quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Diário K a bordo planetário, no não-tempo. ass.: o seu piloto


                         O MITO DA MINHA VIDA: A SEREIA MARÍLIA

 

                                                          Antes que o sonho (ou o terror) tecesse

                                                          Mitologias e cosmogonias,

                                                          Antes que o tempo se cunhasse em dias,

                                                          O mar, o sempre mar, já estava e era.

                                                                                                                Jorge Luís Borges

 

   Há muitos, muitos anos-luz daqui, num tempo ainda contado em dias e eras, habitavam as profundas águas dos oceanos grandiosos seres marinhos, quase lendários na pequena memória do habitante mais colonizador da superfície terrestre, o homem.

   A Terra vivia triste, poluída, escurecida. Muitas espécies voadoras e terráqueas tinham desaparecido. A natureza em geral agonizava e respirava sofregamente. Cada vez mais ficavam alagados os diferentes continentes por inundações inesperadas, num ritmo de degelo acelerado. Aparentemente, os seres aquáticos pareciam os mais poupados ao infortúnio quase bíblico da deliberação divina.

   O coração do planeta sincopava a cada instante. Estava exausto! Os homens lutavam pela sobrevivência, apavorados! Uns oravam compulsivamente; outros acumulavam bens em suas casas; a maioria fugia para os lugares mais altos que conheciam ou simplesmente seguiam a deslocação do grande tráfego. Aumentavam a desordem e o pânico.

   Como cosmonauta atento, observava em cada viagem galática diária que fazia, o pequeno planeta cada vez menos azul, envelhecendo e soçobrando. A sua desintegração no espaço cósmico parecia-me inevitável. As águas ficavam cada vez mais conspurcadas de cadáveres inchados, destroços congestionados, grandes recortes avermelhados no céu das labaredas, fumos e ácidos diversos. Perante a angústia deste trágico definhamento da Terra, ainda pude sentir um estranho deslumbramento ao avistar a imensa aura de luz azulada que vi abraçada à cintura do moribundo planeta. Nesse instante, um frémito de melodia silenciosa percorria o espaço infinito, como uma terna voz feminina a anunciar a vida a despontar por entre a destruição interminável.

   Decidi arriscar e aproximar-me um pouco mais. Activei o painel de pilotagem da cápsula aérea e foquei a câmara principal em direcção ao centro do planeta Terra. Era o apocalipse! Impotente perante tal espectáculo, limitei-me a aguardar e a observar qualquer oportunidade de auxílio possível. Entretanto, junto à cabine de bordo, registei uma variedade de sons de uma mesma voz não reconhecida pelo audímetro mais sensível da nave. Surpreendido, dirigi-me ao grande ecrã da câmara de comando. Fiquei maravilhado! Um ser assexuado, meio humano, meio peixe, de rosto delicado, lábios discretamente rubros, cantava incansavelmente para todos os seres da água circundante como que serenando o sofrimento em que se encontravam. Em tal cenário dantesco, era um contraste aquele ser encantado, que mais tarde soube que se tratava de uma sereia, também ela a asfixiar lentamente, apesar da sua grande resistência. A minha memória melquisedec avivou-me parecenças da minha desaparecida filha com esta surpreendente criatura. Dei comigo a enviar-lhe poderes mentais para um possível teletransporte. Um tipo de ajuda que já tinha tentado noutras situações de resgate, sem sucesso. Tão forte era a corrente do meu pensamento, quase incontrolável, que segundos depois tombei no chão da nave, sem sentidos. Só voltei a mim quando tinha à minha frente, apreensiva, a elegante e fascinante sereia que de imediato me sorriu ao notar a minha expressão desajeitada e tímida.

   - Quem és tu? – tartamudeei.

   A sereia chamava-se Marília e o seu olhar circulava em redor daquele cubículo. Mal conseguia fixar o meu rosto, de tão entretida que estava a reparar nos botões metalizados e nos circuitos electrónicos à sua frente. Contudo, não parecia assustada.

   - O senhor tem uma voz muito calma, como tinha o meu pai, o rei Neptuno. – confessou-me a sereia, quase ambientada. Sorri-lhe.

   - Pode ficar e colaborar comigo, se quiser – propus-lhe. – Pertenço à ordem melquisedec. Neste momento, integro uma equipa de ronda e resgate espacial. Passo muito tempo em viagem. Antes, a minha parceira era a minha filha mais nova. Quando ela desapareceu no não-tempo, decidi ficar só.

    Marília estava atordoada com os últimos acontecimentos. Parecia inteligente, mas involuntariamente captei-lhe uma congestionada corrente mental num processo nervoso de descodificação das recentes informações sobre as últimas experiências vividas: o teletransporte, o desaparecimento do seu lar e da sua família, a minha existência, a sua inesperada sobrevivência...

   O olhar feminino passou pelo grande ecrã e estacou. De semblante carregado, Marília fez saltar a atenção para o fundo negro do exterior visível na moldura do ecrã e o seu rosto iluminado, emudeceu. Lacónica, respondeu-me decidida como a um dedicado desconhecido:

   - Se estiver determinado a esperar por mim correndo sérios riscos de vida, aceitarei com agrado o convite para integrar a sua equipa de ajuda planetária. Mas agora tenho que terminar uma missão urgente! – E sem esperar resposta, a sereia, agora consciente das suas latentes capacidades, teletransportou-se em direcção ao mar de chamas que outrora fora a sua casa.

   Numa pequena área de águas revoltosas, agonizava um barco de grande porte com poucos humanos ainda com vida. Era um petroleiro que dolorosamente abdicara da ilusão de levar ao continente americano as grandes fontes de riqueza...

   Embora contrafeita, Marília aproximou-se dos dois homens sobreviventes do navio. Estes ficaram estarrecidos com a presença de uma sereia tão corajosa e solidária. Julgaram-se alucinados.

   - Querem ajuda? – perguntou-lhes a jovem, de sobrolho franzido.

   Os tripulantes pareceram compreender a expressão reprovadora da sereia ao reparar nos portentosos depósitos daquele combustível que tão nocivo fora para o seu planeta.

   - Se quiser...se puder... – responderam em uníssono os humanos, comprometidos.

   - Venham comigo. Basta fecharem os olhos e pensarem que estão a voar... – e juntaram os três as mãos. Instantaneamente foram teleportados para a nave.

   Mal ganharam as suas formas físicas, só tiveram tempo de ouvir a minha voz melquisedec anunciar convictamente:

   - Foi por pouco! A explosão foi tão violenta que o clarão iluminou o espaço sideral a 10.000 anos-luz.

   Os três estavam apáticos, com tal cenário dantesco. De olhar arregalado, contemplavam a majestade natural do poder final da natureza terrestre a ser consumido pelas chamas.

   - A Terra está a entregar-se ao Universo pelo fogo. Resiste até ao último sopro de vida que pode demorar muitos anos-luz. A mãe-terra está a sacrificar a vida dos seus três elementos naturais ao poder renovador do elemento mais vigoroso: o fogo.

   Calei-me, surpreendido, ao dar conta do gracioso movimento das barbatanas inferiores de Marília andando ao meu encontro. Esta alçou os seus longos braços côr de pérola e delicadamente abraçou-me emocionada, agradecendo a minha amizade e hospitalidade.

   - Obrigado por ter esperado por nós! – balbuciou-me, comovida.  

                       Diário K a bordo planetário, no não-tempo, do piloto da ordem melquisedec


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