos amigos da rua das Fontainhas já sabiam as voltas e reviravoltas que o nosso «velhote» dava para tapar bem o carro (nessa altura caía bem entre amigos de rua tratar os pais por velhotes, sobretudo os rapazes, para eles próprios se sentirem já adultos!).
Eu, já no secundário, tive a disciplina de Latim no 10º e no 11º ano e tinha que decorar todas as declinações. Nessa altura comecei a usar óculos para ler com lentes para vista cansada. Então os meus irmãos gostavam de entrar comigo, repetindo algumas declinações que eu dizia: rosa, rosa, rosam, rosae, rosae, rosa/rosae, rosae, rosas, rosarum, rosis, rosis.
O professor de latim era um senhor alto, de estômago generoso, que andava sempre de bata branca. Gostava de falar nas aulas com o ponteiro na mão em cima do estrado.
Dizia-me na aula do teste, quando alguém me perguntava alguma coisa: - Rosa, essa cabeça parece um cata-vento!
Eu gostava de ajudar os colegas. Havia companheirismo na turma. Já era uma escola mista, claro. Um dos rapazes dessa turma, que foi a mesma durante os dois anos, entrava nessas aulas de Latim habitualmente a cantar os Queen: I want to ride my bycicle...e a fazer coreografia. Era raro o dia que não ia para a rua. Acho que ele fazia mesmo por isso. Mas no final do ano lá passou, com a nossa ajuda e a bondade do prof.
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