quinta-feira, 20 de setembro de 2012

novela luso-brasileira (das 16 h) com 36 capítulos

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                   CLEONICE
 
 
                  CONFISSÕES DE UMA PROFESSORA
 
 
                                          Rosa Duarte
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                        Costa da Caparica/2005

 

 

 

 

                  

                                                                                                       Ao meu irmão Alex,

                                                                                                Que está sempre connosco


 
 

                                                  INTRODUÇÃO

                                                 
 

   Olhava o vazio. Há dias que procurava dentro de si alguns sentimentos, ou talvez ténues impulsos amorosos, mas não conseguia discerni-los.

   Saiu à rua para encarar os rostos apressados dos outros, na esperança de se cruzar com alguém minimamente conhecido. Não viu sinais. As expressões em que reparava eram belas, mas desconhecidas. Fixou os vários rostos angustiados que olhavam os relógios, ou que se contraíam incomodados com o clima, que se franziam com o choro demorado de crianças, que olhavam apressadamente as manchetes trágicas dos periódicos estugando por segundos o passo, ou simplesmente se entristeciam com as solidões amontoadas, visíveis nos bancos do jardim mais próximos.

   Cleonice, apoiada no seu velho chapéu-de-chuva, com o olhar cada vez mais desfocado, alcançou o amplo recinto do Alto de Santo Amaro e sentou-se quase por instinto nas ripas sobreviventes de um banco naquele parque ajardinado onde a velhice era tolerada, preparando-se para recordar. Perto dos setenta, já há algum tempo que sentia o seu corpo envelhecer à revelia da mente. Já fora atenta observadora de humanos. O pouco que ainda ia registando no suporte memorial das suas impressões diárias resultava daquele hábito tão exercitado que, não obstante, era seletivo. Cleonice continuava com o mesmo entusiasmo para construir mentalmente histórias reais ou verosímeis que o seu pequeno mundo ainda alimentava. Às vezes sonhava com antigas sensações quando se imaginava a viajar para fora do planeta ao encontro de novas formas de vida. Olhava o céu e imaginava-se no silêncio do espaço lunar e a avistar as cores pálidas das gigantescas crateras solitárias, envelhecidas por um tempo diferente do seu. Os seus olhos, cheios de azul, semicerraram-se.

   - Ó vizinha, já com sono? – Era o Sr. João do prédio contíguo ao seu.

   - Viajando, amigo, viajando… – respondia ainda absorta Cleonice, satisfeita com a aproximação de um ser humano, que naquele dia era do género masculino.

   Cleonice fora casada e tinha filhos, casados e ausentes pela distância geográfica. A sua vida não fora muito rica de encontros, mas mesmo depois de velha não se conformava com a indiferença do seu corpo às manifestações agora esporádicas do tato que sempre lhe deram tanto alento. Gostava de acreditar que, se o seu companheiro fosse vivo, ainda praticaria alguma forma de sexo, com certo deleite. A estes devaneios, seguiam-se alguns pensamentos voluptuosos, por vezes de suficiente ousadia, que parecia despertarem-lhe pequenos formigueiros. Cleonice não escondia o seu interesse pela vida. Mesmo quando olhava o vazio, pensava nas experiências que não vivera e, sobretudo, nos universos que mal conhecera durante as décadas da sua juventude e adultez. As imagens do passado vinham-lhe vigorosas, com uma nitidez fabulosa. Por isso, cada vez mais se deixava embarcar naquele estado hipnótico que a transportava ao fundo de uma memória solitária que antes não era apenas sua. E recordava.

                                                                 
                                                    CAPÍTULO UM


   De pele bronzeada pelo sol, Cleonice, que então via ao espelho a menina tímida que era, saía todos os dias de propósito de casa em direção a uma pequena loja perto, para olhar as doçarias multicolores, de todos os feitios, nas prateleiras à direita do balcão. Em baixo, olhava as bonecas de trapo artesanais sentadas, de tranças caídas, à exceção de uma delas que lembrava a Pipi das Meias Altas, de collants às riscas avermelhadas, com muitas pintas alaranjadas no pano do rosto e umas tranças suspensas no ar por dois arames em cada lado da cabeça. Muito bonita achava Cleonice aquela mona de trapos, como se lhe referia a mãe, cansada de assistir a tanta adoração.

   Cleonice gostava de contemplar os objetos e os espaços à volta. De vez em quando, reparava nas pessoas, sobretudo no seu comportamento, mas o seu estado de fascínio era provocado por outros seres, animados na sua imaginação. Habitualmente não se sentia com coragem para interagir com os seus semelhantes, nem mesmo com os da mesma idade, e por isso arranjava refúgios solitários para se sentir protegida, como o seu quarto, o qual tinha de partilhar com a irmã, ou então ia até o pequeno pinhal junto ao recinto da escola e aí convivia com uma ou outra colega do seu círculo fechado.

   Enquanto frequentou o primeiro ciclo na escola primária, Cleonice apenas se cruzou, durante esses quatro anos, com raparigas nos corredores e no recinto exterior, porque a escola para rapazes era um edifício à parte e com horários diferenciados. As normas eram bem claras! Porém, lá acontecia uma rapariga mais atrevida tentar comunicar com algum colega pela rede de separação e fazer chegar algo ao outro recreio. O castigo começava por ser enfrentar a Diretora…o resto nunca se chegava ao certo a saber; cada aluno teatralizava o caso à sua maneira.

   À socapa, Cleonice ouvira da boca do pai, um homem escurecido pelo sol da lavoura, que as regras nas escolas estavam menos exigentes. Salazar já tinha morrido e o governante substituto não era tão autoritário, segundo entendera de uma conversa em surdina à mesa.

   Na verdade, a menina nunca tinha visto de perto a diretora da escola. Era uma figura feminina de meia-idade, com um aspeto austero, habitualmente com saia aos godés de tecido axadrezado em fundo castanho e botas de cano alto, como era moda na altura. Era uma criatura que dava a entender que gostava apenas que a reconhecessem pela sua seca figura, capa negra comprida a condizer com o cabelo pintado de preto baço. Um dia a irmã de Cleonice, mais rebelde, foi apanhada na mesma escola com estalinhos de Carnaval. Os pais, que raramente iam às reuniões da escola dos cinco filhos, foram naquela altura insistentemente convocados pela diretora da escola. Rute, a irmã mais velha de Cleonice, já tinha pedido mil desculpas pessoalmente por aquela pequena infração, e aguardava alguma benevolência. Mas as regras ainda se pautavam por um regime, embora decrépito, fascista e intolerante. Rute, suspensa das aulas, chorou quase em silêncio nesse dia.

   Cleonice e a sua família tinham vindo do Brasil há pouco mais de dois anos. No entanto, Cleonice viera nascer a Portugal intencionalmente para ficar com uma alma genuinamente lusitana, como era habitual ouvir da boca dos pais. O seu nome era uma das poucas heranças trazidas do Brasil. A outra era uma iguana fantástica, muito grande e viscosa, que trouxera da Amazónia, sempre atenta aos visitantes que a saturavam com gestos curiosos ou afáveis. Guanita, como fora batizada por um rapazito vizinho da família em S. Paulo, era uma fêmea velhota, pacífica, mas sempre muito atenta. Fazia lembrar uma velha feiticeira. Talvez por causa daquela expressão sofredora e, ao mesmo tempo, bisbilhoteira.

   Cleonice foi crescendo, cada vez mais portuguesa na rua do Cruzeiro da capital, entre prédios de cimento, altos e pouco arejados. As suas recordações brasileiras eram cada vez mais ténues, que iam sobrevivendo agarradas às palavras saudosas dos pais sobre aquele mundo paradisíaco ainda embrionariamente português, que alimentavam a sua imaginação de infância com as grandes extensões de areia junto ao mar, a gente morena, as praças movimentadas daquela terra quente. As paisagens fixadas nas fotos de família ajudavam-na a reconstituir imagens de um passado esbatido na sua cabeça. Conseguiria, um dia, sair deste Portugal para rever o outro, que para si continuava a parecer-lhe mais autêntico!? A saudade foi, a pouco e pouco, dando lugar à adaptação aos vizinhos, aos colegas, às correrias nas traseiras da casa, aos sons por vezes ensurdecedores dos automóveis e dos transportes públicos. Com alegrias e ansiedades, aí foi crescendo a criança que trazia nos olhos o azul do mar, escurecido pela sombra dos altos prédios que escondiam o mau cheiro de urinas noturnas nos cantos sombrios e, por vezes, breves odores a sexo comprado.

   Já sem sotaque, então com dezoito anos, Cleonice fez o ensino secundário e seguiu para a faculdade. Estava interessada em ser uma das pioneiras da genética em Portugal e a sua nota de entrada permitiu-lhe entrar em biologia na faculdade de Ciências de Lisboa. Tinha horário maioritariamente noturno porque tinha de continuar a trabalhar no comércio, numa loja de brinquedos na baixa pombalina.

   Os novos colegas de estudos eram, na sua maioria, comunicativos, vindos de vários pontos do país. Nunca tinha alcançado aquele grau de intimidade com gente da sua idade. Só então começou a sentir verdadeiramente como era bom interagir, fazer amizades! Convivia como se nunca o tivesse feito antes…

   A matéria das cadeiras começou logo a “apertar” no primeiro ano. Os seus resultados não foram, de início, os esperados, mas com a continuação do curso, foi recuperando o sucesso a que já se tinha habituado ao longo do seu percurso escolar.

   Ainda não tinha terminado o curso, Cleonice concorreu para dar aulas. Como foi parar ao Barreiro, que não era muito longe, continuou a estudar para terminar o curso, embora num ritmo mais brando.

   Cleonice começava a desfrutar do prazer das recordações de infância e dos seus projetos que em miúda fazia para o futuro; um deles tinha sido cantar em palco. Mas a sua profissão acabou por ser professora de Ciências! Fora graças à admiração pela professora de nono ano, de quem gostara muito. Foi um ano memorável no seu percurso escolar, pois tinha pertencido à dolorosa geração das “cobaias” do ensino unificado.

   Os primeiros anos de carreira foram, para si, um desafio, sobretudo construtivo. E estar à frente de um grupo de jovens a falar sobre assuntos sérios ligados à vida do planeta, dava-lhe imenso prazer. Com tantos rostos virados para si! Enfim…Uma escola nova, com colegas jovens e de trato fácil.

   - Vais de barco? Anda que eu também vou.

   Na Cidade Sol, para onde ia todos os dias, o ar era um pouco mais respirável do que no centro do Barreiro, que atravessava de autocarro. Cleonice tinha de apanhar quatro transportes para chegar à secundária de Sto. António. Mas entretinha-se a ler ou, quando encontrava alguma colega, ia na conversa. Entretanto, desafortunadamente, deixou-se abater por causa de uma colega a quem tinha sido diagnosticado um problema degenerativo grave no aparelho reprodutor. Foi uma dor profunda para a jovem Cleonice! Só dois anos depois, Cleonice conseguiu notícias e soube que Rita não poderia nunca ter filhos, mas que, felizmente, recuperara a saúde e tinha casado com um homem muito mais velho que ela. Parecia estar bem. Pelo menos, este capítulo de vida tivera um final quase feliz.

   Cleonice e Rita nunca mais se viram. Os seus percursos profissionais distanciaram-se. Cleonice foi colocada numa escola mais perto, onde tudo parecia razoável. Embora com instalações provisórias, a escola da Amora tinha bom ambiente de colegas e de alunos. A sua dedicação não era a ideal porque entretanto casara, tivera o primeiro filho, e deixou-se acomodar a uma vida familiar rotineira. E deixou que isso afetasse o seu convívio com os outros. Mas aquele seu discreto entusiasmo pela vida social ressurgiu anos mais tarde. Investia um pouco mais na cordialidade, embora a sua reserva em relação ao seu humano não a conseguisse disfarçar de todo. Cleonice sentia-se mimada pela vida.

   Foram vários os anos que Cleonice deu aulas no mesmo estabelecimento de ensino.

   Um dia, cansada da rotina resolveu tentar uma pós-graduação. De preferência, na sua área. Outro talvez não lhe interessasse. O facto é que Cleonice, embora não muito esforçada, não se acobardou e prosseguiu os estudos, tentando compatibilizá-los com o seu horário de trabalho. Começaram aí as dificuldades. Como libertar um dia no seu horário? Como saber qual seria esse dia antes da elaboração dos horários? Como conciliar o trabalho de pesquisa com os cargos e outras responsabilidades profissionais?

   Em vez de dois, Cleonice fez a pós-graduação em três anos. Cleonice tinha momentos de grande satisfação no seu dia-a-dia, com os filhos, com o seu trabalho, com a sua escrita, e até com o seu marido.

   Mas às vezes desejava desaparecer. Queria desligar-se dos momentos vividos, pontualmente. Mas isso era oferecer a vitória aos seus obstáculos, aos problemas, às dificuldades, e virar costas àqueles que queriam amá-la. Tencionava ser mais firme do que nunca, sempre atenta aos golpes baixos e enfrentar a batalha, com ou sem aliados. O bem que dispunha e era vislumbrado pelas peias das mentes dissuasoras, muitas vezes resultava em destroços. O adversário, de face risonha e rosada, dilacerado por sentimentos torpes, intoxicava os poucos vestígios de amor no local de trabalho. Uma das suas amigas dizia-lhe:

   - Para mim, és uma daquelas que abre estradas! – Um ser humano que sabia incentivar Cleonice e que a considerava uma lutadora invencível.

   Cleonice pensava que, talvez por uma réstia de influência materna, o sofrimento por que passava seria uma provação necessária para se redimir das suas limitações do passado e para poder merecer a construção de um futuro empreendedor para si e para os seus. E nessas facetas da sua vida, o balanço era positivo. Por isso, fortalecia-se mentalmente com este discurso, o que lhe permitia encarar atitudes descuidadas de alunos, à mistura com forçados sorrisos com quem pretendia dar-se bem.

   Cleonice tinha momentos de alguma tristeza. E desejava viajar, talvez até ao Brasil, na esperança de encontrar outros seres humanos para além dos que julgava conhecer. 

   Pensou em fazer um novo curso na sua área. Aproveitou muita da pesquisa que já tinha feito sobre o assunto e já tinha ideias para a fundamentação do seu plano para a dissertação. Mas o seu casamento estava a atravessar algumas dificuldades e resolveu adiar este seu projeto. Teria dúvidas em relação ao projeto? Teria dúvida em relação ao seu talento académico? Um pouco desolada, embora não vencida, Cleonice fez aquilo que considerou a terapia da escrita: começou um diário. Aos anos que não escrevia um diário! Ao menos assim sentia-se um pouco mais liberta em relação às suas próprias inseguranças. Não tencionava deixar de ser quem era, mas pelo menos as confidências ficavam no programa do computador portátil que recentemente comprara a pensar na sua eventual investigação futura. Descobrira que conseguia articular algumas ideias um tanto originais no ecrã e isso fazia-a sentir-se viva e, de algum modo, única. Porque não fazer da escrita uma brincadeira séria? Porque não fazer da prosa um grito de desabafo? Porque não fazer do silêncio um potencial?

   E sonhou ser escritora. Cantora dificilmente seria, agora que chegava aos entas. A vontade continuava latente, mas as cordas vocais já não lhe pareciam vibrar com a mesma firmeza. A escrita, essa, não envelhece, mesmo que tremida no papel. Escreveria, como, afinal, nunca deixara de escrever…
 

                                                  CAPÍTULO DOIS


   Há dias, os meus alunos de uma disciplina que criei e batizei de Estar Contigo, estiveram a entrevistar-se aos pares sobre o que significava para cada um deles o Natal. À minha frente, doze miúdos, muito diferentes entre si, a não ser o percurso escolar e familiar atribulado.

   - Não gosto dessa festa. – Dizia o Adérito. Percebi pouco depois que raramente recebia prendas.

   A maioria não acreditava no Pai Natal, mas gostava de pensar naquela figura. Contei-lhes rapidamente a versão que conheço da história do Pai Natal.

   O Sandro, de dezassete anos, estava excitado. Tinha chegado há pouco tempo à turma, mas sentia-se bem recebido. Apesar de não ser o mais velho, gostava de mostrar alguma experiência de vida. Quando lhes falei do trabalho dos escuteiros e lhes contei que muitos vão distribuir sopa pelos mendigos em Lisboa, ele sentiu vontade de contar algumas histórias de marginalidade. E disse:

   - Sabe que eu tenho um amigo que é ladrão e assassino. – Fiquei perplexa, mas tentei não o demonstrar.

   - Bem ladrão não é difícil, quando se tem fome. Mas assassino…?!

   - Não interessa quem é. Nunca ouviu falar de um atropelamento no Laranjeiro de uma mãe com um bebé ao colo?

   É que não tinha mesmo ouvido – embora ao fim desse dia, quando cheguei a casa, o meu marido reconhecesse a história.

   - O meu amigo andava a roubar carros. Naquele dia, roubou um carro, mas houve quem tivesse dado conta. Ele arrancou a toda a velocidade e atropelou uma senhora nova com um bebé de colo na passadeira. A mãe morreu. O bebé salvou-se.

   - Então e agora o teu amigo?

   - Está a tirar um curso no Centro de Emprego.

   - Não foi castigado?

   - Como é menor, levou um ano de pena suspensa.

   Sandro ainda tentou aligeirar o clima, referindo-se à beleza da rapariga que morrera, o que só me estimulou o desalento perante um caso como este.

   Contudo, já em casa, depois de reconstituir mentalmente a minha conversa da manhã, curiosamente, dei comigo a desagravar a culpa do amigo do Sandro, não tanto por ser menor, mas porque há momentos na nossa vida que é o destino que nos empurra para as situações. Há instantes de precipitação ou distração a que nenhum automobilista fica impune, mas os erros precisam de correção! Nem se consegue imaginar a dor de uma experiência destas… até para o declarado culpado!

   Amanhã é outro dia. O mundo gira e renova-se. É bom aprendermos a amar o presente.


                                                      CAPÍTULO TRÊS


   Cleonice começou a registar as suas experiências profissionais e humanas. Ela era uma pessoa emotiva. Com frequentes reflexões sobre o seu desempenho cívico e profissional, era, contudo, uma docente que se entregava ao seu trabalho. Em parte diferente dos seus colegas, desenvolvia as tarefas com azáfama no espaço de trabalho. Cleonice habitualmente gostava mais do trabalho no exterior. Nem sabia porque é que lhe custava tanto permanecer os dois turnos, da manhã e da tarde, dentro do edifício da escola. Até simpatizava com o ambiente. Sofria, um pouco de claustrofobia e a escola era fria de Inverno e quente no Verão. Mas não era bem isso que a empurrava para o exterior.

   Eternamente apaixonada por paisagens marítimas, Cleonice aproveitava quase todos os dias para ir olhar o mar. Às vezes o tempo do caminho de Alcântara, onde vivia depois de casada, até à Costa da Caparica não compensava a visita rápida, mas como Cleonice tentava fugir dos horários de ponta, as viagens pouco demoravam. Esta sua tendência já vinha de largos meses atrás. No entanto, naquele momento questionou-se sobre aquela tendência…Porque é que fugia sempre para ao pé do mar? O que fazia lá? Olhava o mar, às vezes o pôr-do-sol, também os contornos humanos dos seres tão díspares, e aproveitava esse seu estado de espírito emocionado para escrever ou ler. Houve alturas em que foi intercetada nos bancos do paredão por senhoras das testemunhas de Jeová, mas evadia-se. Depois ficava com uma sensação desagradável no peito (se calhar, também na cabeça e no abdómen…) de tristeza. Era o seu rico tempo que estava a tentar gozar. Decerto iria até lá para estar sozinha. Estaria farta da comunicação com os outros? Com certeza que não Mas o facto é que a rotina, a cidade e o local de trabalho, com ruído e bastante movimento chegavam a ser incomodativos: vozes, aparelhos, passos, até os cheiros.

   Quando contemplava o mar, sentada dentro do carro ou perto da barra, lembrava-se da personagem Eurico, o presbítero, um romântico solitário que procurava a natureza livre e agreste…

   Porém, Cleonice era uma mulher do século vinte e um, que reclamava os seus direitos de cidadã e de boa companheira. Nascera pouco anos antes do vinte e cinco de Abril, numa família numerosa tendencialmente conservadora, e por isso desenvolvera aquele espírito reivindicativo, que mantinha.

   Já alheia, aconteceu-lhe, num dia de Inverno, estar a escrever dentro do carro parado e ter um céu como pano de fundo azul claro-escuro até à linha do horizonte costeiro, matizado com cor de fogo de um sol tímido, que lhe ocupava a área do para-brisas como se fosse uma parede revestida com uma fotografia de cartaz e fixada noutro tempo que não aquele. Olhava o relógio e então contemplava uma última vez a paisagem que sabia lá estar enquanto escrevia. E, tal como o sol, recolheu a casa.


 
                                                   CAPÍTULO QUATRO
 

   Como foi cansativa a aula com o nono F.! Conversam muito, distraem-se facilmente, ou pelo menos agem como tal. Fico surpreendida quando verifico que muitos até acompanham os trabalhos das minhas aulas. A dissecação! Há neles algum prazer mórbido em esventrar os bichos. Tenho que admitir que a curiosidade costuma ser superior ao sentimento de repulsa. A piedade já é pouco relevante com o animal, neste caso o sapo que está anestesiado. Querem ser bons profissionais. Ainda bem. São comunicativos, simpáticos, abertos, mas têm que moderar o estado de euforia quase sádica e adquirirem algum profissionalismo (disse-lhes).

   Na última aula, o Marco, que é um aluno com algumas dificuldades de compreensão dos valores sociais instituídos, levantou a questão da ética da medicina, o sacrifício dos seres humanos, sobretudo dos vivos, clandestinamente, para as inovações da experimentação.

   - Marco, hoje já se fazem doações de defuntos, com autorização das famílias para o avanço da ciência; os próprios podem deixar em testamento a vontade de o seu corpo, já sem vida, ser útil à descoberta de novas explicações e terapias.

   - Stôra, isso é o que sabemos pelas vias oficiais. E o tráfico de órgãos…?

   Naquele dia, o Marco e outros estavam indignados com o “negócio” da saúde… Mesmo os que tencionavam seguir a área da saúde estavam renitentes em relação à ação das respetivas instituições.

   - Se querem fazer melhor, têm que deixar de utilizar o dinheiro como denominador comum a todos os progressos científicos.

   - E como é que custeiam as pesquisas? - Perguntava uma das raparigas favoritas de Marco.

   Bom, a discussão foi acesa, tocou a ética da clonagem e, com muita pena deles, tocou a campainha da escola para terminar aquela aula.

   Fiquei exausta, mas sempre otimista: com os jovens, com a escola, com o ser humano. Era preciso conservar as energias para os desafios diários.

 

                                              CAPÍTULO CINCO

 

   Cleonice aprendera desde miúda com a família a gostar do Natal; no entanto, mal se recordava do quente Natal brasileiro. Para ela, agora aquela quadra só fazia sentido no aconchego do lar aquecido pelo convívio humano. E mesmo assim, a magia dessa festa foi-se perdendo aos poucos, com todo o seu poder encantatório, logo que Cleonice se tornou adulta e foi constatando que o Natal também podia significar um sofrimento atroz para os solitários e desvalidos. Já não tinha ilusões sobre os festejos, mesmo os religiosos, cada vez mais consumistas e exibicionistas.

   Cleonice, contudo, aproveitava a animação festiva para passear e mostrar a iluminação na baixa lisboeta aos filhos, pois gostava de a apreciar pela criatividade no jogo entre os enfeites, a cor cintilante e a localização, com todos os recursos plásticos alusivos e variáveis possíveis neste tipo de cenário citadino. De seguida, foram passar a consoada com os pais velhotes e um irmão solteiro.

   - Então quando é que chegam? – Perguntava, ao telemóvel, o irmão de Cleonice, padrinho do seu filho mais velho.

   - Estacionámos agora mesmo. Vamos para cima. – E desligaram os telemóveis.

   Depois dos cumprimentos ruidosos e da alegria do reencontro, a família entrou para o segundo andar de um edifício antigo na calçada da Tapada.

   O padrinho então resolveu sair do seu quarto e integrar o clã familiar. Já um pouco animado pela bebida, como previsivelmente acontecia àquela hora depois do jantar, ora sorria e apertava as mãos dos mais novos “à dread”, ora queixava-se da falta de atenção dos outros. Jacinto não era o irmão mais novo, mas era um dos mais novos que ainda estava solteiro. Quando alguém se referia ao estado de solteiro de alguém conhecido, Jacinto ironizava: - Se é solteiro como eu, é porque não presta! – em tom sarcástico.

   Não obstante, naquele ano o ambiente familiar estava mais tranquilo e caloroso. No anterior, devido aos tratamentos rigorosos de quimioterapia do pai de Cleonice, a disposição dos velhotes estivera nos mínimos. Felizmente, parecia recuperar-se um pouco a saúde física e mental naquela casa.

   O que preocupava entretanto Cleonice era aquele irmão que não havia meio de organizar a sua vida, sempre em discussão com a vida e com ele próprio, já para não falar do mais novo que vivia sozinho num quarto afastado dali e que não conseguia “atinar” com as responsabilidades desde que se tornara dependente de vícios.

   Como muitas, embora nem todas (das que existiam, claro!), esta família estava em plena confraternização, quando tocou o telefone. Era a senhoria de António, o mais novo dos irmãos, a dizer que este se tinha esquecido das chaves dentro de casa e se alguém poderia lá ir abrir-lhe a porta com os duplicados.

   - Vens comigo? – Perguntou a mãe a Cleonice.

   Cleonice levantou-se de imediato, cortou duas fatias de bolo-rei, pegou em algumas filhós que levou consigo, acompanhadas de Rui, o marido de Cleonice.

   Em ansiedade, depararam-se com um António barbado, mal agasalhado, ébrio, bem disposto, com alguma eloquência, inicialmente envergonhado, mas depois satisfeito por ver gente, de tal modo que ateimou que havia de ir beber um copo com os presentes. Era meia-noite. A mãe regressou a casa, mas os outros dois acompanharam-no até a uma roulotte mais próxima a beber um copo. Foi um momento de grande valor humano para Cleonice. Ali estava o seu irmão mais novo, de trinta e dois anos, inteligente, já com ideias de regressar ao seu Brasil.

   - Foram vocês que me mandaram um cartão de boas festas?

   Tinha ficado sensibilizado com o cartão. Entusiasmado com a atenção que estava a receber, citava a todo o momento um dos seus ídolos, o vocalista dos Doors. Falou de vários assuntos, com muito interesse e alguma impaciência, sobre por exemplo o filme Alexandre, o Grande. Curiosamente, com uma pronúncia como se fosse estrangeiro. Há anos que comunicava tão pouco que a sua dicção já se fazia com esforço. Queixou-se da falta de motivação que sentia naquele momento pela vida. Hiperbolizou a vida de Florbela Espanca, de Camilo Castelo Branco, de Antero de Quental, de Jim Morrison, do próprio Jesus Cristo. António achava que não tinha medo da morte. Mas Cleonice tentou explicar-lhe que o clímax atingido por aqueles no limiar da existência nunca poderia ser superior à alegria de viver cada presente.

   - Ainda vais ser uma grande pessoa; um grande guitarrista. Acredito piamente nisso.

   A incutir-lhe força na vontade de viver, Cleonice despediu-se de António, que foi pela calçada da Tapada abaixo melodiosamente a citar, para si, Jim Morrison, num tom fatídico quase shakespeariano.

 

                                                   CAPÍTULO SEIS 

 

   São onze e meia da noite. É a última terça-feira do ano dois mil e quatro.

   Sentei-me ao computador para desabafar. Não são preocupações da escola, que estou a descansar das aulas até ao dia três do próximo mês. São outras questões, tão sérias que as tenho evitado, na esperança que se simplifiquem com o tempo.

   Não me sei definir a rigor e se o fizesse errava com certeza.

  Ontem, eu e a minha família jantámos fora com dois casais amigos. Eles são pessoas que conheço há muitos anos, sobretudo a Júlia que foi minha colega na faculdade. É casada e tem dois filhos como eu. Através dela, conheci o Quim, que entretanto sofreu um bocado com a separação da mulher, mas agora vive com alguma tranquilidade com outra mulher, a Lídia. São pessoas a quem dedico alguma atenção.

   Este é um capítulo que escrevo no meu computador e na minha vida.

   Sou professora de adolescentes e jovens com algum sucesso. Mãe com sucesso e dedicação. Doméstica com pouco êxito. Amiga com discreta popularidade. Familiar com uma dedicação quase q.b.. E esposa?

   Para mim, eu sou uma pessoa boa. Talvez nunca tivesse gostado tanto de mim, mesmo à força do sofrimento que experimentei, embora seja um sentimento que tem vindo a ser cuidadosamente trabalhado…

   A minha vida diária parece um campo florido. Será que um dia ficarei com as pernas perfumadas? Meu Deus, como sou romântica e dependente. Devo ser mais comedida com os pensamentos e com as palavras. Como lidar com o passado pouco vivido, nosso e daqueles que gostamos? E as pandoras do futuro?

   Não tenho pretensões a anciã e, como tal, bastam-me muitas ambições... A sério que tenho que fortalecer o meu amor-próprio porque tempos difíceis se avizinham, que podem agravar-se, e por isso devo manter-me firme como pessoa, como mãe e, acho, como mulher. Tenho quarenta anos, estou a tentar crescer como ser humano e, por isso, tenho esperança de me conseguir proteger de eventuais golpes conjunturais e, talvez um dia, arranjar algum projeto social significativo… uma casa de repouso de qualidade para humildes…

   Tenho a minha angústia de estimação, construída em pauis danosos. Como lidar com o adversário: a minha mente?

   Estarei exageradamente existencial hoje? 

 

                                              CAPÍTULO SETE

 


   Agora Cleonice não revia apenas na escrita o seu dia-a-dia profissional. Com a interrupção do Natal e o prolongamento do convívio familiar, a professora deu prioridade à esposa e à mãe. A sua introspeção aguçou-se. Havia algum tempo que a sua vida pessoal não era propriamente emocionante, mas sentia que algo a estava a recriminar. Bolas! Porque é que se sentia aquém dos grandes eventos da vida, embora normalmente fingisse o contrário? Seria exatamente esse o problema: a sua imagem menos autêntica. Em quarenta anos de vida…? Ou não fora grande aluna da vida, ou as suas oportunidades foram fracas.

   Cleonice passou aquela noite, ora em vigília, ora num sono muito agitado. O marido estava fisicamente próximo. Como definir o estado daquela cumplicidade conjugal?

   Ao outro dia acordou com umas olheiras fundas, a boca amarga e a cabeça como dilatada e pesada. Parecia ver manchas na sua visão lateral. Preparou-se, deixou os filhos a dormir e foi à ginecologista retirar o DIU. Foi bem atendida, mas tinha terminado no dia anterior o período menstrual e por isso a médica adiou a mudança de contracetivo.

   Não tendo sido de propósito, estava a pôr a mesa na sala quando começou um programa no Odisseia sobre orgasmos sexuais femininos permanentes. Ficou impressionada com a atividade sexual de quatro mulheres que vivenciavam o mesmo problema.

   - Os companheiros destas mulheres podem agradecer a Deus. – Comentou o marido. Entretanto, foi entrevistado um dos companheiros que afirmava que não podia dormir na mesma cama da mulher porque ela precisava de se masturbar de dez em dez minutos. Ele dormia na cama com o filho.

   - Temos que compreender estes casos. – Rui, marido de Cleonice, tentava remediar o precipitado comentário que tivera segundos antes. - Estes problemas começam a ser reconhecidos pela classe médica.

   - Então e compreendes o meu caso? – Perguntou no gozo Cleonice. Mas o marido, fingindo que não ouvia, despediu-se e saiu de casa para o emprego.

   Dias depois, o casal conversou sobre o assunto.

   - As minhas necessidades sexuais – confidenciava Cleonice pela primeira vez ao marido – manifestam-se depois de um bom repouso. Repara nos espanhóis, será apenas para dormir que os espanhóis precisam do tempo de sesta?

   - Nunca tinha pensado nisso – afirmou com alguma franqueza desabitual Rui.

 

                                                 CAPÍTULO OITO

 

   As aulas recomeçaram no início desta semana. As festas fizeram-me bem, a mim e à minha família. Dantes vivia insatisfeita com o sentimento humano que reservava a mim mesma. Hoje sinto-me mais próxima de mim. Onde pára a felicidade?

   Acabei por marcar a ida ao teatro com os nonos anos; aproveito e levo a turma de currículos alternativos. Ontem esta turma de Eu e os Outros fez um “role play”, reunindo-se num grupo inicial de cinco alunos que foi aumentando com a atribuição de papéis: mais um encarregado de educação, um polícia e um aluno. A teatralização destinava-se a resolver um conflito na escola, motivado pelo desaparecimento de um telemóvel que se encontrava dentro da mochila de um aluno, que estava encostada a um dos muros da escola. Todos os implicados encarnaram facilmente o seu papel de elemento ativo na vida escolar e a mãe do aluno suspeito de ter roubado o mesmo, ofereceu-se para pagá-lo. E se não tivesse dinheiro ou não quisesse simplesmente pagar?

   Como motivação para esta atividade, recordei uma reportagem que a TVI tinha apresentado no dia anterior sobre “os donos do recreio”, em que referiu casos de alunos maltratados e roubados pelos colegas.

   No final dos cerca de quarenta e cinco minutos, quando foi dada uma resolução para o caso apresentado, foi feita uma reflexão e houve quem tivesse referido a utilidade de câmaras ocultas nos espaços públicos, nomeadamente nas escolas, à semelhança do projeto da faculdade de motricidade humana referido na reportagem.

   Os alunos saíram com uma expressão de quem tinham vivenciado as consequências do caso do telemóvel roubado. Um dos alunos, o Sérgio, recordou-se mesmo de uma situação semelhante que havia experimentado quando tentou roubar um aluno mais novo da escola básica ao lado. O Sérgio tem agora dezassete anos, embora ainda frequente o sétimo ano.

   E a falar dos vícios da sociedade quinhentista de Gil Vicente, que continua enferma nos nossos dias, terminei o meu horário letivo com o nono D, um grupo muito problemático, à semelhança dos currículos alternativos. Mas os problemas destes jovens parecem minguar com o aumento do seu interesse pelo trabalho que desenvolvemos hoje. É com emoção que me considero, quando penso nisso, ainda, útil para estes jovens com falta de motivação para o trabalho na escola.


 
                                                     CAPÍTULO NOVE

  

   À chegada, Cleonice veio a encontrar o marido a estacionar a station junto ao local onde ela tinha acabado de largar o yaris. De facto, a situação económica da sua família não era má. Numa das últimas confraternizações com casais amigos, um dos maridos referira-se enfaticamente às vidas familiares muito complicadas, económica e profissionalmente. – Era, decerto, um indireto comentário crítico à vida conjugal de Cleonice e Rui.

   Cumprimentaram-se e dirigiram-se para um café pacato onde Rui frequentemente parava depois do trabalho.

   A senhora do estabelecimento entabulou conversa com eles a propósito do consumo de água.

   - Aqui tenho sempre duas garrafas com água e copos à disposição para os clientes.

    Ali o casal deixou-se ficar uma meia hora e depois saiu. O silêncio era demais para qualquer conversa íntima que quisessem estabelecer.

    Nesse dia, à hora de se deitarem, por volta da meia-noite e meia, Cleonice sentiu nova inquietação, daquelas que a assaltavam ultimamente e que lhe causavam cólicas no abdómen. Levantou-se da cama e foi até à cozinha onde o seu marido comia, como habitualmente fazia antes de se deitar.

   - Não te vens deitar? – Perguntou-lhe Rui depois de ir à casa de banho.

   - Hummm, não sei – respondeu Cleonice.

   Rui assumiu rapidamente aquela expressão de rosto comprimida.

   Rui e Cleonice falaram deitados na cama. Cleonice, a certa altura, encostou a porta do quarto, para que as suas vozes não se ouvissem muito, mas mesmo assim o filho mais velho, que ainda estava a ver televisão na sala, repreendeu-os.

   - Eu acho pouco simpático, vocês estarem a falar tão alto a esta hora.

   - É verdade, filho. Também estamos quase a acabar. – E Cleonice levantou-se da cama para apagar a luz do quarto deixada aberta pelo filho e fechou completamente a porta.

   A lealdade, o egocentrismo, o pouco diálogo e de manifestações habituais de afeto, a rotina…enfim, até às três e meia da manhã fizeram prolongar aquela conversa que, afinal, já estava em atraso. Com mais ou menos honestidade, naquela noite foi reafirmado o esforço no dia-a-dia de cada um. Cleonice aproveitou, então, instalado o silêncio, para repousar um pouco o seu espírito, ditador daquele corpo tão perturbado nos últimos dias, e dormiu, pouco mas profundamente.

 
                                                     CAPÍTULO DEZ

   

   É incrível como só há meia dúzia de anos penso desta maneira na pessoa que sou, de forma tolerantemente crítica. Olho-me atentamente ao espelho e tomo consciência que tenho vivido quarenta anos comigo, sem me dar grande atenção. Os outros, os lugares e os momentos são medianamente observados segundo a sensibilidade, a mentalidade e a inteligência de um ser que foi batizado há quatro décadas de Cleonice. Há meia dúzia de anos, não me dava ao “luxo” de fixar a atenção em pequenas coisas, detalhes de cada momento. Hoje procuro compensar-me, contemplando, observando, tentando comunicar…Nunca me questionei muito (segundo me lembro), pelo menos de forma suficientemente consciente. Memorizei, construí, ensinei, mas não me conheço completamente. Dantes, tentava perceber os outros falavam, mas uma das grandes fórmulas que demorei a perceber foi a atitude de saber ouvir. Nunca me terão ensinado como deve de ser ou vivi anos, completamente alheia? Sinto-me a aprender, talvez a “modelar” a minha massa cerebral. Outra fórmula importante é saber manter a calma e a tranquilidade interior que vêm do amor-próprio. Ser forte perante as agressões externas que pontualmente surgem na nossa direção. Estou a lembrar-me também do humor e da alegria inata como condições cruciais de sobrevivência… Acho que começo a engrenar com o sentido da vida. Finalmente, embora timidamente, sinto-me um pouco amada, antes de todos, por mim mesma. Penso que é essa a fórmula mágica para o sucesso de qualquer ser humano: o conhecimento da essência individual e a sua ligação ao Todo. Também o rumo lento mas certo que levo em direção ao envelhecimento do corpo (espero que o do espírito seja amadurecimento) e aqueles sonhos ambicionados de realização artística e desportiva cada vez mais distante e, ao mesmo tempo, mais presentes…não sejam fáceis de deixar partir…

   Acho, por outro lado, que tenho aprendido a ser menos materialista. O dinheiro e os valores materiais têm agora menos significado para mim. Serei um ser humano em evolução? Estarei preparada para subir mais degraus (ou voar, embora ainda não intergalacticamente!) sem levar nada comigo, sem olhar para trás?

   A música clássica que estou a ouvir com acordes de violino ajudam-me a esquecer as vidraças que estão à minha frente e que me separam do mar, o mesmo mar que conheço desde criança. Oiço a máquina do café e agora a locutora da rádio. Nesta mesa de madeira escura envernizada escrevo estas palavras, sob o olhar discreto de alguns clientes ao balcão que aguardam ser servidos. Lá fora, na esplanada com sol, pequenos grupos de duas e três pessoas convivem. Junto à trave que limita o espaço exterior do café estão duas mulheres. Cortes de cabelo esculpidos segundo modelos atuais, um curto outro comprido, ambos com gosto e com enquadramento nos rostos. Sorrisos limpos e verdadeiros. Sente-se o som das chávenas de café que se chocam ao serem arrumadas pela funcionária. O meu café é o chocolate em garrafa, que bebo quase diariamente, como se fosse um vício. Não tenho vícios, mas vou inventando alguns que se aproximam desta personalidade que convive com o género feminino a que pertenço. Penso que o meu dilema de existir é cada vez mais intelectualizado e reconduzido para as zonas algo experientes do meu ser. Poderei amar mais ainda a vida?

   É verdade que às vezes estou agradavelmente a conviver e nem penso nisso. E quando estou só, como agora, sinto então o peso da ausência de outro num tempo que é meu e que paradoxalmente faz tanto falta à Cleonice introspetiva que sou. Afinal, gosto de passar algum tempo comigo, de ouvir a melodia do silêncio. Que fazer a meio de uma vida para que se morra em paz.

 

                                                CAPÍTULO ONZE

 

   - Nós somos dos resistentes – dizia Cleonice ao marido ao fim da tarde, em casa, ainda os filhos não estavam – da Segunda Guerra! – Acrescentou a sorrir, desafiando o companheiro.

   - …da classe operária! – Exclamou o marido. Estariam, de facto, a tentar reparar maus jeitos sentimentais e conjugais que ambos tinham causado nos últimos meses?

   Com pequenos gestos de afeto, ora de proximidade ora evasivos, os dois reagiram de imediato ao toque de campainha que sinalizava mais um membro a regressar ao lar.

   - Cleonice, vem ouvir uma notícia sobre a mulher e o casamento. – Chamou Rui.

   - A mulher moderna evita o casamento para poder dedicar-se às suas atividades…- ouvia-se a repórter na TVI.

   - Eu gosto de estar casada. Se calhar não sou inteligente, talvez suficientemente inteligente… - E riu-se.

   Mais um dia rotineiro, com os habituais arrufos dos mais novos a quererem sempre prolongar mais o dia. Lá esteve, mais uma vez, Cleonice a fazer o seu papel disciplinador para gerir minimamente os horários familiares. E por isso sentia-se criticada.

   Cleonice nem sempre se apercebia do efeito das suas palavras nos outros. Fora criada num ambiente em que as palavras eram uma forma de demarcar território. Cleonice tinha de desenvolver o seu discernimento, não fosse a lei da causa e efeito pregar-lhe alguma.

   Ao outro dia, depois das aulas, quando se dirigia para o pólo da biblioteca para entregar um livro que gostara muito de Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, de caminho entrou na Igreja. Dirigiu-se à nave principal, genufletiu e foi-se sentar junto ao nicho onde estava a imagem da Nossa Senhora da Assunção. Colocou dois euros na caixa dos pobres, rezou convulsivamente pais-nossos e ave-marias e, só depois, entabulou um discurso espontâneo com o divino. Cleonice sentia-se abençoada quando erguia um pouco as mãos em direção a um espaço espiritual e sentia uma tranquilidade indescritível. Sentia-se em leve comunicação com uma dimensão não concreta, mas intensa e boa. Como chegaria mais longe?

   E Cleonice, em sofrimento emocional, pediu ao seu Deus que a ajudasse a ser melhor, a ser mais generosa, mais solidária, mais comunicativa, melhor esposa, melhor mãe, melhor colega, melhor pessoa. Estaria a sua vida em perigo, as suas amizades, o seu sentido de vida? E decidiu que tinha de se esforçar mais.

   Já há alguns dias que passava noites mal dormidas. Sentia um ligeiro eczema junto ao lábio superior, o estômago contraído, um leve atordoamento de um lado ao outro da nuca. Cleonice acabou a catalogação de alguns livros no Centro de Recursos como se tinha comprometido e foi telefonar ao marido. Embora com dificuldade, conseguiu a chamada e combinou com ele irem tomar um café depois do serviço. Eram cinco de tarde quando se conseguiu livrar do tráfego infernal da cidade. Ainda pensou voltar para trás, mas as suas necessidades reclamavam convívio.

   Quando chegou ao edifício onde trabalhava Rui, estacionou o carro. Ainda acabou de ouvir a música que estava a passar no rádio. Soltou o cinto de segurança e pensou em entrar no edifício. Antes de abrir a porta do carro, viu o marido sair do café de baixo, acompanhado de um colega. Cleonice cumprimentou ao longe o colega de Rui e o marido, agora só, dirigiu-se a Cleonice. Beijou-a e combinaram ir a um café ali próximo, já conhecido.

   - Resolvi sair do escritório e esperar-te no Tavares. – Sorriram. Do outro lado da rua, o marido avistou um colega e cumprimentou-o.

   - Este é o tal colega que está separado da mulher. – Comentou Rui.

   Cleonice reparou naquele homem, bem vestido, como dizia o marido, alto, rosto interessante completado de um bigode farto e tratado. A sua silhueta traseira, apesar dos seus possíveis quarenta anos, conservava elegância e interesse.

   Entraram no estabelecimento e sentaram-se numa mesa a um canto, para estarem mais à vontade.

  
    A conversa saltou das preferências culturais de ambos para os sentimentos, os projetos comuns, os filhos, as profissões…

   Cleonice aproximou a sua mão direita da mão esquerda de Rui. Surpreendeu-o, mas ele pareceu gostar. Falaram da necessidade de afeto entre ambos.

 


                                                  CAPÍTULO DOZE

 

   Mais uma vez aqui sentada nesta esplanada junto à praia de S. João, amando o sol, o mar, a música pop de um cantor famoso na rádio, entre os poucos clientes presentes, uns conversando, outros lendo, outros ainda comendo. Olho o mar e penso. Como a vida é interessante, composta de pequenas maravilhas. Vejo rostos agradados com a vida, amando-se… Ruídos naturais do movimento das águas, leves vibrações de vozes falando, abafadas por outra mais forte que canta como quem rasga um destino indesejado. Que fabuloso este encontro com a essência dos sentimentos.

   Se estivesse inquieta como há dias, não conseguiria desfrutar deste momento apaziguador. A solidão pode ser agradável quando não nos sentimos verdadeiramente sós.

   Estou a olhar para as minhas mãos secas pelo frio. O que poderei ainda fazer com elas?

   A senda que tenho de encontrar para o meu destino está repleto de exigências.

   - Não podes levantar a voz, repreender, reclamar, esquecer, lembrar demais, parar, sofrer, amar demais…

   Talvez um dia consiga amar pacificamente. Hoje ainda me quero diferente. Não estou ainda satisfeita com o que consigo fazer, mas sei que muitos precisariam de se repensar como eu.

   Estou a nascer um pouco todos os dias desde que nasci, há quatro décadas. Quando estiver a definhar ainda estarei a nascer?

   As palavras que não disse no dia-a-dia ficarão expectantes no meu espírito à espera de um dia serem ditas ou escritas. Por isso viro a página do Livro do Desassossego de Bernardo Soares e sinto que essa página pode ser também minha. Como será o meu próximo capítulo? Em quantos ainda participarei?

   Como Soares, procurarei as palavras que não me ocorrem para lhes acariciar a melodia silenciosa do sentido como um lindo gato acocorado no meu pensamento, feliz de sentir o sol a esgueirar-se pelas pálpebras, antes de entrar em sono profundo. Com essa luz vejo, ao fundo, o azul forte de um mar imenso…


                                                   CAPÍTULO TREZE

 

   - Conta-me uma história. – Pediu baixinho Cleonice a Rui à noite na cama num momento de intimidade. O rosto de Rui iluminou-se, contraiu-se de tímida alegria e após uns instantes de silêncio, em surdina, disse: - Agora?!

   Quereria uma história de amor? Nestas coisas de sentimentos há sempre riscos. Como é que tinham chegado a tanta hostilidade recente?  

   - Temos que retomar uma espécie de namoro. – Deliberaram mentalmente.

   Ao fim da tarde, quando Cleonice chegou a casa, depois de ter ido levar o mais pequeno ao vólei, encontrou Rui já em casa. Cumprimentaram-se e Cleonice tirou qualquer coisa do frigorífico para comer. Encostou-se a uma das mesas da cozinha. Rui aproximou-se, acariciou-a, deu-lhe um beijo e disse-lhe: - Queres ver a tal cassete?

   Um filme mais ousado… Como o filho não estava em casa, foram ver. A duração dos filmes era curta. Sentados no sofá da sala, Cleonice pôs as suas pernas no colo do marido e, depois de algum carinho inicial, experimentaram a sensação quase esquecida de fazerem sexo no sofá. Algumas pequenas interrupções como o telefone não foram suficientes para boicotar aqueles momentos de intimidade. Então saciados, Cleonice foi buscar o rapaz e Rui dirigiu-se para a casa de banho. Nessa noite Cleonice só acordou às sete da manhã. O marido deitou-se virado de costas. Cleonice, acordada, foi à casa de banho, foi ver se os rapazes estavam tapados e voltou-se a deitar. Minutos depois, o marido deu meia volta na cama, mas Cleonice levantou-se entretanto para chamar o mais novo para ir para a escola.

   À hora da saída, Rui aguardava a mulher no serviço. Cleonice não subiu; esperou que o marido a visse. Deixaram os carros naquela zona e foram até ao Guedes. Antes de fechar o carro, Cleonice pegou num saquinho com prendas e ofereceu ao marido. 

   - O meu colega, o Álvaro, deve estar a sair também. – Justificou o marido.

   Numa passada moderada, o tal colega alcançou o casal.

   - Estamos de fim-de-semana, ah? – Rui intercetou amigavelmente o colega.

   - É verdade. Bem merecido, por sinal. Até me vou mascarar e tudo!

   - A sério? – Perguntou incrédulo Rui.

   - De surfista. Com este sol tão simpático, vou tentar praticar surf. Achas que sou capaz?

   Em conversa animada, chegaram à porta do Guedes.

   - Álvaro, queres tomar alguma coisa connosco? 

   O colega declinou o convite e o casal ficou só. Calhava bem porque queriam conversar. Algumas verdades salpicadas de eufemismos. Se queriam dialogar não podiam ser muito exatos na escolha das palavras. Uma dessas verdades é que tinham usado instrumentos de tortura emocional pouco suaves.

    – Eu penso até que o sexo um dia será praticado por circuitos energéticos sem contacto físico. O nosso corpo degradar-se-á, mas o espírito continuará a proporcionar prazer à nova forma de vida. – Dissertava Cleonice.

   O marido elevou um pouco o tronco e beijou a mulher.

   - Quando a presença de alguém nos fortalece, tudo nos agrada.

   Chegaram as seis e meia da tarde. Levantaram-se e regressaram ao lar

   

                                            CAPÍTULO CATORZE

 

   Como conseguirei escrever uma história que se vai fazendo diariamente, ao ritmo das vidas que despertam repetidamente para a claridade efémera do dia?

   Sento-me aqui, a olhar para o ecrã do meu portátil, a pensar no que estou a escrever. É a minha história? Habitualmente as pessoas gostam de contar histórias, principalmente aquelas em que entram. Como gostamos de ser protagonistas de enredos, mesmo que sejam ficcionados. A minha realidade parece inventada, mas nem sempre o que vejo e o que vivo é o mesmo daquilo que sinto e penso. Alguém, humano ou não, parece ajudar-me a construir a minha própria história. Se fosse eu a decidir, não contava esta história. Quem me criou na minha própria história? Eu não sei escrever histórias. Apenas ligar palavras (nem sempre ideias) e inventar amigos ou desconhecidos que me observam, ou pelo menos dão pela minha presença. Podia falar sozinha, como costumo fazer mentalmente, mas teria que falar alto para fugir à rotina, o que já tenho feito…. Podia ainda falar com alguém sobre o tempo que gasto a viver comigo e com os outros, mas prefiro não me deixar tentar por inconfidências de que já sei que me arrependo. Por isso vivo a minha personagem pela mão de um autor que me é familiar, que não conheço bem, mas que será, com certeza, mais talentoso do que eu.

   Como adensar o enredo da minha história que se faz lentamente ao som apagado de umas teclas sem vida, neste silêncio que se contenta com o ruído distante da vivência mecanizada dos homens civilizados?

  Aqui, junto a este braço lamacento do estuário do Tejo, do lado contrário da capital, vejo o meu olhar expectante no espelho das águas escuras do sonho. Os meus pensamentos apenas confirmam que, no presente, estou aqui neste instante sem ninguém humano por perto a recordar-me a minha condição de mulher adulta de responsabilidades. Preparo-me para pôr o carro a trabalhar para ir ao encontro de um lar que julgo que tem ocupado a existência que me foi atribuída. Interrompo-me nesta forma de comunicação para retomar um papel que sempre julguei ser indestrutível e indissociável de mim.

 
                                              CAPÍTULO QUINZE


   Sentia que o tempo a desleixara na atenção para com os outros, à exceção daquela dispensada aos filhos que, hiperbolicamente, se queixavam de um acompanhamento materno excessivo. Cleonice julgava-se entendida, mas estava a tomar consciência da estreiteza do seu mundo. A sua discrição, por vezes voluntária, farpava-lhe o íntimo; e a necessidade do tempo de diálogo, mesmo que circunstancial, ganhou novas dimensões. Cleonice sempre fora, na realidade, muito afetuosa. Iria expandir, naquele casal, o enamoramento? Porém, os beliscões causados pela última distração ainda não estavam devidamente ponderados.

   Seguindo aquilo que lia e ouvia sobre o assunto, Cleonice poupava os filhos de situações que lhes pudessem criar estranheza.

   - Não te incomoda os gestos de carinho entre mim e o teu pai, pois não? – Perguntou oportunamente Cleonice ao filho mais velho.

   - Porque é que me havia de incomodar? – Retorquiu o Miguel.

   - Há dezoito anos que nos conheces e, acho, nunca nos viste tão afetuosos. É bom, claro, mas podias estranhar, de repente, este comportamento. Talvez estejamos a ganhar novas energias. – Explicou a mãe. – A ideia é permanecer nesta atenção mútua até à velhice. Será que conseguiremos? 

   O filho não respondeu, mas sorriu. Até os filhos estavam, à sua maneira, empenhados no entendimento familiar.

   O casal, com alguma frequência, juntava-se depois do horário de trabalho num café a conversar. Um dos temas preferidos de Rui era a sua atividade criativa que considerava muito sacrificada pela falta de tempo. Curiosamente, escrever e pintar (ou desenhar) eram hobbies comuns aos dois. Com formações académicas diferentes, os dois sentiam-se impelidos para estas áreas. Mas as responsabilidades maiores reduziam o tempo desejado para aqueles interesses. As discussões à volta da organização das tarefas familiares e domésticas sempre foram muitas. Comparativamente, sentiam-se mais tranquilos, mas a realização pessoal estava pouco contemplada. Enfim, dialogavam. As suas experiências passadas, antes e depois de se conhecerem, amorosas, profissionais, humanas, preenchiam aqueles encontros a dois. 

   - Vocês agora chegam sempre juntos a casa. – Dizia o mais novo, em casa, em tom curioso. – Como é que fazem com os dois carros?

   - Regressamos a casa, um atrás do outro. Em vez de ser lado a lado, a pé, vimos juntos, mas em carros diferentes. – Esclareceu a mãe com voz sorridente.

   O mais novo era dos dois filhos aquele que, naturalmente, exteriorizava o seu espanto ao observar a nova atitude dos pais.

   - Achas que ainda podemos namorar? – Dizia Cleonice ao filho com gestos joviais de brincadeira. O moço sorria embaraçado. A mãe, um dia, desafiou-o: - Até tu já estás com aquele olhar de quem gostava de namorar, de dar uns beijinhos a uma miúda gira, diz lá que não? – E soou uma gargalhada geral, até do adolescente que, conhecendo o jeito aberto da mãe, consentia humoristicamente este tipo de conversa que ele sabia que implicava assunto sérios como o seu desenvolvimento hormonal.

   Cleonice foi, mais uma vez, contemplar o colorido natural no sapal de Corroios ao fim da tarde. A distância quilometrada por ela não era impedimento para fazer frequentes incursões solitárias por estes lugares. Nesse dia, as nuvens estavam grossas e negras, prometendo chuva, que estava a ser tão desejada nesse ano, sobretudo pelos habitantes das zonas rurais do país.

   Cleonice ia dispondo ao longo da semana de algumas horas para escrever ou ler ao ar livre, na sua costumada quietude com o mundo. Mas ao contrário daquilo que acontecera muitas vezes no passado, Cleonice não só procurava não se afastar das pessoas como, timidamente, procurava entrar em contacto com gente que, por vezes, nunca vira antes. E lembrou-se de um episódio que leu no Diário de Sebastião da Gama em que o autor revela o seu propósito de viajar sozinho para criar oportunidades de conhecer pessoas. Cleonice admirou tal atitude.

 

                                               CAPÍTULO DEZASSEIS


   Estou mais magra. Os amigos confirmam a minha impressão. Tenho feito diligências para não engordar, mas só o dia-a-dia conseguiu emagrecer-me as carnes, retirando boa parte do meu apetite. Ironia do destino! Não sou gorda, nunca fui, mas sempre gostei de comer. Nos últimos anos tenho tido alguma tendência para alargar, sobretudo os anéis da cintura. A verdade se diga que eu habitualmente não me privo de comer doces, gorduras, em quantidades q.b.. Mas como estou mais magra, quero manter-me assim, mesmo sabendo que o prazer de comer é dos últimos a extinguir-se no ser humano e que as experiências gastronómicas são muito procuradas, como conta Luís Fernando Veríssimo no seu livro O Clube dos Anjos, curiosamente por doentes terminais…deixo a história para mais leitores.

  Resolvo ir à igreja da Nossa Senhora da Graça. Depois da conversa com o meu marido à hora do almoço, resolvi ir falar com o padre Ernesto. O Rui tem razão quando acusa a igreja de intolerância, inflexibilidade e falta de compaixão. Perde a razão quando, repetidamente, esquece o valor social e humano dessa instituição. Por isso, desço no carro até à igreja, na esperança de encontrar o pároco.

   É-me difícil orientar uma conversa para o tópico que desejo. Tenho praticado um pouco, embora nem sempre com sucesso. O padre Ernesto falou muito sobre valores da igreja e não escondeu o seu lado conservador.

  - O ser humano tem uma memória muito curta. Já há quem não se lembre das consequências do Tsunami, dos milhares de vítimas dizimadas pelas águas revoltosas da costa oriental. – Confidenciava-me o pároco. – Lembraram-se de Deus e dos outros nos dias imediatos, mas a distância física, temporal e espiritual enfraqueceu-lhes a memória. Os homens ainda não se aprenderam a celebrar a vida e o seu Criador incondicionalmente, em todos os momentos da sua vida.

   E o tema da família que eu queria introduzir?

   Em contrapartida, no dia seguinte comprei um livrinho de Meditações sobre a Família no hipermercado, quando fui com o Rui ao Jumbo, e, a par das compras, partilhei com ele o seu conteúdo. Terá sido, talvez, pedagógico.



                                             CAPÍTULO DEZASSETE

 

   Mais uma vez, a luz do fim de tarde prateava o azulado marítimo e celeste. A única esplanada aberta junto à costa marítima estava cheia de clientes, sobretudo jovens da faculdade de Ciências e Tecnologia do Monte e senhoras reformadas.

   Quando Cleonice chegou, cumprimentou a Dona Josefina, uma senhora simpática, ex-funcionária da PT, que conhecera há dias numa esplanada ali perto. Estes encontros casuais deixavam Cleonice mais animada e mais humana!

   - Como está? Mais um lindo de sol, não acha? – Adiantou Cleonice. Dona Josefina estava acompanhada de mais duas senhoras, mais ou menos da sua idade, como acontecia habitualmente.

   - Bem, obrigada. Ah, mas de manhã estava muito frio. Sabe, só consegui fazer metade do meu percurso. Senti muito frio.

   Dona Josefina, segundo contou a Cleonice, todas manhãs andava cerca de cinquenta minutos no paredão daquela costa, das torres de argolas até ao bar O Fofinho. Depois acomodava-se numa das esplanadas onde se juntava a outras senhoras conhecidas que ali iam. Há semanas atrás, o primeiro contacto entre Cleonice e Josefina não foi fácil. Foi esta, de facto, quem dirigiu as primeiras palavras a Cleonice, que se tornara mais ou menos cliente daqueles cafés, ao procurar o exterior marítimo para trabalhar, ora em tarefas da escola, ora em pequenas actividades intelectuais do seu interesse pessoal. Só depois de mais alguns encontros fortuitos entre elas é que se foi desenvolvendo uma gradual empatia entre as duas. Cleonice andava ensonada, por causa das suas noites agitadas e estremecidas pelas novas coordenadas matrimoniais, e por isso falava mais tranquilamente, por necessidade, o que lhe permitiu descobrir em si essa variante naquilo que talvez já pudesse considerar talento de comunicar como sucesso. Ser moderadamente empenhada no contacto com os outros, eis o segredo do seu novo e adequado doseamento energético. Viver usando palavras “de orvalho apenas” como escreve Eugénio de Andrade. Nem barcos, nem beijos, nem tão pouco punhais ou ingenuidades, mas sons convencionados de frescura que a levasse a desentorpecer o espírito social ainda atrofiado.

   Cleonice dirigiu-se ao balcão, fez uma breve saudação e pediu uma água com gás.

   - Eu hoje já a vi, não é verdade? – Inquiriu-a o empregado.

   - É verdade – respondeu timidamente Cleonice. Na manhã daquele dia tinha ali estado a fazer o mesmo que tencionava fazer naquele momento: escrever. Cleonice lembrava-se que tinha levado o seu tabuleiro para o balcão de atendimento, o que parecia ter agradado ao senhor. Houve, de facto, uma breve troca de olhares, à qual Cleonice não conseguiu corresponder, por ser motivo de embaraço à sua débil capacidade de sociabilização. Mas Cleonice lembrou-se de uma frase do décimo quarto Dalai Lama, que os tímidos são egocêntricos, reequilibrou a intensidade da sua timidez, fez uma respiração funda e abdominal, sorriu e foi sentar-se no exterior do estabelecimento. E o sol, a pouco e pouco, foi-lhe estendendo os seus braços luminosos e por sobre a colcha azul marinha até se encobrir por completo por detrás do horizonte ocidental da Costa da Caparica.



                                             CAPÍTULO DEZOITO

 

   Falta pouco mais de uma semana para terminar mais um período letivo. Estou com todos os testes por corrigir. Embora no princípio da carreira sentisse algum prazer no desempenho desta tarefa, atualmente faço-a com sacrifício. Quão difícil é assinalar erros e, sobretudo quantificá-los num valor final. É difícil porque cada vez me sinto com menos autoridade moral para participar na deliberação do futuro dos jovens.

 Esta manhã, antes de sair de casa, passei os olhos pelo Correio da Educação e deixei-me encantar por textos que dão conta de sensibilidades fortes perante o imperfeito processo educativo dos alunos. Porque é que as novas pedagogias nunca são verdadeiramente aplicadas e quando são não dão os resultados esperados? Porque é que eu própria ainda não consegui dos alunos aquela motivação maior?

 Continuo a gostar de comunicar com os jovens do terceiro ciclo da minha escola. Com os mais novos, vejo-me obrigada a usar medidas inibidoras da distração e da irrequietude habitual logo no início do ano letivo. Não exagero na simpatia que lhes dispenso, mas um mês ou dois depois já posso dar-me ao luxo de lhes sorrir e permitir pequenas liberdades na sala de aula, como ouvirem música no MP3 ou no discman enquanto resolvem individualmente os questionários do manual. São muitos e por isso as aulas expositivas são muito cansativas, para eles e para mim. Mas uma suficiente interação verbal continua a ser indispensável para a nossa relação e para o nosso trabalho.

 Com as turmas de alunos mais velhos, o trabalho nem sempre corre bem. Ou melhor, é mais a nossa relação que nem sempre é feliz porque é retraída por advertências frequentes ao comportamento ruidoso de alguns alunos. Quer fale eu, quer fale um aluno ou não fale ninguém, o ruído revela o pouco poder de concentração de muitos discentes e isso tem comprometido o grau de produtividade e exigência de algumas aulas. Em contrapartida, outras decorrem com um espaço próprio para cada aluno se manifestar sobre as suas experiências pessoais e não se dá pelo tempo passar. É nessa altura que os meus olhos conseguem discernir em cada rosto o brilho de um mundo à espera de ser descoberto e tantas ideias prestes a desabrochar no papel e na confluência mental estabelecida entre os colegas de grupo. São tão corajosos, mas tão sensíveis e emocionalmente frágeis os nossos jovens! Dou por mim, muitas vezes, a olhar para eles como olho para os meus filhos nos quais recordo parte da pessoa vulnerável que eu fui.

 Como os afetos estão tão presentes nas observações microscópicas, na identificação da fauna e da flora, na defesa da nossa ecologia…até num raciocínio matemático! Vejo-me a encarar o sucesso das novas pedagogias muito dependentes da saúde emotiva e psicológica dos educadores e dos educandos, numa sociedade ainda enferma de problemas familiares, económicos, profissionais e sociais que continuam a comprometer o papel formativo da mesma. A instituição-escola tem participado nesse processo lento e doloroso, infelizmente pouco permeável à mudança, embora sempre ávida da ajuda de pessoas.   

 
                                         CAPÍTULO DEZANOVE

 

   Não há toques. Desde que foi implementada a revisão curricular do ensino básico que a direção da escola entendeu que os toques iriam confundir os alunos que estivessem com blocos de quarenta e cinco em vez de noventa.

   Na sala de professores, encontravam-se profissionais fora do tempo intervalar que aproveitavam os “furos” para corrigir trabalhos, rever matérias ou simplesmente conviver. No princípio, os novos horários criaram alguma perturbação nas conversas interrompidas dos professores. Com o decorrer do tempo, a calma foi-se instalando.

   Cleonice estava num dos seus “furos”, acompanhada de mais três colegas, quando surge uma quarta, perguntando à mais nova das que estavam presentes:

   - Já tens o contacto da empresa que assegura a atividade do paintball?

   - Eh pá, desculpa, mas esqueceu-me completamente de o trazer. Trago-te amanhã, pode ser?

   - Sim, não tem problema. É só por dizer que essa fica perto daqui.

   Nisto, chega outra que ouvindo a conversa, pergunta:

   - Parece-vos pedagógica essa atividade de paintball? Aprende-se o quê? A atingir o adversário?

   O assunto acelerou os ânimos. Entretanto, Cleonice passou a uma conversa paralela com aquela do contacto do paintaball.

   - Sabes, - prosseguia Cleonice, - eu acho que certas disciplinas de grande atividade física deviam ser mais acarinhadas nas escolas. Não apenas porque o exercício físico é saudável, mas também porque, sobretudo os rapazes sofrem com o comportamento exigido de passividade física nas aulas teóricas, e até nas teórico-práticas.

   - Concordo plenamente, - reforçava a outra. - Eu tenho duas raparigas e um rapaz e a caderneta do moço está quase cheia de repreensões escritas, enquanto as das raparigas estão quase por estrear. E, no entanto, não o considero mais preguiçoso ou menos inteligente. Não sabe é estar sossegado os noventa minutos de cada bloco. O problema das advertências de que é frequentemente alvo, fá-lo distanciar-se do lado humano da escola, o que tem sido problemático.

   Cleonice tinha que ir dar outra aula. Ficou reconfortada por ter tido a possibilidade de abordar aquela questão, que considerava pouco discutida no âmbito do grande tema do modelo mais adequado de escola.

   - O atual modelo sacrifica os mais ativos porque entende que a atividade escolar pode dissociar-se, sem consequências, da componente desportiva, tecnológica, lúdica e artística. A prova viva disso são as escolas sem condições para estas áreas. O próprio mercado de trabalho em Portugal pouco encoraja outras áreas que não sejam a saúde e as engenharias, com uma preparação técnica no secundário discutível. 

   As palavras da sua colega bailavam na cabeça de Cleonice, enquanto ia saudando alunos e funcionários no corredor. Entrou na sala de aula e foi acomodando o seu material sua mesa. Faria sentido o desporto funcionar quase exclusivamente como atividade extracurricular? Ora, em boa parte era assim que sobrevivia no dia-a-dia dos alunos, mas talvez fizesse sentido aliviar o desenho curricular em algumas disciplinas teóricas e abrir espaços no horário dos alunos com atividades de equipa organizadas.

   - Desculpe o atraso, stôra. Posso entrar? 

 

                                               CAPÍTULO VINTE

 

   Não tarda que tenha que pagar um jantar de anos aos amigos, como de certa forma se instituiu quando alguém entre nós faz cinquenta. Posso considerar-me na meia-idade, se conseguir fugir à morte até aos cem; bem, se não for até aos cem, pelo menos até aos noventa ou oitenta e cinco. Continuo a considerar-me, apesar de tudo, na meia-idade (estarei a meio, de facto?).

   Ora me sinto uma pessoa relativamente jovem, ora me sinto mais velha. Não me parece que seja porque me aproximo tendencialmente de pessoas mais e menos jovens que eu, especialmente por razões profissionais. Julgo que a minha personalidade é um tanto versátil. A minha natureza é distinta do comum dos mortais. Somos todos distintos, não? (E ainda bem).

   Vou, em breve, com os meus alunos a Paris durante uma semana. Já conheço a cidade da Luz, mas nunca a conhecerei suficientemente. É fascinante a sua descoberta, no meu caso como viajante esporádica. Não terei, com certeza, muitas condições para fazer os meus apontamentos sobre a viagem. Mas um dia gostaria de viajar como escritora ou corresponde de um periódico.

   Somos, contudo, pequenos seres que se movimentam num espaço que nos parece difícil de percorrer em 80 dias, como imaginou Júlio Verne. O que pensarão os poucos que já tiveram a oportunidade de se distanciar na esfera celeste e que reavaliaram o seu lugar, como mortais, neste planeta? Tentamos ocupar os nossos dias da melhor maneira que sabemos e podemos, mas até quando? Não será, com certeza, na minha geração a extinção, mas quanto tempo terá a Humanidade? Será a História uma forma falaciosa de sobrevivência (não pisámos de facto a superfície da Lua?)?

   Diz-se que o Homem é um ser inteligente. Tudo indica que sim, mas a destruição que tem sido feita do passado é assustadora. Ainda há muitas provas da nossa existência atual à vista. Conseguiremos conservá-las depois da extinção da Terra? Daqui a muitos milhões de eras, claro! Para encontrar um lar como o que temos, ainda precisamos de procurar. Provavelmente cá estarei, inevitavelmente a cumprir outra missão de vida, não sei se humana. Ou talvez já não aqui. Seria melhor as atuais gerações investirem a longo prazo na preservação da nossa espécie e do nosso “habitat”, e aprender a conviver, pacificamente, com as outras formas de vida, reconhecidas e, quem sabe, ainda por reconhecer pela física quântica, por exemplo. “Com tanto espaço, seria um desperdício existir vida apenas neste planeta”, são algumas palavras que me lembro de ter lido no Contacto de Carl Sagan.

   Deixar de comer mamíferos será, um dia, um grande passo para a Humanidade. A partir de quando é que o homem estará preparado para olhar mais longe no espaço e no tempo? Ou compreender o sem-tempo?

 

                                              CAPÍTULO VINTE E UM

 

   Lá fora, sentiam-se sinais de Primavera. Os pássaros chilreavam em pequenos bandos, o céu mostrava alguns sintomas de chuva e havia um ruído de fundo que indicava brincadeiras dos mais novos com objetos de madeira que trepidavam com a movimentação rente ao piso da calçada. Talvez skates ou carros de esferas (esperemos que não sejam as novas táticas do carjacking!).

   Sentada à mesa da cozinha, Cleonice escrevia. Era feriado. Tinha a família quase toda em casa, menos o filho mais novo que seguira nesse dia para Paris na visita de estudo da escola. Cleonice, na sua qualidade de professora, tencionava participar, mas acabou por ficar. Olhava o ecrã enquanto pensava na verdade daquele momento. Sozinha naquela divisão, questionava-se sobre o amor. Já há algum tempo que não visitava bibliotecas ou universidades, a não ser a do seu filho mais velho na altura do baile de finalistas da sua escola. Cleonice já não andava tanto na sua bicicleta de manutenção, via pouca televisão, lia talvez menos, escrevia sempre que podia, mas a maior parte do seu tempo era passado entre as obrigações diárias, o deleite do prazer físico e as suas inquietações sobre o sentimento do amor conjugal. Em relação às obrigações, pensava naquilo que considerava essencial, limitando-se quase a cumpri-las. Ainda existiam algumas dificuldades na distribuição das tarefas domésticas entre o casal, mas nada de novo. Sobre o sexo, refletia mais. Porque é que os seus estímulos sexuais se alimentavam em boa parte de fantasias? O sentimento pelo seu parceiro em nada sofria com isso. Pelo contrário: estimulava os momentos de intimidade que se tinham tornado mais frequentes. Os beijos eram roubados na cozinha, no quarto, na sala, por vezes com carícias apaixonadas no cabelo, nas mãos, no rosto, e com maior sensualidade nos contornos do corpo dele e dela, que atingiam os pontos mais erógenos, fazendo acelerar o ritmo da respiração de ambos.

   - Minha pequenina! – Disse-lhe Rui. Cleonice não era pequenina. Cleonice gostou porque sentiu carinho na vibração da sua voz. Estavam abraçados, a partilhar as pulsações sexuais. Olharam-se e sorriram.

   - Vou desejar uma boa Páscoa ao Quim – disse, por fim, Cleonice, soltando-se carinhosamente do companheiro.

   Aquele amigo do casal saía frequentemente ao fim-de-semana, mas Cleonice decidiu tentar a sorte.

   - Então, em casa? – Admirou-se.

   - A Júlia trabalha estes dias; por isso só vamos à terra no domingo. – Confessou Quim a Cleonice. – Há dias falava com a Rute ao telefone e falámos de ti. Como é que está a tua vida?

   - A minha vida? Vai andando. A vida tem sido um pouco madrasta! – E sorriu para desanuviar o tom da sua voz.

   Quim perguntou-lhe se queria conhecer um filtro de água bom que uma senhora sua amiga andava a comercializar e Cleonice resolveu passar o telefone ao seu marido para ele decidir aquele assunto com Quim.

      O telefone da rede fixa tocou entretanto. Havia notícias boas de Paris.

 

                                        CAPÍTULO VINTE E DOIS

 

   Este vento marítimo vem reclamar os direitos de um Inverno tardio. A Primavera não se esqueceu de trazer consigo as nuvens densas e carregadas da estação fria para se misturarem com o cinza claro das ondas picadas do mar da costa na Caparica. Parece que o dinheiro destinado ao projeto Polis está a ser aplicado na recuperação da zona de veraneio. As máquinas elevam os seus ganchos para movimentarem enormes pedras da encosta do paredão e das pontas dos quebra-mares. É uma chuva miudinha que aviva as cores escondidas pela poeira da última seca. As esplanadas estão recolhidas à entrada dos estabelecimentos: cadeiras de plástico empilhadas enchem os cantos por debaixo dos avançados que pingam gotas de chuva baça batidas a vento. No interior do café onde escrevo esta página olho o exterior pouco nítido, sobreposto pelo embaciado dos vidros encaixados na madeira de que é feito este pequeno espaço comercial.

   Quando for velha conseguirei ainda visitar livremente o mar?

   Oiço sons mecânicos e musicais que reconheço fora de mim e me ajudam a admitir outros mundos tão perto de meu. Tilintam moedas. Projetam-se vozes construtoras de palavras que preenchem conversas repletas de circunstâncias experimentadas. E reajo...com palavras que sinto presas entre o abismo da dor e o meu rosto. 

 

   Beijo a solidão para conquistar

  O seu amor na minha dor

  Pois não consigo abandonar

  O meu eu ávido e ansioso

  Pelo prazer do saber e viver

  Para além de mim e de ti

  Junto a um Deus insatisfeito

  De nós e do mundo, às vezes perdidos

  Entre a ganância e a perversão

  Dos sentidos misturados nas ruas

  Movimentadas por sonhos

  Teimosos nos rostos pueris

  Das mulheres e dos homens

  Que se entreolham, dominadores

  Quão frágeis no seu pavor, escondidos

  Em máscaras marialvas ou desafiadoras

  Com passos rudes ruidosos nas calçadas

  Citadinas em vigília quase luminosa

  De bares e traineiras incansáveis

  Que atracam nas praias escuras

  E preguiçosamente acenam

  À estrela mais influente do dia

  A despontar.
 

                                        CAPÍTULO VINTE E TRÊS

 


   A harmonia tinha espaço na família Oliveira.

   - Não me esqueço que foste tu que me contaste a história mais bonita da minha vida. – Repetia-lhe Rui, talvez para fazer sobressair o seu lado másculo, que embora o negasse, nos últimos tempos se misturava com a sua impaciência para a colaboração doméstica. Refilar para quê? Cleonice era, por sinal, uma falsa refilona. Apurara as maneiras. O seu discurso já não era tão espontâneo – o que lhe exigia um certo esforço. Mas gostava mais de si assim, ponderada. Os ressentimentos eram, contudo, fantasmas atentos ao íntimo do casal que ressurgiam ao mais pequeno sinal de afrouxamento daquela que parecia a paixão renovada do casal.

  Os pais de Cleonice eram ambos vivos. Mas a mãe de Rui já era viúva há uns anos e a sua idade era avançada. O casal tinha ido, há mais de um ano, inscrever a octogenária Odete a casas de recolhimento para idosos na sua zona residencial, com superintendência estatal, que a permitisse continuar a sair durante o dia como estava habituada. As listas de espera eram extensas, mas prevalecia a esperança.

   Após várias semanas, o filho mais velho do casal atendeu um telefonema do Recolhimento da Nª.Sra. de Fátima em Lisboa, feito pela assistente social para dar conta de uma vaga que iria abrir dali a dias.

   - Vai ver que vai ficar bem, mãe. – Disse Rui à idosa.

   - Eu sei que a tua ideia é o meu bem-estar, mas eu quero continuar a viver na minha casa e não dar satisfações do que eu faço a ninguém. – Afirmou Odete, determinada.

   O casal e os filhos entreolhavam-se. A tarefa de convencerem o elemento mais idoso da família a aproveitar aquela inesperada vaga na instituição religiosa, de bom convívio, não estava a ser previsivelmente fácil.

   - Olhe, avó, pode continuar a encontrar-se com as pessoas suas conhecidas no jardim. À noite é que vai dormir lá, acompanhada, em vez dormir sozinha em casa. Se dormisse à noite na nossa casa, que ainda é longe, não poderia fazer os passeios e as visitas que insiste em fazer.

   Dona Odete, embora renitente, era suficientemente corajosa e sociável e não gostava de se lamentar.

   Esta missão familiar levou dias a dar alguns resultados. Entre alguns almoços e lanches de adaptação, a Dona Odete dedicou desde logo a sua simpatia às funcionárias e às utentes da sua nova casa. O espaço, esse, já lhe era familiar há muitos anos, quando lá ia visitar amigas ou quando ia tratar de assuntos à Junta de Freguesia que funcionava no mesmo piso daquele edifício antigo bem conservado naquela rua tipicamente lisboeta, cortada por outra que denunciava um soberbo declive de uma colina até à zona ribeirinha de Santos. O soberbo quadro marítimo ao fundo era cinematográfico.

   - De vez em quando, vem cá a casa ver-me a correspondência – pediu-lhe a mãe, de voz ocultamente embargada, despedindo-se da casa, sua amiga de trinta. Dona Odete estava de mala aviada para mudar de aposentos. Entre família, desde há muito, que não se utilizava o termo lar que chegava aos lábios carregado de desamor e solidão. Contrariamente, Odete conhecia muitas das senhoras com quem iria conviver no recolhimento do tempo das festas da Santa Margarida, o que acelerou a sua decisão de se mudar na data apontada pela assistente social. Mais consciente da sua velhice, a mãe de Rui entrou acompanhada por duas funcionárias atenciosas e pelos filhos (ainda usava o nome filha quando se referia à nora), até ao seu quarto que era novo naquele espaço da casa. Tudo cheirava a limpo e a fresco. Até a mobília. Casa nova, vida nova, todos estavam com grande expectativa no novo «lar» da mãe Odete. Era merecido o bem-estar na velhice.

   E nesse preciso momento, da rádio, a voz do jornalista sobrepôs-se dando a notícia da morte do papa João Paulo II que inundou de melancolia o espírito daquelas duas criaturas que pareciam perder-se no intenso tráfego automóvel ao fim de uma tarde chuvosa e triste, como talvez a alma de boa parte da humanidade.

 

                                           CAPÍTULO VINTE E QUATRO

 

   Vejo-me no espelho e quase não me reconheço. Reparo no contorno do meu nariz, nos poros dilatados, na tez de um pálido timidamente rosado. Já noto pequenas rugas no meu olhar surpreendido com um rosto de mulher defronte do corpo que sinto e com o qual sempre convivi. Não sou pertença minha, porque ainda estou dolorosamente a construir-me. Ainda não me conquistei. Talvez seja mais desobediente do que a maioria das pessoas, ou menos perspicaz, ou menos rápida a crescer. Ainda sou muito dependente dos outros, que conheço pouco e, talvez por isso, tenha dedicado pouco tempo da minha vida a conviver.

   Nunca me tinha visto ao espelho desta forma, estranha e profunda. Não me preocupa propriamente a beleza, ou a falta dela. Procuro, comigo, exercitar a minha pouca capacidade de entendimento da expressão facial. Será que esta expressão com que estou agora tem os principais traços habituais que indicam, como se fosse um espelho, pensamentos como este? Se fosse doutra pessoa este rosto, qual seria a impressão que eu conseguiria captar? O meu julgamento estaria perto da essência desse pensamento?

  Diz-se que o nosso rosto espelha as nossas emoções. Hoje, que penso um pouco nisto, só consigo perceber essa semelhança entre o espelho e o rosto humano ao pensar nas reações momentâneas que o exterior provoca no interior de cada um, que surgem mais por motivação do que por pura imitação. A capacidade de espelhar, comummente atribuída ao rosto (como reflexo da alma, por exemplo), é mais, neste meu momentâneo discorrer, metaforicamente de «porta» como código de passagem para o interior do ser humano, à semelhança do que acontece com a ligação do amor ao coração, e não tanto de imagem propriamente refletida daquilo que vai no nosso interior e mais de um sinal de antevisão emocional ou sentimental. Quando fixo o olhar de alguém (mesmo sendo o meu, por incrível que me pareça) desejo lê-lo para além do próprio rosto, para vislumbrar a alma. Os sinais expressivos do rosto parecem-me pistas, muito boas por vezes, para descobrir o interior de alguém, mas nem sempre consigo vislumbrar o que parece que seja uma imagem espelhada desses segredos (os estados de espírito), que poucas vezes são revelados fiel e integralmente, tão difíceis que são de gerir, de defender e até de compreender.

  Longe de me aproximar da classificação existencialista de pensadores como o nosso Virgílio Ferreira, que sabia questionar-se, posso não estar longe do vício que inevitavelmente ataca os humanos, embora ainda padeça daquilo que ontem apelidei de síndrome da comunicabilidade. Gosto das palavras, deleito-me com as construções maravilhosas que elas me permitem, ainda acredito nelas, mas não consigo manter um amor tranquilo permanente por elas.

   No último encontro dos educadores para a paz em que este ano voltei a estar presente, um dos jogos cooperativos era o «bazar humano», onde se comprava aquilo que para o próprio era uma qualidade, permutada com um defeito do qual nos quiséssemos livrar. Eu quis deixar a minha insatisfação em troca do amor tranquilo. Terei deixado?         

 

                                  CAPÍTULO VINTE E CINCO

 

   - Como é que eu sei que o mail foi enviado, se não ficou registado? – Perguntou ao filho mais velho.

   - Sei lá! Bolas, ‘tás sempre a falar do mail!

   Cleonice saiu, incomodada. Estava a fazer a cama do seu quarto e pequenas gotas caíram-lhe dos olhos, desfocando o olhar. Sentiu-se mal. Decidiu telefonar para a TVCabo para pedir aconselhamento. Ao contrário do habitual, a espera não foi demorada.

   - Boa noite. Eu gostaria de saber porque é que as mensagens enviadas não ficam registadas na minha caixa do correio. – Solicitou Cleonice.

   - Já tentou enviar um mail para o seu endereço? Experimente. – Sugeriu-lhe a rapariga dos serviços.

   Estava Cleonice na sala a escrever no portátil quando o mais velho entrou. Mostrou-se muito cordial e foi dando umas dicas à mãe para a iniciação ao Excel, que na escola lhe tinham instalado. Mais de uma hora, estiveram a conversar e a experimentar as novas opções do programa.

   Cleonice sentiu-se mais aliviada. Afinal o filho ficara preocupado consigo e foi em seu auxílio.

   - Vou-me deitar que amanhã tenho de me levantar cedo. At’amanhã, mãe.

   Cleonice sorriu-lhe.

   Quando foi puxar os cobertores da cama ao rapaz, aproveitou e beijou-o na cara. Ele abriu os olhos e esboçou um disfarçado sorriso. Não tens de quê, deve ter pensado.


 

                                          CAPÍTULO VINTE E SEIS

 

   Há dias fui ao XI Encontro dos Educadores para a Paz. Desta vez fui só um dia dos três habituais.

   Naquele espaço, conto sempre com uma predisposição excecional, minha e dos outros, para a comunicação.

   Levei comigo uma cara nova nestas andanças, a minha prima Dulce que também é professora, mas do segundo ciclo. Foi, em certa medida, mais caloroso ainda.

   Dentro de mim há sempre uma luta a travar-se entre a solidão e a necessidade de comunicação. Agora não me sinto só porque estou a reconstituir esta lembrança, numa espécie de confidência com o computador. É certo que tenho vindo a ganhar alguma afetividade a este objeto, mas muitas vezes não me chega. Mesmo sabendo que na sua presença também sou obrigada a mexer o corpo, sobretudo as mãos e os olhos, o que me distrai, pensar só é novidade em mim porque tem que ser organizadamente (embora hoje em dia tente não pensar tanto, como forma de auto-controle, até para me poder dedicar mais à observação e à contemplação). Assim disciplino-me mentalmente. O encontro para a paz tem-me sido útil.

   A partilha de experiências pedagógicas e humanas, enriquecida com as dinâmicas de grupo que habitualmente se fazem nesses encontros, têm-me obrigado a repensar o meu trabalho, as minhas prioridades e, até, o meu sentido de vida.

   No «bazar da fortuna», num dos jogos cooperativos dinamizados pelo líder galego, eu dispus-me a deixar ficar no bazar (de acordo com as regras, claro), a minha insatisfação e a trazer o amor tranquilo. Muitas foram as escolhas feitas: deixar a incomunicabilidade e levar a amizade; deixar a vaidade e levar a disponibilidade; deixar a falta de auto-estima e levar a felicidade; deixar a doença e levar a bondade…Continuo a pensar na escolha que fiz. É certo que não fui das poucas pessoas a partilhar esse tipo de pensamento embora não quisesse repetir escolhas já feitas. Mas acho que não fugi à verdade quando desejei ultrapassar as ainda barreiras na interação com os outros. Sei que sou sensível às limitações do ser humano, mas procuro maior harmonia interior para poder comunicar serenamente.

   O propósito destes encontros é muito pedagógico. Quando oiço verbalizar pensamentos nobres, como acontece nestes encontros, fico mais esperançada, porque há vontade de construir a paz no mundo. Mesmo sabendo dos fortes obstáculos no mundo como são a política e o dinheiro, sinto que vale a pena convergir os pequenos atos quotidianos que parecem enriquecer o íntimo de cada um.

   No regresso a casa, vinha a conversar com a minha prima enquanto conduzia. Perguntei-lhe se tinha gostado e ela respondeu-me: - Ultrapassou as minhas expectativas!

   É a primeira experiência para ela. Ficou deslumbrada, sobretudo, com a atitude humanizada dos outros que, muito provavelmente no seu dia-a-dia, são impacientes e irritadiços. Como eu. Mas penso que o esforço que tenho feito, tem valido a pena. O dos outros também valerá, com certeza.

 

                                       CAPÍTULO VINTE E SETE


   - O que achas do novo papa? – Perguntou-lhe Rui. Cleonice hesitou um pouco, e por fim respondeu:

   - É alemão. Deve ser inteligente suficientemente para não deixar a igreja católica estagnar.

   - Eu acho que é muito conservador. Não me parece que o mundo vá beneficiar com a entronização deste novo papa. Pelo contrário! – Rui aproveitou para aplicar aquele termo que tinha aprendido durante a apresentação das cerimónias oficiais de receção ao novo líder da instituição católica.

   A população mundial, segundo as notícias ouvidas pelo casal, parecia dividida na sua fé em relação à próxima atuação do novo, embora idoso, papa Ratzinger. Era o tema quente da atualidade.

   Cleonice foi contactada por uma editora para publicar o seu trabalho de pós-graduação. Como o seu marido não podia acompanhá-la em horário do seu serviço, Cleonice foi com Alice, uma colega sua dos primeiros tempos de carreira à entrevista.

   Cleonice foi ter a casa dela, a Entrecampos. Felizmente arranjou lugar para estacionar o carro. As amigas, ainda na escada, olharam-se e enterneceram-se com esta revisitação física que se reportou aos seus tempos de convívio.

   - Estás mesmo bem? – Perguntou Cleonice.

   - Um pouco só, mas estou. Vou muitas vezes sozinha ao cinema. O Pedro trabalha até tarde e eu tenho de me entreter. - Havia uma certa entoação de tristeza na voz de Alice.

   - Eu sei que o Pedro, se não vem para casa é porque tem muito trabalho. Sabes como é nas empresas privadas, exploram bem as horas de trabalho.

   - Como é que te tens defendido estes anos todos? – Perguntou-lhe Cleonice.

   - Entrego-me aos meus hobbies: ao cinema, à culinária, à ociosidade…como se fosse uma gata de sofá.

   - O teu marido é-te fiel?

   - Para ser sincera comigo própria, não sei. Acho que todos os homens gostam de ser idolatrados. Até nós mulheres! Mas eu penso que a estratégia de sobrevivência é cultivar mais a amizade para nos fortalecermos e darmo-nos ao prazer de fazer programas descontraídos como ir até uma esplanada conversar ou ir a casa de amigos simplesmente para conviver. E se não os há, há que arranjá-los!

   Alice sorriu, em jeito de aprovação.


 

                                              CAPÍTULO VINTE E OITO

 
 

      Gostava de ver o meu trabalho publicado, é verdade. Mas a ideia assusta-me porque venho a perceber que é um processo arriscado. Não houve entrevista porque estava equivocada com a data marcada; tinha que voltar na semana seguinte, para conversar com o editor.

    A filha de Alice movimenta-se no meio jornalístico e editorial e ela aproveitou para me alertar para certos perigos.

    Durante a dita entrevista, na semana a seguir, após primeiro contacto bem sucedido, fui informada que o tempo de impressão do livro podia ser relativamente rápido, pelo menos na editora Maravilhas, mas que a venda de livros de investigação era difícil, porque só interessa a um grupo muito restrito no mundo académico. Não foi muito animador, mas pareceu-me um argumento real. Foi-me dito que tudo o que é feito naquela empresa é previamente explicado ao autor. Conversa compreensível de marketing. No entanto, o valor que à partida eu sabia que teria que suportar para tornar possível aquele projeto, segundo o editor viria no contrato relativo à compra dos 25 exemplares reservados para o autor, como forma de contornar os dezanove por cento do Iva que, doutro modo, teria de suportar, como parece ser de lei, sobre os mil e oitocentos euros; cinquenta por cento a liquidar na altura de assinatura do contrato e o restante no ato da entrega dos exemplares destinados ao autor.

   A proposta de contrato feita, distorcendo a realidade, pareceu-me suspeito. Mas o que me fez pensar foi a forma desprendida como me falaram dos outros 175 exemplares que, ou muito me engano, não chegariam a ser impressos. Seria um negócio fácil para render pelo menos 900 euros do sinal, caso entretanto o autor, eu, percebesse as previsíveis irregulares. Reclamação seria pouco viável, atendendo ao conteúdo do contrato que desejavam arquitetar.

    Com tristeza, constato que vou ficar com mais um sonho adiado…até um dia.

 Entretanto, vou continuar a acrescentar dados que tenho localizado sobre Rafael Bordalo Pinheiro relacionados com o tema do meu trabalho, com o objetivo de me comprazer e de não perder a esperança na veracidade e clarificação dos factos (esperemos que isto não seja mais um pensamento estéril). Entretanto telefonei à Ana Paula para a desafiar a fazermos cada uma mais uma ou duas entradas para o e-Dicionário em construção de Termos Literários, ideia que me entusiasma de sobejo.



                                          CAPÍTULO VINTE E NOVE

 

   Cleonice foi, mais uma vez, esperar o filho mais novo ao surf, na Costa.

   Sentou-se na esplanada do café que pertence à escola, como habitualmente combinam. Ela trazia um texto rabiscado há minutos da última aula com uma turma de nono ano, com a qual comemorara a centésima lição. Sentou-se. Deixou ficar a chávena do café do último cliente, porque não lhe apetecia fazer qualquer pedido. Antes de ali chegar, depois das aulas, foi a casa num pulo beber leite de soja e comer uma bolacha de cereais. Estava saciada. Cleonice quando podia, escolhia o regime tipo macrobiótico.

   Ligou o computador e preparou-se para copiar o texto do papel, mas começou a interessar-se pela conversa ao lado, de um grupo de jovens que falavam sobre relações amorosas. Estaria a ficar cusca?

   O tema era as relações amorosas.

   - Porque é que os casamentos hoje duram tão pouco? – Questionava uma das raparigas.

   - Porque coexistem diferentes mentalidades. – Respondeu prontamente um dos rapazes. - Se os casamentos são para durar toda a vida, é melhor casarmos aos oitenta. – Risota geral.

   - As relações, hoje em dia, são só de curtes. As gajas, no sítio onde vou fazer umas horas de trabalho, só falam de brasileiros com quem andam a curtir.

   - São casadas?

   - Uma está junta, mas as outras são separadas.

   - Por outro lado, os namoros parecem durar anos e anos. Dantes as pessoas namoravam semanas e os casamentos duravam para toda a vida. – Era voz de uma rapariga.

   - Se quiseres casar-te, arranjo-te aí um dos meus amigos que quer arrumar a vida. Esta expressão ainda existe?

   - Não gozes. Eu ainda acredito no casamento.

   - Quando o nosso primeiro amigo se casar, vai ser «bué da estranho». – Comentava alguém.

   - Pois vai. Faz-me lembrar quando fui o primeiro a tirar a carta de condução. Apareci em Sesimbra com carro, o que foi uma novidade para todos. Agora só quero é andar à pala.

   A conversa entretanto serpenteou dos pais para os vícios, o calor... Os rapazes despiram as tshirts. Era Maio, mas estavam 29 graus.

   O Vasco chegou. Vinha de cabelo húmido como de costume. Pediu dinheiro à mãe para ir comprar qualquer coisa para comer.

   Os palavrões começaram a ornamentar o discurso dos rapazes. Talvez como estratégia para distanciar os ouvidos intrusos. Cleonice largou as teclas do computador e olhou para o filho que entretanto se sentou.

   - Então, surfaste muito? - Perguntou-lhe.

   - Não.– Respondeu-lhe o filho pouco animado. Os seus homens eram sempre implacáveis nos juízos e nas palavras, o que fez com que Cleonice insistisse.

   - Nem um pouco?

   - O mar estava flat. Pus-me em cima da prancha, mais nada. Vamos embora.

   Cleonice desligou o computador e viraram costas à esplanada em direcção ao estacionamento de terra batida. 


                                                CAPÍTULO TRINTA

 

    Querido diário (esta saudação lembra-me o comovente diário de Anne Frank),

   Apetece-me reviver a aula da comemoração da centésima lição:

  A euforia começa a instalar-se.

   A princípio, os alunos organizadores da festa hesitam em deixar entrar os outros na sala de aula. Que ainda aguardam por comida. Entrega de pizzas. Mas eu aproximo-me da entrada da sala, advirto para não começarem a comer sem autorização da organização, e mando entrar.

  As cadeiras estão arredadas de encontro às paredes da sala, bem como as mesas. Na minha secretária, a formar um balcão fechado, estão dois alunos a cumprir a função de DJ’s. Ouve-se música tecno, pop rock e variantes de hip hop.

  A pouco e pouco, as vozes aumentam de volume, sobrepondo-se ao som sincopado do aparelho muito usado. O diálogo faz-se com alguma dificuldade. Quando a música pontualmente pára, sinto algum alívio. Apesar de gostar muito de dançar, não me sinto à vontade para tal. As raparigas juntam-se aos pares e vão ensaiando novos passos. Os rapazes estão, na sua maioria, sentados. O Mauro, incomodado com a apatia dos seus colegas, começa a dançar uma mistura de breakdance com capoeira. Ele próprio não sabe classificar o tipo daquele dançar.

  Mantenho-me sentada junto a uma janela, e os alunos vão-me perguntando se quero comer, se quero dançar…

  Um deles repara no ato da minha escrita e vem vasculhar. A pretexto de reparar na minha caligrafia, pergunta-me o que escrevo.

  - Tomo notas. Gosto de escrever. E tu?

  - Eu também. Mas utilizo o telemóvel. – Respondeu o Mauro.

  - Eu normalmente trago algumas folhas brancas para escrever quando me apetece. – Esclareço. – Mas fica descansado que estes registos que estou a fazer não contam para nota. – Sorrimos.

  O Mauro é um aluno inteligente, divertido, mas por vezes melancólico. O seu espírito crítico nem sempre o deixa à vontade com as regras da escola e com a rotina. Mas é um aluno bem integrado e educado. E volta para a companhia dos outros.

  Agora a “pista” enche-se de pares femininos. Sentir-se-ão mais à vontade assim comigo distraída? A música é propícia.

  Os noventa minutos da aula aproximam-se do fim. Um aluno pergunta-me se está na altura de arrumar e eu respondo que sim.

  No final a festa parece ficar mais animada.

  - Só mais uma, stôra.

  - Só mais uma.

  Entretanto, alguns alunos aproximam-se e fazem-me recordar a centésima lição do ano passado, quando eu tinha a perna engessada. Relembram a competição de dança em cima das cadeiras entre rapazes e raparigas.

  Alguns alunos preparam-se para sair.

  - A sala tem que ficar como estava. Saímos todos juntos, pode ser?

  Concordam.


                                         CAPÍTULO TRINTA E UM

 
   Num daqueles sábados com rotina de fim-de-semana, Cleonice sentiu um forte impulso de redigir uma carta ao mano mais novo que morrera no Brasil, vítima de gang de rua. A dor continuava comodamente instalada no seu peito por aquele irmão que lhe afirmou, um dia, não ter medo da morte. Cleonice não compreendia bem o fenómeno da morte como a ausência física permanente. A decomposição da carne, depois dos órgãos pararem de funcionar, era um processo cruel para Cleonice.

   - Quer dizer então que somos decompositores da matéria?! – Parodiou Cleonice ao marido, num certo tom velado de irritação, satirizando a impotência da justiça de repor a ordem perante a hegemonia da morte, como se fosse ela própria cúmplice da fatalidade inevitável, alargada a toda a forma de vida.

   De olhar desfocado, alheia ao momento presente, dirigiu-se mecanicamente até ao quarto e foi sentar-se à secretária a redigir-se uma carta ao irmão António, que se tornou quase um ritual de alguns minutos diários, durante os três dias seguintes.

 

                                                                                  Querido A.,

 

   Como te sentes agora?

   Tenho andado como que perdida dentro de mim.

   Continuo a sofrer, apesar do esforço que tenho feito para adotar uma atitude nova perante a vida. Pediste ajuda e fizeste bem.

   Somos uma família portuguesa com carências de afeto também brasileiro, tu compreendes, crescemos com algum desamparo humano e até um quase desenraízamento.

   A nossa estrutura emocional respira junto ao mar.

   O nosso forte é o gosto pela natureza, pelo saber e a nossa sensibilidade para o mundo artístico. Eleva-nos o espírito e essa energia harmoniza-nos.

   Ganhámos algumas insatisfações e essas têm-nos dificultado a relação com este mundo. Às vezes ainda tenho dúvidas em relação ao significado do amor. Estamos sempre a conhecer-lhe novos cambiantes. É bom, mas requer muito investimento. Temos que (re)agir.

   Estou a escrever-te, mas sei que o teu corpo físico já está a misturar-se com a terra. Sinto-me neste preciso momento culpada, enganada, magoada, defraudada, dorida com o destino. Embora a minha compreensão da vida se tenha desenvolvido com a dor da tua ausência, não deixa de não ser espantoso este fenómeno que os budistas explicam como sendo o sofrimento um caminho mais rápido para alcançar o discernimento. 

   Estás a ver-me escrever-te esta carta?

   Já morreste há várias semanas. Onde estás agora? Por onde andaste?

   Existe reencarnação (já reencarnaste?)?

   Amo-te muito, eu e todos. Sentiste-te desprezado, só, na nossa terra distante, com alguma razão. Absortos com a rotina, temos andado a curar mazelas emocionais, sociais, profissionais. Para não falar na nossa cobardia.

   Quantas vezes eu gostaria de te ter visitado?!

   A minha intenção era visitar-te muitas vezes. Sinto-me imperfeita, como sempre fui.

   Quem te fez mal? Espero que estejas num lugar tranquilo, com muita paz. Se tiveres que voltar a ser gente, irás ter com certeza uma vida mais longa.

   Disseste-me na noite de Natal que se morresses, a tua vida já teria valido a pena. São as únicas palavras que me fazem aceitar a tua morte.

   Eras o mais novo. Nem sempre é vantagem, mesmo em relação à esperança de vida.  Foi pena não termos convivido mais. Acredita que choramos muito a tua morte. A tua guitarra vai ser estimada com todo o carinho, como aquele que tinhas por ela.

   Morreste com a idade de Jesus Cristo. Foi uma sincronicidade? O significado não sei qual é. Salvítico? Para quem? Tenho a certeza que estás bem, ao seu lado.

   Sentes que conquistaste finalmente a liberdade?

   Hás-de continuar sempre no nosso coração.

   Apesar dos últimos tempos contrários à tua vontade, mesmo no solo brazuca, tinhas consciência da precariedade da (tua) vida.

   Desculpa a nossa incapacidade, tua e nossa, de não demonstrarmos com veemência o amor que sentimos uns pelos outros. Terá o teu sofrimento sido convertido em bonança e eternidade?

   Conto que estejas sempre bem, mesmo nos momentos de veleidades divinas, existem? e nas distrações do tempo.

   O sofrimento faz desanimar, mas ensina-nos a dar maior valor à vida e a reequacionar prioridades.

   Poderei encontrar endereço para esta carta?

   Chega de Beco de Santacruz. Foi em São Paulo que morreram os avós, agora perdes tu a vida… Chega de Beco de Santacruz.

   Será que tu pressentiste a tua morte?

   Mesmo que assim fosse, eu acho que lutarias pela vida, até onde pudesses.

   Ficas, um pouco, na consciência de todos nós, sobretudo da dos jovens que te assaltaram e tiraram a vida, também eles rejeitados por uma vida decente.

   O nosso medo aproxima-nos do sofrimento. No que me toca, vou tentar aprender a aproveitar cada minuto...

   Quando te vejo novamente? Não importa, porque a distancia não conta.

   Eu também não quero morrer. A dor que sinto agora tem que se acomodar melhor dentro de mim, para eu poder conviver melhor com ela, sem ficar esquecida. É uma questão de tempo, dizem.

   Agora já te amas profundamente?

   Mando-te saudades de todos, mesmo dos mais orgulhosos.

   Vê lá...Não te esqueças de ser feliz. Sê paciente, mesmo com as veleidades das divindades; parece que é necessário...Mas não precisas de me confirmar essas dúvidas; a seu tempo, saberei.

   Até sempre, meu querido irmão. Forever, A.

 

                                                     Da tua mana C. que nunca te esquecerá.


                                                                   

P.S.: Estou a ler o teu livro, a Brida do Paulo Coelho.Com a dedicatória de uma Sónia!!!

 

                                          CAPÍTULO TRINTA E DOIS 


   A morte de António estremeceu os sentimentos da grande família a ele ligada. Rui, que não era de muitos gestos ternos para Cleonice, viu-se compelido a confortá-lo.

   - Trate bem dessa menina. – Pediu, entre lágrimas, a sogra, no dia do funeral de António, após a necessária trasladação de S.Paulo.

   Os cinco irmãos tinham-se abraçado em grupo, num choro, quando o caixão desceu à terra. Os pais de Cleonice e as tias maternas lamentavam-se de braço dado. António tinha, de facto, reunificado a família.

   - A morte de António não foi em vão. – Comentou Rui.

     Cleonice e Rui começaram, entretanto, a fazer passeios noturnos. As noites de Primavera, embora instáveis, estavam agradáveis.

   - Há muitas chuvas de estrelas, não é? – Perguntou, provocador, Rui um dia à hora do recolhimento romântico, à espera de uma balada trauteada a que se habituara.

   – Achas que vamos chegar à velhice?

   - Eu estou a esforçar-me por isso.

   Cleonice e Rui, que estavam a fazer a cama do filho mais novo, aproximaram-se um do outro e cantarolaram a música do Vitinho.

   As fortes intempéries não tinham abalado o sentimento de alegria de viver.

 

                                            CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

 

   A amizade dos outros por mim está tão presente nos momentos difíceis. Tenho sido muito distraída. Agora reconheço a profundidade dos meus sentimentos, em parte despertados pela dor, que devo aprender a enfrentar e partilhar. Vêm-me à cabeça uns versos da letra de uma música de João Pedro Pais que constatam que todos somos, ou já fomos, “uns filhos da mãe”.

  Um dos filhos da mãe, o responsável pela morte do meu irmão, aquele que disparou o gatilho, foi encontrado estripado pelos colegas do mesmo gang, em pleno dia nos subúrbios paulistas, um rapaz de pouco menos de vinte anos. Estes filhos da mãe não são, de facto, filhos de mãe, nem de mãe alguma. É um caso de justiça nunca consumada. Assiste-se à injustiça  comodamente instalada ao lado dos desprotegidos.

   Resta-me dizer-lhes, à vítima do meu irmão e ao criminoso vitimizado: - Descansem em paz, brothers.

   Da minha parte, gostaria de deixar de ser uma filha da mãe, pois às vezes também  sou, ou fui, não sendo, por isso, menos filha que os outros ou menos mãe que as outras.

  Às vezes penso em mim como uma personagem perdida na sua história. Serei um dia unicamente a sombra de mim mesma?

  Não sei porque não me zango com o mundo, se tudo continua a existir com a mesma indiferença pela vida de cada ser.

 Mas vou continuar a correr atrás de sonhos, talvez menos antigos, que estão a despertar com as mudanças do tempo, sobretudo o tempo individual, à espera que haja lugar para o eu  no amor de todos os mortais.


   NOTA:

.
 Ontem, quando reparei em mim, vi um rosto um pouco jovem. Não quero pensar na idade, a minha casa está mais vazia, mas o meu coração maior.

 

                                CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

 

   Rui quis ser famoso. Decidiu deixar a família, que naquela casa se reduzia à mulher e ao filho mais novo, já com vinte e um anos, e foi viver para um espaço alugado a que passou a chamar o seu atelier. Saiu sem fazer pré-aviso. Sem mais nem menos. Queria liberdade aos sessenta anos.

   Cleonice sofreu muito com aquela separação. Fez uma espécie de luto pelo marido como se ele tivesse morrido, para poder aceitar como definitivo aquele laço que antes considerava tão profundo. A pouco e pouco foi percebendo que os seus antigos projetos continuavam por concretizar: as viagens, a escrita, o desenho, a investigação.

   Ela já estava aposentada, mas ainda se sentia com entusiasmo para o trabalho, mesmo depois das surpresas desagradáveis que a vida lhe tinha reservado, como o ainda problemático processo de avaliação dos professores. Continuava a encorajar os seus colegas. Por isso, passou a utilizar muito mais o telemóvel, que antes evitava por causa dos consumismos. E a fazer conversas ocasionais. Nos últimos anos tinha mudado um pouco a sua atitude perante a vida. Nunca conseguiu ser uma pessoa popular. A verdade é que nunca se esforçara, sequer. Ia escrevendo para as suas críticas de natureza pedagógica e social para periódicos e publicações, também sobre educação. Fez uma ou outra investigação sobre a Literatura no ensino da Biologia e continuava decidida a fazer trabalho humanitário. Considerava que tinha sido uma profissional razoável do ensino – não muito organizada e metódica, é certo, mas cumpridora e sempre que possível justa no processo de avaliação. Sentia que os jovens continuavam a ser o seu alento, agora esporádico. Por isso, mesmo fora de atividade, ainda continuava a privilegiar os discentes nas suas opiniões críticas sobre o ensino, quer em artigos seus, quer nas conversas com colegas e em encontros de professores da sua especialidade ou de aposentados. No ensino, perpetuavam-se as reformas, mas as mudanças faziam-se ao nível da redução do número de alunos por turma, favorecida pelo envelhecimento forçado da população, das horas atribuídas a oficinas extracurriculares, do gradual apetrechamento das escolas com equipamento necessário. Lentamente, Cleonice comentava, já com satisfação, a realidade do índice baixo de analfabetismo em Portugal, das reduzidas desistências no décimo ano e do aumento do sucesso escolar, no geral. A cultura geral dos jovens portugueses estava a aumentar. Liam e viajavam mais. Mas a grande mudança fazia em cada um, na sua forma de encarar o mundo, e na preocupação generalizada com o auto-conhecimento, que era o grande rival do consumismo doentio.

   Cleonice sentia-se orgulhosa por ser uma idosa com capacidade de encarar o futuro com algum otimismo.

   - Quando é que eu vou ser avó? – Insistia com o filho mais velho que já estava casado. Ele sorria e encolhia os ombros. A esposa estava preocupada com a sua futura carreira de bióloga. Pensava já no doutoramento em Inglaterra.

   - Vocês é que sabem, mas a clonagem não procria. – Gracejou a mãe, conhecendo as matérias de estudo daqueles.

   - O que a mãe devia pensar era em escolher um lar para dormir com gente perto de si. Aquele dos professores dizem que não é mau… - Experimentou-a o filho com aquele assunto sempre adiado, embora a casa de repouso onde estava o seu pai fosse a melhor alternativa.

   - Sim, filho. Um dia vou. Talvez vá mesmo para aquele onde está o teu pai. Achas que nos podemos reconciliar lá? – E deu uma gargalhada tão ruidosa que ela própria se envergonhou daquele repentino nervosismo. Será que ainda gostava de Rui? Afinal de contas, depois dele, nenhum homem fora tão importante para si. Conseguira durante alguns anos um bom companheiro, um homem com quem sempre tinha sonhado, mas o seu coração não se conseguiu entregar de modo como ele merecia. Todavia, foi um tempo muito reparador das suas faltas e das suas falhas. O destino fora seu amigo. Rui, entretanto distinto escultor, que nunca se voltara a casar, e com quem Cleonice decidira, por questões emocionais, cortar temporariamente relações, já a tinha convidado algumas vezes para se juntar a ele na casa de repouso onde permanecia. Encomendara argumentos convincentes pelo filho mais novo, há espera que este aliciasse a mãe.

   - Tenho andado a pensar nisso, filho. Sabes que os meus passeios pelo jardim permitem-me fazer os amigos que desejava ter feito há mais tempo. Conheci lá um senhor que me lembra o distinto Agostinho da Silva. Uma pessoa excepcional que me faz sentir vontade de ser solidária com toda aquela gente tão ou mais idosa do que eu. Parece que finalmente estou em paz com o ser humano. – Estas e outras razões expô-las pacientemente ao filho mensageiro, para de seguida declinar mais uma vez o convite tão tentador daquele que foi o homem da sua vida.

   Passaram-se cerca de dois anos. Cleonice deu consigo vestida de escuro a acompanhar o carro funerário do seu ex-marido. Definitivamente, não voltaria a pensar em casas de repouso. Como gostara daquele homem generoso e fraterno! Nem sempre fiel companheiro, foi, apesar de tudo, com ele que aprendeu a repensar a sua personalidade, por boas ou menos boas razões. Nunca se esqueceu disso. De facto, o verdadeiro luto fê-lo nos últimos meses da sua vida quando a assaltou o desejo de rever fisicamente Rui, e não podia. Teve momentaneamente um desejo inconfessável de ir ao seu encontro.

   Os filhos continuavam a insistir com Cleonice para que abdicasse daquela independência tardia, obstinada, tão arriscada no Outono da sua vida. Mas Cleonice passava o seu dia a conviver como nunca naquele jardim que continuava a amontoar a velhice desamparada, contudo reunida em pequenos grupos mais ou menos mistos que ora jogavam, caminhavam, observavam, ou simplesmente recordavam em voz alta ou mentalmente os momentos já vividos do quotidiano das suas existências que, a pouco e pouco, pareciam pressentimentos de antecipadas despedidas dos locais, das pessoas, dos objetos e das emoções terrenas, mas acarinhadas por um sentimento de regresso à casa celestial.

 
 
                                         CAPÍTULO TRINTA E CINCO
 

   Cleonice foi encontrada morta na sua casa, na rua do Cruzeiro. Desde que chegara do Brasil, ainda garota, fora viver para aquela zona de Lisboa e nunca mais dali saiu, só quando casou, mas voltou quando se divorciou. Todos se mudaram ou morreram; só ela continuava por ali. Apanhava o autocarro todos os dias para o Alto de Santo Amaro. A casa, segundo dizia, já pouco lhe interessava. O seu mundo era o exterior. Finalmente reconhecia o valor do ser humano na sua plenitude. Morrera reconciliada com a humanidade.

   Passou quatro dias deitada na cama, como que a dormir, porque foi a dormir que faleceu.

   Como não atendia telefone nem aparecia no Alto de Santo Amaro, os amigos resolveram pedir à porteira para abrir a porta do segundo andar onde morava. Lá estava ela, de lado, como sempre costumava dormir, à espera das exéquias fúnebres. Embora chocados, os amigos tiveram que participar à família o seu falecimento e às autoridades locais, de acordo com aquilo que alguns estavam informados sobre estes casos.

   O homem, que a Cleonice fazia lembrar o pensador Agostinho da Silva, deixou-se vaguear pesaroso pelo quarto, enquanto as senhoras, queixando-se do cheiro intenso do corpo, procediam como correios inevitáveis da dor ao telemóvel. Os velhos ajeitam-se... Augusto fixou o olhar em vários livros desarrumados em cima da mesa-de-cabeceira, e reparou especialmente em dois: na Vida Conversável, uma entrevista com Agostinho da Silva, e na Brida de Paulo Coelho. Havia mesmo livros espelhados pelo chão, que pareciam dispostos aparentemente com alguma criatividade geométrica, como A Troca de David Lodge e as Prosas Bárbaras de Eça de Queirós, para não falar de vários manuais de Ciências Naturais. Lembrou-se então das longas conversas que tivera com Cleonice sobre os seus autores preferidos e as leituras de ocasião. Clara Pinto Correia fora várias vezes assunto de diálogo nas longas tardes de Verão. Os livros de Paulo Coelho eram, no entanto, mais do que isso…Para além da ciência, eles partilhavam o interesse pelo misticismo, pelo espiritualismo, mesmo pelo esoterismo, pela teosofia. O último discutido entre eles tinha sido A Nossa Ressurreição na Morte de Leonardo Boff. Aquela ideia do espelho da alma se encontrar, por exemplo, no brilho do olhar, era resposta a muitas das suas dúvidas. Espantosas tinham sido as suas conversas!

   - Porque é que uma pessoa fisicamente bonita, pode não ser atraente como pessoa, embora esteticamente com interesse? Porque a nossa alma é que nos embeleza! – Desafiava à conversa Cleonice os seus ouvintes do costume, de entre eles o sr. Augusto, um homem de oitenta anos, magro, viúvo há mais de dez anos e reformado do comércio.  

   A constante curiosidade por aquela pessoa que parecia dormir profundamente, fez Augusto, discretamente, abrir as gavetas da mesa-de-cabeceira. Encontrou muitos envelopes escritos, misturados com fotografias. Revistas de moda e vários números do JL. Na terceira e última encontrou um volume de folhas com textos impressos, cujo marcador era um envelope branco.

   - Ó Sr. Augusto, com que então a bisbilhotar antes das autoridades chegarem, ah?! – Reparou, em tom de advertência, a porteira.

   - Ai, peço desculpa, Dona Clara. Estava completamente hipnotizado por este quarto. Não sei o que me deu. – Justificou-se, atrapalhado, o Sr. Augusto. Apenas teve tempo de olhar a primeira folha daquele conjunto que tinha em letras maiores o título já rasurado, mas que se percebia ser uma espécie da narrativa batida a computador, quem sabe se confessional. Augusto, então de costas, retirou o envelope branco de entre as folhas e, à socapa, enfiou-o apressadamente dentro do bolso do seu casaco.

   - Ainda não conhecia a casa, Sr. Augusto? – Perguntou metediça a porteira.

   - Como é do seu conhecimento, a Senhora Dona Cleonice passava muito do seu tempo fora de casa. A nossa convivência era à luz do dia, aos olhos de muitos amigos, com quem compartilhávamos a nossa amizade.

   - Era, sim senhora, uma boa senhora. – Comentou, rendida.

   Augusto pensou que se Cleonice estivesse a ouvir aquela conversa havia de gostar de saber que as pessoas, mesmo as mais “cuscas”, reconheciam o seu esforço para a lembrar como uma pessoa socialmente irrepreensível, não obstante a sua antiga aversão aos valores conservadores da mentalidade à antiga portuguesa.

   Augusto saiu logo assim que se sentiu autorizado para isso e foi de imediato para o jardim, ter com os amigos, para poder desfrutar sentidamente das últimas palavras, embora escritas, da sua amiga.


 
                                               CAPÍTULO TRINTA E SEIS

 

   O envelope fazia prever confidências no seu interior. Sob as árvores mais copadas do jardim, Augusto começou a ler, em voz alta para os presentes que o cercavam, uma missiva que Cleonice afirmava ser a sua despedida oficial, acessível a quem a encontrasse após a sua morte física:

 

                                                                                          Queridos amigos,

 

   Se estão a ler estas palavras, é sinal que podem imaginar-me a dizer-vos mais uma vez que vos estimo muito, embora a partir de agora só pela voz do silêncio.

   Deixo-vos fisicamente a todos com muita saudade, a vocês, aos meus filhos, à futura netinha (se as ecografias não se enganaram), aos momentos bons da minha vida, às palavras, aos bons livros, às conversas no jardim, às sombras das árvores, às bengalas estóicas dos velhos, até à respiração cansada dos cães peludos meus companheiros de rua. Não sei se voltarei a ser humana, dificilmente serei a Cleonice, mas se isso acontecer gostava de me reencontrar com vocês todos.

   Espero que, no momento desta despedida epistolar, consiga sentir bem ou melhor ainda o vosso amor por mim, e todo o fascínio do mundo dos homens, a ondulação do azul do mar, a brisa misturada com a claridade do sol, todos os lugares encantadores da nossa terra, e outros mundos além deste que, no momento desta escrita, ainda me estão vedados.

   Ao Sr. Augusto deixo os meus livros que tenho em minha casa. Aos meus filhos já ofereci os que achei que lhes interessariam. Os que tenho não são muitos, mas sei que o Sr. Augusto lhes tem grande apreço.

  As mobílias, as roupas, os objetos e o dinheiro que ainda disponho, serão para distribuir por todos os idosos desse jardim.

  Segundo o meu procurador, a quantia que deixo permitirá concretizar um desejo que tenho há algum tempo: fundar uma Associação de Idosos do Jardim do Alto de Santo Amaro, para albergar e dar de comer ao corpo, à mente e ao espírito de todos os que a ela se dirigirem para procurar ajuda. A minha proposta é que seja eleito o Sr. Augusto para administrador, se o mesmo aceitar, supervisionando os aposentos, um centro de recursos/biblioteca e salas polivalentes para palestras, tertúlias, saraus… enfim, o muito que conversei com o meu distinto amigo sobre o assunto (um sonho partilhado, aliás!).

   A relação do ser humano com o dinheiro nem sempre é previsível e construtiva. Falo por mim, apesar de nem sempre ter podido dispor, durante a minha vida, de muito. Não contava, nem um pouco, com a parte da herança que o escultor Rui, meu ex-marido, me deixou há um ano atrás. Eu sei que o fez com muito amor; aquele que é possível dedicar a um ser humano inacabado como sou e que, com esta idade, já não terá tempo suficiente de se terminar, ou pelo menos de se aperfeiçoar muito mais. O gozo da paz do paraíso eterno provavelmente ainda não deverá ser-me concedido, ou o que isso signifique. Por isso, só capaz de ficar a zelar por vocês cá na terra (estou a brincar!).

   As folhas escritas que ocultavam o envelope que continha este papel, ofereço-as aos meus filhos que sempre gostaram de ler os meus textos. Não serão, com certeza, para publicar, mas ficam a aguardar disponibilidade da família e de alguns amigos para serem lidas. Enfim, representam algum tempo da minha vida e uma das minhas opções que considerei importantes em várias fases da minha juventude e adultez. Gostava, em consciência, de ter sido mais do que aquela profissional, aquela esposa e aquela mãe que fui, com defeitos e virtudes (mais defeitos?). Se tivesse mais amor dentro de mim tê-lo-ia dado. Por outro lado, gostava de ter sido uma artista talentosa, mas senti alguma falta de oportunidades, falta de incentivos, falta de convicção, falta de fé.

   A solidão, afinal, ajuda-nos a dar mais valor à companhia dos nossos semelhantes.

  O significado de felicidade consigo concentrá-lo nos beijos e nos abraços que consegui dar e receber em setenta e nove anos que preencheram o tempo de existência que me foi concedido. Passarei deste número? Se ainda tiver alento para isso, farei uma modesta compilação das histórias de amor que terminam com “e foram felizes para sempre”. Conto ser feliz mesmo depois de largar esta estimada carcaça que já foi uma fonte interativa de grande prazer, embora se tenha acomodado preguiçosamente muitas vezes, nunca o desejável, ao lado de alguns de vocês nos bancos ripados do jardim.

   É meu desejo ser agora, para vocês, a luz da noite e a sombra do dia. Estarei entre os pássaros a cantar e à beira dos rios a coaxar com as rãs. Serei maior do que a mulher que sou hoje (para vocês ontem…)!

  Então, já não me assustarei, nem serei surpreendida pelas façanhas dos homens, porque conto já saber o segredo da essência humana. Enfim, terei saudades até da minha carripana aticuladas de velhos ossos, “decompositora” da outrora sensualidade (sorriso tonto!).

   Fico à vossa espera, sem pressas. Não venham tristes. Depois a nossa amizade será, de facto, selada para sempre.

   Se puderem, leiam bons livros e amem-se sem censuras.

 

                                                                    Da vossa Cleonice que vos ama,

 

                                                                                        C. 
 

 

P.S.:

 

Lembrem os meus filhos que não precisam de me sepultar junto

aos meus pais, no Brasil. Esta terra é, para mim, o prolongamento

da outra. Amo-a de igual modo.

É meu desejo ficar numa campa rasa, na Ajuda, onde esteve sepultado

António há muitos anos. Ele não se queixou. Também gostarei de ser

semeada juntos aos simples, a ouvir o chilrear dos pardalitos da

nossa Lisboa beijada pelo Tejo. E amada pelos zéfiros brasilenhos...

 

                                                      EPÍLOGO

 

   Seis meses depois, estava criada a A.I.J.A.S.A. – Associação dos Idosos do Jardim do Alto de Santo Amaro.

   O Sr. Augusto levou aquele cargo tão a sério que, com os seus conhecimentos e contactos, estava a abrir as portas da Associação, nos edifícios antigos junto ao próprio jardim, seis meses depois da sua legalização. A colaboração foi imensa, de particulares e de entidades, nomeadamente estatais. A Aijasa, como passou a ser conhecida, alojava desprotegidos de Santo Amaro e das zonas de Alcântara, Belém e Estrela.

   Os dois rapazes de Cleonice, antigos escuteiros do agrupamento da área, ajudaram também o tio Augusto a alargar o projeto, ao qual as igrejas de diferentes confissões não ficaram indiferentes.

   Por sugestão do filho mais velho de Cleonice, foi acrescentado um núcleo alargado de apoio a toxicodependentes sobretudo da zona de Alcântara, com internamento gratuito no centro de recuperação, que foi batizado com o nome de António, seu tio materno.

   Ex-alunos de Cleonice, um deles a própria esposa de Vasco, o filho mais velho, organizaram uma tertúlia de inauguração do centro, com a presença de escritores como Nuno Júdice, Mia Couto, José Saramago, José Luís Peixoto, Urbano Tavares Rodrigues, Paulo Coelho, Mário de Carvalho, Clara Pinto Correia, António Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe, Chico Buarque, Inês Pedrosa, Teolinda Gersão e especialistas da área da assistência social como o médico João Golão. A ideia era apresentar a literatura como uma potencial terapia no combate à solidão, à pobreza e à dependência de drogas, as ilegais e as legais em Portugal.

   Os muitos velhotes, amigos de jardim de Cleonice, ficaram radiantes com o estatuto das suas funções administrativas e de relações públicas na sua nova casa. Os novos funcionários, entre os sessenta e os noventa e tal anos, davam-se lindamente nos seus postos de trabalho, durante o dia. As senhoras à noite, quando se sentavam para ver as telenovelas da noite, sobretudo as preferidas baseadas nas obras de Jorge Amado, Erico Veríssimo e Lygia Fagundes Telles, disputavam as melhores cadeiras e os lugares melhor colocados na sala.

   Augusto, que em todos os serões as surpreendia naquele quebra-cabeças de interlúdio de espectadoras, decidiu intervir:

   - Amanhã ou depois, eu próprio vou comprar mais duas televisões, para duas salas diferentes. Tão solidárias e tão rabugentas! Nem parece vosso, minhas amigas!... – Deliberou, contrafeito.

   Passou-se uma semana, e lá estavam mais duas salas apetrechadas com televisões com ecrãs de alta definição. Modelos de topo.

   - Minhas senhoras, espero ter encontrado finalmente a solução para as vossas disputas. – O Sr. Augusto explicou de seguida às idosas presentes a próxima ampliação das instalações, ajeitando o seu bigode ralo, de satisfação.

   Vários minutos falou, mas ninguém comentou, nem se mexeu. Foi então que deu conta dos ruídos de fundo do cenário e da voz dos atores na telenovela brasileira em reposição, Gabriela, Cravo e Canela. Augusto ainda pensou juntar ali uma cadeira e sentar-se. Franziu o sobrolho, amuado, mas acabou por entender que o amor pela arte é coisa séria. Donde nasceria tal incrível capacidade inventiva humana? Haverá mesmo uma musa oculta para cada alma? Ou é verdade a teoria dos 99% de transpiração?
   Mas a sua arte de momento era a sua determinação naquela casa de repor o entendimento no lugar já cativo do amor fraterno e fisicamente tão presente naquela casa. E foi dormir, de olhar sorridente saciado por mais um dia em comunhão com tudo à sua volta.  
   E pensou: - Será amanhã outro dia?! Quem sabe se de igual beleza...

     

 

                                                            FIM.