quarta-feira, 30 de abril de 2014

25 de abril, sempre!


O 25 DE ABRIL NAS ESCOLAS

 

A data do dia 25 de abril, acontecida há 40 anos, e preparada em função do plano militar para a democracia portuguesa, resultou genial. Não apenas pelas suas vitais mudanças e consequente repercussão internacional, em países da Europa Central, África, Ásia…, mas até plasticamente falando porque se aproximou dos motivos das comemorações ligadas ao Dia da Árvore, da Primavera, da Poesia, como o símbolo do vermelho do cravo e da papoila, o branco da gaivota e da pomba, o amarelo da vila morena do alentejano, ou ainda a bandeira vermelha e verde da luta e dos campos da esperança. Um povo dos quatros cantos do mundo que se emancipou, cujo símbolo central é a esfera armilar do minicosmos da sua astronomia e navegação.

Ao longo de quatro décadas, a ideia da revolução ideológica e política algo fraquejou, mas não morreu e continua a dar vigor à palavra, à música, à cultura, à emergência de uma nova consciência social. O sangue do cravo é vida e dá paz às balas em flor nos canos das espingardas no Largo do Carmo, que se recusam a cansaços da sua temporalidade.

O próprio calendário escolar se regozija, anualmente, com o final do mês de abril por ser um bom momento (o início do último período letivo) para a animação da Semana da Escola ou dos Dias do Agrupamento. Organizadas habitualmente no âmbito dos diferentes departamentos disciplinares, este ano as atividades versaram o lema dos 40 anos de abril. Recordou-se o que foi a censura salazarista, os livros censurados, os 80% da atual população portuguesa que defende o 25 de abril, a educação para todos, o direito ao voto, o progresso e as condições de vida, a descolonização e processo de independência…isto para que ninguém possa duvidar da sua importância histórica e continuada da sua existência, mesmo em difícil conjuntura económica, política e social como a que vivemos.

Sou filha da democracia, não do ano de 74, mas da geração de 60. Com dez anos, recebi todo um legado cívico, ético, político-partidário e uma multiculturalidade sem igual. Como qualquer criança curiosa é capaz de receber. Tive o privilégio de nascer e viver numa época de excelência da nossa vivência nacional e de ter morado numa zona de operariado com séria atitude bairrista de árduo trabalho, polo de indústria e comércio como o de Alcântara, onde cedo contactei com a coragem antifascista e os sacrifícios das gentes do povo.

Os melhores anos da minha vida passei-os a ouvir falar das Grandes Causas, a conhecer outros livros que chegavam, a conhecer professores vanguardistas, como os da Faculdade de Letras: Mário Dionísio, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Prado Coelho…. a participar em tertúlias literárias, a colaborar em círculos juvenis de cultura, a organizar eventos culturais, produzir folhetos e coletâneas literárias…

Hoje, apesar do visível desencanto de algumas conquistas adiadas da revolução, como os cinco mil alunos com aulas ainda em contentores, sabemos que a vontade coletiva continua a sair à rua, mais instruída e atenta, sabendo que a revolução humana se faz no quotidiano de cada um e pode, embora não deva, ganhar contornos imparáveis como a do grupo anonymous...

A rua será sempre a genuína escola da Revolução. E o pensamento a morada da sabedoria. Há que aprender a pensar para saber agir, todos como um todo.

Sabendo que não há maior prisão antifascista do que a ignorância, o egoísmo e o medo.
 
                                                                          Lisboa, 25 de abril de 2014
                                                                              
 Rosa Maria Duarte

 

 

[Setúbal na Rede] - O 25 de abril nas escolas

[Setúbal na Rede] - O 25 de abril nas escolas

sábado, 26 de abril de 2014

ensaio sobre uma obra de Teolinda Gersão e o tema da liberdade


PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO de Teolinda Gersão

 

Inesquecível livro oferecido pela minha melhor amiga da altura, a Mafalda Ferreira, que não a vejo há muito. Pareceu-lhe que eu iria gostar. Os verdadeiros amigos são assim, conhecem-nos. Eis uma leitura atenta e académica deste livro sob o ponto de vista de

 

O ABANDONO DO HERÓI ROMANESCO DE SI-MESMO

 / AS DESCONTINUIDADES NO DISCURSO PARODÍSTICO

 / O MONÓLOGO INTERIOR      

                                       

Na abertura do livro, na página reservada às dedicatórias, Teolinda Gersão começa por remeter a expressão que usou na obra «as cidades como fruta podre» para o seu autor, Le Corbusier, bem como um passo da p.131 para Raul Brandão, e de seguida afirma que o resto do texto também não é seu, mas de «quem o reconheça como coisa sua», o que revela um exercício crítico interessante sobre a complexidade do sentido de autoria, conferindo à obra um estatuto não de criação artística, mas de simulacro criativo da realidade. Este momento de crítica autorreflexiva, a par com outros na obra ("não vou poder dizer isto nunca, e muito menos escrevê-lo, porque não sei escrever", p.128), poderá não fazer dela uma obra assumidamente autorreflexiva, mas são reflexos e interpelações ao leitor que contribuem para o seu caráter metaficcional e que denunciam um passo para a ordem pós-modernista. O objetivo crítico ainda deste momento discursivo prende-se com o paradoxo de reflexividade introduzido por Nietzsche e trabalhado por artistas pós-modernistas de que não há originalidade, nem certezas, mas apenas o simulacro revelado textualmente (Carlos Ceia, O que é Afinal o Pós-Modernismo?, Edições XXI, Lisboa, 1998, pp.47/8). Outro exercício ficcional de autorreflexividade é o discurso parodístico que atravessa esta narrativa e que junta a paródia, a sátira, o escárnio e maldizer à narração objetiva dos factos vividos no regime salazarista, pela deformação e censura do “cenário aberto e sem figurantes, oferecido e vazio” (p.60): “As carteiras alinhadas, diante do quadro preto, do cruxifixo e do retrato de O.S.. Rezar todas as manhãs por O.S.. Enquanto todos reencontram a família, à noite ele fica sozinho, trabalhando, velando sem dormir pelo seu povo. Graças a ele as pessoas vivem em segurança, defendidas da discórdia, da infelicidade e da guerra, libertas de todo o mal. Entre a ira de Deus e os ventos da História, ele levanta-se como um anjo para proteger o seu povo[…] Velai por ele, ó Deus, pois ele é a nossa segurança e a nossa força” (p.83).

Este romance faz um retrato da sociedade portuguesa sufocada pela censura salazarista (“à noite os funcionários de O.S. sentavam-se em cadeiras altas, debaixo de lâmpadas acesas, com livros e jornais abertos em cima de mesas ensebadas e um lápis azul em cada mão e começavam a cortar palavras, segundo instruções sempre novas de outros funcionários”, p.82), amordaçada pela repressão e pela clausura, exausta por uma guerra colonial injusta e sem saída, e encena o derrubar da ditadura de O.S., iniciais que ocultam o nome do ditador, simulando a falta de liberdade de expressão vivido na época.

A desmistificação da história portuguesa do Estado Novo, mostrando a hipocrisia dos sonhos políticos de Oliveira Salazar e a falência do desenvolvimento social e cultural, é um dos aspetos pós-modernistas mais marcantes deste romance de Teolinda Gersão. Associada a esta desmistificação da nossa história, encontramos a paródia, teatralizada nos quadros quotidianos familiares, com o recurso à ironia (“O.S. era o seu esposo místico, ele dava razão e sentido à sua vida. À noite era nele que pensava em sua cama, adormecia pensando nele, um homem perfeito e santo, como mandava a Igreja”, p.85). A paródia de um Deus distraído perante o espetáculo do abuso de poder é outro paradigma pós-modernista demonstrável neste livro: “devorar novos mundos escravizar outras gentes, e Deus não estava com atenção e Deus não estava com atenção e Deus não estava com atenção” (p.91), repetição que confere ao discurso descontínuo o tom parodístico oralizante e pregador.

Este romance problematiza o modelo ficcional de estrutura convencional, iniciado na 3ªpessoa por uma escritora-narradora que se encarrega de adensar e desordenar o fio narrativo, em que a indefinição do espaço onde se encontra a personagem central feminina vai levar a um ambiente campestre, de manhã com neblina, onde já havia pouco verde.

Esta personagem observa da janela de “casa, interrogando cada coisa, e nenhum objecto ter mais nenhuma relação consigo” (p.9) a paisagem que nos é descrita e a sua mente questiona as consequências da ausência de memória e a importância da “sua” paisagem como ponto de referência no caso de perder as coordenadas do tempo. A janela e a paisagem ganham novas dimensões, por conotação metafórica, de comunicação para o mundo: “O universo estava lá[…]mas como continuar a existir, se o tempo se quebrara, de repente?”.

À medida que o seu corpo desfalecia, o espaço envolvente foi sofrendo transmutações, de paisagem lunar a um escuro fundo do mar, tendo este começado a bater contra a janela, o que levava a crer num desmoronamento da casa, em dissemelhança com a vida de desapego desta personagem. Este abandono físico e mental temporário, tudo indiciava ser desencadeado voluntariamente pela personagem, mas não passou de um desmaio, sendo que esta vai encontrar de novo a ordem caduca no seu pequeno mundo e a beleza cromática da paisagem (grandeza plástica), o que vai permitir-lhe uma pausa “na sua obscura luta contra o mundo” (p.11). O desejo de confronto da personagem com o mundo/sociedade é por ela considerado desproporcionado devido à força do seu adversário, e nós, leitores, só temos acesso a esse seu pensamento íntimo e inconfessável através do monólogo interior da personagem, atitude passiva de conformismo fingido, “fingindo-se passiva e doce” (p.11), com medo de previsíveis consequências. O mundo da personagem é agora personificado e o monólogo interior dá lugar a um diálogo entre os dois seres, levando o herói romanesco feminino, que nós ainda nem sabemos o nome (porque a descrição da personagem é dispensável no romance experimental), a negar a sua existência humana para se afirmar uma simples folha de árvore – abandono da natureza humana a favor da natureza vegetal, cuja existência não é tão complexa e comprometida. Estas tréguas aparentes, com vantagem para o adversário, e este abandono da sua condição, foi efémero e fê-la pensar na morte como a única decisão livre e fácil para se poder evadir do sofrimento, o que lhe permitiu recuperar um certo poder sobre si mesma. Sentada na sua cadeira de baloiço, a personagem abandona o seu estado de consciência, perde mais uma vez a noção do tempo, sem contudo perder completamente a visão daquele espaço, e dividida entre a lucidez e o sonambulismo, despende tempo no seu quintal, fala com alguém em tom familiar, a natureza transfigura-se ganhando contornos assassinos e o rapaz com quem está, o seu Horácio, é trespassado por uma bala. Não passava de um sonho que a perseguia e que lhe recordava a morte do seu companheiro, sem precisão de tempo nem de espaço, mas, ao que tudo indica, remete para a perseguição da PIDE aos antifascistas durante o regime salazarista. A escrita aparece-nos como uma viagem intra e extratextual, própria do pós-modernismo.

A personagem Horácio aparece naquele momento da obra, mas não é caracterizado, tal como acontece com a protagonista ao longo da obra, nem referido o motivo que o levou à morte; apenas a dor da ausência estimula o discurso da personagem feminina que se dirige àquele que ela sabe que “partiu”, mas que os seus sentidos ainda detetam os movimentos e a sua presença nos espaços que anteriormente ocupava. Não há dor exaltada, nem expressão de revolta, mas uma tristeza silenciosa que leva a protagonista a perder o acesso ao mundo concreto, como a imagem das duas crianças nuas que a protagonista vê desfocadas como numa fotografia, provavelmente seus filhos, numa altura em que estavam numa casa de madeira verde, à beira-mar. A indeterminação do espaço e do tempo desfamiliariza a personagem com o mundo em que vive de forma despersonalizada. A descontinuidade do discurso presente ao longo da obra sugere esta indefinição temporal e espacial nos momentos de despersonalização da personagem, sendo algumas pausas significativas marcadas por um espaçamento diferente no texto que fragmenta premeditadamente a construção do discurso e leva ao distúrbio formal que denuncia o estado de uma sociedade fechada aos problemas dos seus indivíduos. A subversão intencional que é feita no uso da pontuação não significa falta de coerência e coesão no texto, mas a rejeição da linearidade discursiva, premeditada pela narradora omnisciente, como forma de problematização do sentido do texto, o que resulta na desconstrução da sequência narrativa. O desequilíbrio da escrita testemunha o próprio desequilíbrio da personagem, o que é comum na ficção experimental, alcançando a linguagem um estatuto de protagonista da história. As formas do discurso tornam-se ambíguas ao serem projetadas ao mesmo tempo de duas perspetivas: a da personagem e a da narradora.

A evasão da personagem de si-própria traduz-se também na procura da rotina quase que alienatória para, desse modo, se libertar da sua capacidade de discernimento que a faz sofrer, dos seus pensamentos, do seu corpo, das suas palavras “deixar cair todas as palavras, porque todas se equivaliam e nenhuma tinha sentido algum” (p.14), da sua existência, tentando representar a morte na esperança de a alcançar e livrar-se de qualquer obrigação – alcançar finalmente a sua vontade própria: “Nenhum poder do mundo a obrigaria viver”. (p.15).

O abandono do herói de si-próprio é também causado pela falta de convicções experimentadas no momento que encara o seu mundo “aparente, feito de coisas falsas, um mundo que não existia, onde as coisas se perdiam, se confundiam umas com as outras, numa massa indiferenciada[…]um enorme deserto de palavras falsas” (p.15). Este tipo de afirmações na obra prepara o leitor para o discurso parodístico carregado de ironia a propósito da sociedade construída por O.S., onde a ligeireza aparentemente animada do discurso carrega valores repressivos dos sentimentos e convicções individuais, e testemunha a prática de contenção verbal ou, pior ainda, a expressão da cobardia e traição que tornam as relações humanas falsas e hipócritas.

A personagem entrega-se a este abandono devido à perda incalculável das suas motivações no mundo e a memória leva-a ao tempo em que as palavras apenas representavam as coisas que de facto existiam; agora as palavras tentam imitar a água, o espelho, o mar, as coisas em geral, função que cumprem mal. Há um momento imediato em que ela resolve lutar contra as palavras falsas e levanta a voz sem medo da morte, mas as palavras falsas personificadas entram em sua casa e são narrados episódios fantásticos em que as palavras imobilizam a personagem na cama; no entanto a sua boca solta-se e voa, junto com outras para gritarem palavras verdadeiras, mas são devoradas por uma boca gigantesca criada a partir das falsas – “coisas desconexas” (p.17) que fazem a personagem pensar em fugir para o interior do medo. O nosso herói feminino revela-se a cada passo um anti-herói ou um herói picaresco pelo simulacro da multiplicidade de mundos em que se movimenta e que vai sobrepondo, sem alcançar verdadeiramente qualquer um. Esta personagem, num lento monólogo interior, tranquiliza-se agora com a possibilidade de fuga pela morte que é a única coisa que, julga, não poderem roubar-lhe. A narradora dá-nos conta, entretanto, da pausa do pensamento da sua personagem que afirma ser um espaço em branco, tentativa de encenação do real confinada às páginas do livro, num jogo entre realidade e ficção. Trata-se também de referências semânticas à vivência humana do tempo.

A desconstrução da diegese presente no discurso adensa-se na dimensão imaginária da personagem e serve para comprovar a decadência experimentada num contexto sociopolítico imposto por O.S., que na obra se vai aproximando convulsivamente do abismo. A carnavalização da instituição familiar e social é apresentada pela autora neste jogo de verdade e mentira, “falo apenas de crianças, da morte dos filhos, é uma conversa à toa, um tema muito banal e sem importância, muito próprio para falar assim, sem pensar, numa manhã de Verão, enquanto se tricota” (pp.54/5).

Ao longo da obra, são frequentes as personificações para ficcionar o ilógico e o irracional, evasão possível através de incursões ao mundo fantástico das palavras, “um restolhar de inúmeras pequenas línguas, mandíbulas, dentes batendo, enquanto fragmentos de palavras eram repetidos a uma velocidade vertiginosa, deveria haver um modo de calá-las[…]deveria haver algures um ponto de fuga”(p.17), que neste caso se trata de uma imagem movimentada em direção mais uma vez ao abandono de si-própria que não parece terminar, e que a levou, na sequência do seu monólogo, a ingerir comprimidos suficientes que a levassem ao afastamento de tudo e de todos.

Clara é uma nova personagem, amiga da nossa personagem principal, que conhecemos a partir de um monólogo interior desta e que a leva a viajar ao passado, pela afinidade existente entre ambas.

Frequentemente a ideia de evasão perpassa o texto, ora no monólogo da personagem ora no discurso da narradora, tornando-se uma constante explícita e implícita. Esta ideia de evasão, requintada com imagens diversas, umas mais nítidas do que outras, onde, por exemplo, a metáfora do mar está associada ao escuro, ao desamparo e à impotência, e a levam a desejar repentinamente “sair de casa, fugir de casa, fugir das imagens que não aguentava olhar”(p.24). A personagem sai de casa, desata a correr e alcança o lugar onde não há gente, um deserto fora e dentro de si, “o lugar onde a consciência se perde, se dilui, estilhaça[…]odiando o seu corpo bruto e forte e empedernido e denso que resistia à morte e resistia ao mar e aguentava sem estilhaçar-se toda a violência do mundo, até a morte de um filho”(p.25). Este polissíndeto imprime ritmo à intensidade do desejo de abandono e de morte da personagem e deixa no ar a ideia de dor causada pela perda de um descendente, dor que não pretende caracterizar o foro sentimental apenas da mãe, mas de qualquer mãe, e que, ao mesmo tempo, reafirma a descomunal resistência da mulher. No entanto, é uma dor que transforma a morte do filho numa coisa monstruosa que ela quer fora de si, como ato instintivo de sobrevivência ou de ausência de sofrimento. Sozinha e em convulsão na areia da praia, a personagem fica exausta e a narradora de seguida inclui no seu discurso referências ao “enorme espaço em branco”(p.25) resultante do simulacro que experimenta a fragmentaridade da coesão narrativa, protagonizada pela própria linguagem. Trata-se de uma narrativa onde o enunciador real deu lugar ao narrador fictício e a sua omnisciência permite-nos um conhecimento íntimo e diverso da personagem. A linguagem utilizada não representa o mundo e o discurso no pretérito perde a sua função real, permitindo ao leitor, junto com o narrador fictício, “presenciar” os eventos: “Sentou-se na areia e olhou as coisas como se tivesse sido atirada para a praia e olhasse em volta pela primeira vez. O sol começava a descer, tinham certamente passado muitas horas. Olhou os barcos para gastar ainda algum tempo, deixou-se invadir pela imagem do mar e dos barcos – estava vazia, por dentro, deserta e vazia, e o mar inteiro cabia dentro dela, deixou o mar entrar pelos seus olhos…” Nesta transcrição, o tempo real é referido em horas e o tempo psicológico é aquele vivenciado pela personagem, desprendida do tempo real e da vida, “enchendo-se” de água, cor e emoção daquela paisagem tão forte e tão ausente do seu íntimo. O contraste entre a sua atitude desencantada e o movimento do mar conduz a personagem à visão metafórica de um barco que antes desaparecera no mar, que ela tinha avistado e não fizera nada para o socorrer, tempo que nos reporta para as perdas na sua vida, causadas pela imposição de valores proclamados na época, como a guerra no ultramar, o papel submisso da mulher na sociedade (“A mulher sem desejo nem corpo, porque só ao homem pertencia o desejo e o corpo”, p.99), o conformismo, a obediência cega ao Estado e à Igreja…

A descrição de uma paisagem ou de uma situação resulta em excelente “prosa de arte”. Mas esta só se transforma em ficção quando a linguagem se anima e se humaniza através da imaginação individual. A personagem não é decisiva para transformar o texto em ficção, mas a “ilusão da realidade” só “é possível pela colocação do leitor dentro do mundo imaginário”, tal como Lessing afirma no seu Laocoonte.

O estado de espírito da personagem consegue sobrepor-se ao vigor da natureza e surgem-nos imagens soltas onde o deserto é metáfora generalizada com o sentido de vazio e vácuo em todos os espaços existentes, onde o ato da criação como ato de amor surge pelo pedido da personagem ao homem (seu?) para lhe dar forma e vida (como um pequeno deus?), mesmo que passageira e transitória. Mas a vida é mais do que o corpo, as palavras, o amor, o som, pois nunca é plenamente alcançada devido à distância existente entre nós e o mundo.

A natureza, o mar, o sol, a claridade da manhã, o verde, o próprio corpo são imagens que refletem a despersonalização da personagem que vive numa sociedade em que as “palavras abertas, como gritos” (p.29) são castigadas e as outras são ocas e destituídas de vida própria, e por isso só fazem sentido no seu pensamento que vagueia no mundo das metáforas e só suporta a lucidez num mundo ridicularizado pela paródia.

“O homem que ela amava estava morto e não veria jamais seu filho” (p.29) é uma das primeiras frases de um longo período que só vai terminar na p.31 e nos faz mergulhar num dos monólogos interiores da personagem que se deixa arrastar para uma viagem, segundo ela, sem regresso, onde as certezas não existem e a realidade se resume a uma sucessão rápida de imagens que lembra a representação cinematográfica, e o ritmo discursivo é ajudado por repetições diversas, nomeadamente as anáforas: “mais alta, mais larga, mais grossa, mais rasgada” (p.30). a ideia da morte é o epílogo deste momento narrativo, já indiciada pela sensação de medo de ficar e “deixar o corpo atrás de si como uma casa vazia” (p.31), corpo morto que causará horror no processo da sua decomposição e por isso a terra deve tapá-lo rapidamente.

A natureza é um cenário expressivo num contexto em que nada é estável, nem o tempo, e a ausência e indefinição se rendem à força do mar “porque para o mar não havia distância, estava em todos os lugares unindo tudo, a noite e o dia, o norte e o sul, a terra e o céu, o real e o irreal” (p.32). Estes momentos realçam o cunho narrativo trazido do próprio cinema, pois a palavra, tal como a imagem, pode descrever e animar ambientes e paisagens, focalizando, recortando, aproximando, comentando, expondo, descrevendo. A personagem pode permanecer calada, porque as palavras do narrador (tal como a câmara no cinema) se encarregam de dar conta do seu comportamento e mesmo comunicar-nos os seus pensamentos. Segundo António Cândido de Mello e Sousa em A Personagem de Ficção (9ªed., Editora Perspectiva, S.Paulo, Brasil, 1995, p.29): “A ficção ou mimesis reveste-se de tal força que se substitui ou sobrepõe à realidade”. Assim, no seio da ficção, os seres humanos são puramente intencionais e tornam-se transparentes à nossa visão, não por serem mais interessantes do que as pessoas reais, mas devido à concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário, que reúne os fios dispersos da realidade num padrão firme e consistente, permitindo às personagens um papel em situações mais significativas e decisivas do que habitualmente acontece na nossa vida.

A figura feminina tem um papel central nesta obra, previsível pelo título, não apenas devido à personagem principal, mas à própria personagem feminina, Clara, que gravita à sua volta, apresentada com contornos pouco definidos mas expressivos e como contraponto de estado de letargia daquela personagem.

Os homens, companheiro e filho, estão presentes no texto pelas evocações feitas pela personagem nos seus monólogos interiores, evocações abruptas como a própria dor, mas que não passam de memórias de um passado recente, ligadas aos valores escorraçados que davam sentido à vida. A mulher é aqui mais do que um indivíduo porque cabe-lhe perpetuar as memórias dos outros e permitir a sobrevivência humana, cuja obrigação última é resistir à morte, independentemente da sua vontade e da sua relação com o mundo. “E ela própria era confusa e dispersa, caminhando assim por entre vultos, como se tudo fosse ao mesmo tempo irreal e possível, e ela esperasse um qualquer milagre sem nome, porque nenhuma coisa tinha agora nome, era tudo um magma, um mar, um labirinto branco, silencioso, onde o desejo se perdia, sem objecto…”(pp31/2).

O valor estético do discurso literário presente na obra é conseguido pela projeção do mundo ficcionado nas orações construídas, de acordo com a precisão da palavra, do ritmo e do estilo, especialmente preparados para narrar o comportamento e a vida íntima da personagem, numa relação estreita entre a composição estilística e o valor sonoro dos fonemas. De reparar, por exemplo, na escolha da sucessão de metáforas desta última citação, ritmadas pela repetição anafórica do artigo indefinido um e da aliteração nasalizada em m e n: “era tudo um magma, um mar, um labirinto branco, silencioso”. 

O tempo não linear da personagem recorre a saltos “quando conhecera Clara tinham ambas procurado a desconfiança uma na outra, uma animosidade secreta, uma qualquer forma de resistência ou de distância, porque ambas eram mulheres e amavam, cada uma a seu modo, o mesmo homem”(p.33), correspondendo esta citação a um momento de insegurança emocional das duas personagens femininas que vão sobreviver à morte do homem e repensar a necessidade da sua aproximação.

As ideias de transitoriedade, de viagem, de repetição e de retorno, são retidas pela personagem no grande cenário da “sua vida passada à beira-mar. O mar era o horizonte mais próximo, e também o mais remoto, desde o começo da infância. A casa a que todos os anos se voltava e de onde sempre de novo se partia, segundo um ritmo, uma lei, escondida nas coisas, que ela levava muito tempo a entender”(p.36). a personificação do mar num ser vivo e poderoso (importância subjacente ao próprio título), fantasia uma realidade que não pretende imitar, animizada por imagens desconexas e subvertida por novas regras de pontuação “- os que querem partir partirão sempre, disse o mar batendo com as ondas, rodopiando sobre si próprio como dentro de um vidro, chegará sempre o momento em que encontrarão imóveis, encostados à amurada de um navio[…]o barco dos pilotos já vai saindo a barra e o navio ainda está preso ao cais mas já as ondas o balançam, num prenúncio de viagem[…]e o navio parte finalmente, deslizando sem atrito sobre as águas, um navio de sombra sobre um mar escuro”(p.40).

Outros cenários são inevitáveis na obra, como “a emigração e a guerra” (exemplo na p.46), que deixaram certamente marcas dolorosas no eu da escrita, “este ódio ao cais, às despedidas lancinantes, porque não gritar alto, assumir este cais e estas cenas, estão em nossa vida desde há séculos, este cais de desastre, esta amargura, é melhor assumi-lo até ao fundo e gritar como os outros de puro desespero, em vez de iludir de falsa esperança, o que quer que aconteça é culpa minha, sou culpada deste navio e deste cais, porque nós preferimos culpar o destino, como se o destino existisse, e aqui estamos há séculos de pés e mãos atados, embarcando, partindo para fora de nós mesmos, no barco da loucura, um povo sem força nem vontade, apenas embarcando”(p.48).

África é também um palco descrito “noites húmidas, uma baía iluminada, a confusão de um porto, de uma cidade-porto que se enche de rumor à noite, quando chega um barco, mulheres negras passando, com panos garridos seguros debaixo dos braços, enrolados em torno da cintura, a estrada poeirenta, sem asfalto, por onde segue um jeep, a paisagem deserta, imbondeiros, cactos gigantescos”(p.49) onde é encenada uma paródia que imita criativamente o jogo da vida e da morte “o jogo podia de repente ser outro e o número saído ser o número da morte, e o homem gritar por exemplo do alto do tablado: os que tiverem este número são os que vão ser mortos, ou anunciar ainda mais alto, por entre a música subindo: atenção agora, é uma jogada especial, as mães que tiverem este número são aquelas cujos filhos vão ser mortos – e a tômbola gigante rodando entre a terra e o céu que de súbito se transforma em carrocel, em grande roda iluminada, de onde os filhos descem devagar de um outro continente até ao chão, segurando a espingarda e todos os mortos”(p.53). E neste quadro fúnebre, a paisagem é a única que continua a existir na vida da personagem “ninguém ficou em minha vida, só o vento, o sol, o mar continuam batendo, a praia deserta, sem pegadas, vazia de pessoas, meu filho morto e o mar batendo”(p.56).

A denúncia que a narradora faz do regime salazarista é sustentada pela carnavalização do discurso descontínuo, parodiado pela ilusão da manipulação de uma comunidade que está confinada a valores incutidos pelo medo (“Se não fizeres depressa o bordado, o cuco vem e arranca-te os olhos, dizia, na infância, sua mãe”, p.85), regida por modelos de falsas virtudes (“Saber controlar-se era a sua maior virtude[…]em cada dia se media com os outros e se confirmava como a mais vigilante, a mais segura, a mais sensata”, p.84), por modelos educacionais repressivos (“Educar era isso, gravar no espírito desde a infância[…]separar os sexos, as salas, as escolas, fazê-las crescer em inocência”, p.86, “não deixar as crianças sentir nem pensar livremente, mas ensinar-lhes o que deviam sentir e pensar”, p.89), pela imposição de valores religiosos culpabilizadores e castigadores (“O pecado, ó Deus, como era difícil ser santo. Estremecia só de pensar no mal, e redobrava de firmeza ao sentir-se, ela própria, ameaçada. O poder tranquilizador do sacrifício: Caminhar com pequenas pedras dentro dos sapatos, usar junto do corpo uma roupa interior áspera e cingida”, p.86), por uma moral sexual repressiva (“Através da renúncia ao corpo, transmudar misticamente em ouro a carne maléfica e corrupta[…]Corrigir a natureza”, p.89).

O amor experimentado por esta personagem, que sabemos agora chamar-se Hortense, lembra-lhe uma nova força surpreendente “as palavras que o teu amor deixa no meu corpo, faz nascer em meu corpo, estavam lá já muito antes, mas sem forma, dormindo, e de súbito é o amor que as solta”(p.101), lança o escândalo na família – estremecimento da ordem estabelecida – e a ideia de liberdade começa a romper do discurso da narradora, a juntar outras como reivindicação e, subentendida, a ideia de greve “as cidades caindo, se parassem as máquinas, o riso que estava por detrás das coisas funcionando, porque poderiam sempre deixar de funcionar, bastava querer”(p.95).

Apesar de terem sido muitos aniquilados até à morte, como o seu companheiro Horácio, professor demitido, que fora assassinado a meio da tarde, na rua, e da voz da pregação do sacerdote que apelava “Humilhai-vos e mortificai-vos, cingi-vos de cilícios, jejuai e orai, suplicai de joelhos que o Senhor vos liberte do mal”(p.109), a consciência da força do povo foi aumentando “a um gesto nosso O.S. cairá, como um rei de palha ou algodão, porque ele não é, em si próprio, nada, vive apenas da força que lhe damos, da repressão, do medo, mas em si próprio não é nada, o poder está em nós, apenas não sabemos”(p.123). São ainda encenadas sequências descontínuas de revoltas abortadas, de exílio, de desistência, de cobardia (“porque não tenho coragem de voltar à sala e perguntar por ti”, p.146), mas é a própria Hortense que vai desafiar a narradora (a ordem inverte-se) a matar O.S.. Porém, “é sempre para lá de mim que começa o mundo”(p.144) e a personagem corre ao encontro de uma criança acabada de nascer “um pequeno corpo húmido, perfeito, sufocado, abrindo uma passagem, puxado por outras mãos através de uma passagem, experimentando bruscamente o ar e o espaço, o choque da sombra contra a luz.”(p.147) que significa a corporização da grande metáfora do nascimento da democracia e são aquelas as palavras que vão determinar o final da narrativa.

                                                              
 

 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

homenagem aos 40 anos de abril


ONDE É QUE EU ESTAVA NO 25 ABRIL?

Retrato de um sentimento em flor

Foi há 40 anos, num vulgar dia 25 de primavera, um madrugar sonolento escuro agarrado à noite. Estava frio e quase desconfortável fora dos cobertores da cama. Não se falava em mudança de horas ou horários de verão. O que tinha era que ir à escola cumprir os meus deveres de boa menina e de apanhar o carro operário antes das oito horas da manhã, a metade do preço. Da rua de Alcântara até à rua da Junqueira era um esticão. Não dava para poupar o dinheiro. Eu até gostava do carro elétrico, aparte o cheiro e a sineta de stop que era uma tira de cabedal mais subida que o meu tamanho. A minha paragem não era das mais concorridas, porque ficava duas antes de Belém. E a Biblioteca Municipal, ao lado, só abria às nove. As minhas colegas – era ainda uma escola de meninas – chegavam mais tarde. Com muito sacrifício, pedia a alguém por perto para me tocar a sineta. “Pede mais alto, rapariga!”

Mas nesse dia, antes de me por a caminho até ao largo do Calvário para apanhar o último trem, cumpri o ritual: fui à padaria comprar pão fresco para a minha família e escolher uma carcaça para o meu lanche da manhã.

A padaria, junto ao nº 17 da rua de Alcântara onde vivíamos, ficava na esquina a seguir ao beco das Fontainhas. Um pequeno beco escuro com ligação à rua das Fontainhas, e um marco de pedra arredondado na extremidade de cima, que servia para a rapaziada mais atlética saltar ao eixo. Pena era que algumas velhotas, e outros dissimulados, atirassem à noite da sua janela lá para o beco os sacos do lixo, que se desventravam ao cair. Ficava pestilento. Mais um chichi de um aflito da tasca do Caroço…era de passar a correr. E a inclinação ajudava.

Essa madrugada estava, realmente, diferente. Já não me lembro bem se a minha avó já estava na padaria quando eu entrei ou se chegou a seguir. Acho que chegou depois de mim, porque estava muito insistente para me ir embora. Felizmente já tinha o pão e uma língua da sogra, das antigas…as cornucópias também eram boas, mesmo com o creme de manteiga.

Não seria surpresa porque eu às vezes encontrava-a lá, pois ela morava no 12 do beco do Sabugueiro, na parte debaixo da rua da Cruz. A minha avó estava com um semblante inquieto. Tinha passado pelo largo de Alcântara, que ainda tinha uma rotunda (onde nas horas de ponta os carros se entrelaçavam numa teia sem solução) e viu militares armados.

- Rosa, onde é que pensas que vais? Hoje não se pode ir à escola. Vai lá acima dizer à tua mãe que não é seguro andar nas ruas.

Não percebi. Eu não vi nenhum soldado. A única diferença lia-a no rosto das pessoas que estavam na padaria, a aglomerarem-se por causa da conversa e não se despachavam. Estávamos no Marcelismo e as conversas não podiam ser demoradas. “Vamos a despachar” dizia a padeira.

A minha avó fora uma senhora do campo, tisnada, muito voluntariosa, sempre vestida de escuro e lenço na cabeça, não obstante os seus lindos cabelos negros compridos enrolados na nuca. Viera servir para Lisboa e ser o exemplo de ordem familiar para as quatro filhas. Dizia-se defensora dos valores culturais conservadores, como os do matrimónio à antiga.

Eu tinha dez anos. Já não estava na escola primária da calçada da Tapada, que era mais perto. Andava no 1ºano do ciclo preparatório, numa secção da então escola comercial Ferreira Borges, já curso unificado. Fui uma das cobaias desta unificação da escolaridade dos cursos industriais e comerciais.

De saco de pano na mão (o leite já o leiteiro o tinha posto à porta), cheguei ao 2º andar onde morávamos e contei o que se tinha passado à minha mãe. Claro que a minha mãe ainda hesitou, até porque não estava autorizada a sair à rua, espreitou à janela e não achou razões para tanto.

Na verdade, eu também queria ir à escola. Sempre tinha gostado da escola. O que ficava a fazer em casa? Tinha os meus irmãos, mas já os bebés lhe davam muito trabalho.

Peguei nos livros, dei uma corrida e ainda apanhei o carro operário. Estava mais vazio. As ruas estavam mais solitárias. As pessoas mais sérias. Um clima de preocupação.

Cheguei lá e a porta ainda estava fechada. Fiquei assustada. Uma grande porta de madeira maciça trabalhada à antiga e pesada, ornada com almofadas e o centro com tiras de ferro torcido e vidro martelado. De um castanho pouco escuro, porque estava queimada do sol.

Lá me abriram a porta e quando entrei indicaram-me uma sala com meia dúzia de meninos, doutras turmas, onde o professor era a própria diretora. Surpreendentemente sorridente e conversadora. De saia abaixo do joelho em xadrez acastanhado em godés e botas pretas de cano alto. Como se usava na altura. Não me lembro dos traços do rosto dela, mas era magro e pálido. Apenas sentia que simulava boa disposição e tranquilidade, e volta e meia subia a uma cadeira para espreitar das subidas janelas o exterior. O que ela conseguiria ver? Não nos revelava.

Entre as pequenas e as histórias maiores que contou, e o lanche da manhã pelo meio, chagaram-se as doze horas e mandou-nos sair. Não foi fácil apanhar transporte. A fila na paragem era maior do que o costume. Mas o dia, sentia-o agora, já tinha clareado há umas horas e o céu estava limpo, apesar de uma leve friagem. Há 40 anos eu não era friorenta e andava sempre em camiseiro de inverno, em especial uma camisa que eu própria tinha cortado e costurado com ajuda da minha mãe. O frio era psicológico, pensava.

Ao chegar a casa, deparei-me com o cenário habitual: os degraus primeiros de pedra do meu prédio convertidos em bancadas de fumo para os operários das fábricas de parafusos e de sabão da Cuf, em descanso no horário de almoço.

“Posso passar, s.f.f.?”

“Ó menina, para onde você quiser.” E todas aquelas pessoas, de fato de macaco azul, a levantarem-se para eu passar. Sempre cabisbaixa e encolhida. Mas nesse dia fugiu-me o canto do olho para a varina, nos degraus do prédio ao lado, a vender o Diário Popular do dia com umas fotos de uns tanques em plena rua. E cravos em punho.

O meu pai estava em casa. O que se teria passado? E falavam, com preocupação e entusiasmo. Falei-lhes da manchete do jornal que vira e eles olharam-me, com admiração sorridente.

O pior para mim foram os programas de televisão que mudaram. As músicas na rádio já não eram as mesmas. As séries polacas, felizmente, ganhavam ascendente entre os mais novos. A Gabriela, Cravo e Canela, que ao princípio mal percebia. As paredes das ruas todas revestidas com palavras de ordem e cartazes de luta. As pessoas ficaram mais livres, mais soltas, mas mais indisciplinadas e protestavam facilmente.

Ao outro dia, ao chegar da escola, naquele percurso do largo do Calvário até à minha porta, mais Diários Populares, agora com a foto do general Spínola. O novo presidente.

O meu pai, o mais revolucionário: já não era sem tempo!

Levei tempo a habituar-me àquele entusiasmo ruidoso. As músicas românticas deram lugar às músicas de intervenção. Percebi então que na colónia de férias onde antes tinha estado dois anos, em Janas-Sintra, os jovens monitores já nos entretinham à socapa com essas mensagens de luta, a ouvir Zeca Afonso, José Mário Branco, Pedro Barroso e outros.

«Uma gaivota voava, voava, asas de vento coração de mar

Como ela somos livres, somos livres de voar…»

Começaram a aparecer outros produtos, outros livros, outras ideias… A cadeia dos croissants com recheios variados. De chocolate e doce de ovos, acabados de fazer. O Celeiro com livros sobre medicinas alternativas e comida vegetariana. As igrejas aumentaram e tinham outros nomes em salas de prédios comuns.

As escolas cresceram. Os professores deixaram de usar todos bata, de ter estrado e ponteiro. Já não eram só edifícios, mas blocos pré-fabricados. Os alunos falavam mais nas aulas. Os professores fumavam dentro das salas de aula. Na faculdade de letras, entravamos a comer e a qualquer hora. Íamos a comícios. Contra a energia nuclear, por exemplo. A nossa roupa era mais freak. Tás a ver, meu? Topas? Mais poesia, mais palavrões, mais merdas, mais música, mais saídas à noite, mais ideias de café… Greves da tabaqueira... O cheiro do Fortuna. A malta de África com mais cores que nós. O laranja e o verde numa única toilete, em grande estilo.

Era outra onda.

O fado abriu portas e vadiou mais. Os beijos a tempo inteiro e o tratamento por tu, como ainda hoje na fadistice. Fado em tudo e tudo com o fado.

O espírito novo. Não um maio de 68, mas um abril de 74. O auge da juventude. Respirada a cem por cento. Os festivais de música e a Festa do Avante devolvem um pouco da saudade desse tempo.

«Era aquela…»                                     

                                                              Lisboa, 9 de abril de 2014

                                                                    Rosa Maria Duarte    

                         

 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

a badana do WEBLIVRO «A Batuta do Olhar»

                                                      BADANA DO WEBLIVRO

Rosa Maria da Silva Candeias Tavares Duarte nasceu em Alcântara, em Lisboa, filha de um marinheiro fadista e de uma costureira doméstica, que tiveram seis filhos. Foi o terceiro filho do casal. Teve uma educação tradicional bairrista rigorosa. Aos 10 anos foi estudar para uma antiga secção da Escola Comercial Ferreira Borges, na Rua da Junqueira, em Belém, quando se deu o 25 de abril de 74.

Estudou até ao 11º ano no regime diurno no Alto de Santo Amaro e depois, quando se empregou, tirou o Curso Superior de Línguas e Literaturas Modernas, variante Português/Inglês, na Faculdade de Letras de Lisboa. Ingressou na carreira docente do ensino secundário no ano letivo de 1985/86 e continua no ativo, com vontade e determinação.

No ano letivo de 2002/3 foi-lhe atribuída uma Licença Sabática para fazer o Mestrado no Departamento de Estudos Anglo-Portugueses, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa. A sua tese encontra-se disponível para consulta na BN, com o título «O Jornalismo e a Narrativa de Viagens de António Augusto Teixeira de Vasconcelos» do universo oitocentista português.

Tem atualmente 50 anos, é casada e tem dois filhos rapazes, com 27 e 23 anos.

Está a viver em Corroios, na Margem Sul, a dar aulas de Português na Escola Secundária Professor Ruy Luís Gomes, no Laranjeiro.

Esteve 19 anos a lecionar na Escola Secundária Moinho de Maré, em Corroios, onde desempenhou grande parte do seu trabalho de docente.

Continua como aluna da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, agora como doutoranda a desenvolver a tese no âmbito do curso de Línguas, Literaturas e Culturas em Estudos Literários Comparados desde 2010/2011.

Ao estudar a obra do escritor José Cardoso Pires, despertou também para o mundo do fado, que já lhe era familiar e o sentia latente. Há um ano que é aluna da escola de fado da Mouraria. Editou entretanto o seu primeiro cd «Fado Que Cura» e faz atuações em público.

Tem um blogue pessoal desde 16 de julho de 2012 com textos inéditos, que apelidou «A Batuta do Olhar», nome que funde a ideia de música com o olhar de artista. http://rosaduarte00.blogspot.pt/.

É cronista do jornal «online» Setúbal na Rede e do Diário da Região. Tem alguns artigos publicados em revistas literárias e generalistas, como no Correio da Educação da Asa e em blogues diversos.

Toca harmónica e um pouco de trompete.

É conhecida no meio fadista como, simplesmente, a Rosa Maria.

 



quarta-feira, 2 de abril de 2014

crónica publicada no «Setúbal na Rede» e no «Diário da Região»

Educação
por Rosa Duarte
(Professora)



Na aula não se canta

Há dias fui ao lançamento do livro da minha colega Graça Santos na Escola Secundária Romeu Correia. Aproveitei para rever com entusiasmo rostos amigáveis do meu já razoável percurso profissional. E pensei: como é bom olhar a escola para além do sentimento das obrigações diárias.

A escola como um lugar de encontros e intercâmbios. E a vestimenta desta, que é um edifício recente redimensionado segundo uma disposição modernizada, protege um corpo-escola com graciosas linhas de aprendizagem, umas mais desenhadas que outras, ora padronizadas, ora ousadas e muitas naturalmente tão espontâneas que o lado pedagógico é pensado só a posteriori. É a ideia genuína de escola, como qualquer lugar com gente que interage, com mais ou menos cadeiras. E quantas aprendizagens não chegamos, nós professores e alunos, a reconhecê-las e rentabilizá-las devidamente!, venham elas a ser boas ou más experiências, que marcam indelevelmente cada interveniente. Ora a vida é sempre matéria escolar. E os diplomas mais autênticos são os sucessos e os fracassos vividos. Onde quer que se aprenda, é um lugar-escola. A nossa casa é a primeira escola. O lar-escola. A última, logo se verá. Talvez a universidade sénior…
 
Na Escola Secundária Moinho de Maré, a ex-Celeiro, por exemplo, encerrada há cerca de sete anos, viveram-se compromissos intensos de projetos com séria ação comunitária. Um deles foi o jornal escolar "O Celeiro", que lancei com especial colaboração de dois empenhados colegas. Para o lançamento, convidámos o escritor e jornalista Baptista-Bastos, que entretanto já algumas vezes mostrou ser acérrimo apoiante da causa educativa. Aproveito para lhe enviar daqui uma especial saudação académica.
 
Na referida sessão de apresentação do livro “A Ausência, a Morte e a Ternura”, a segunda parte do encontro incluiu fado: fui desafiada a cantar à capela. Cantar num restaurante? Why not? O silêncio para ouvir fado é sempre que o homem quiser. Vai daí que, ao saudar formalmente os meus ilustres colegas e familiares, em especial a autora do livro, decidi partilhar com eles algumas ideias prévias, óbvias como quase todas o são. Conquanto algumas válidas… Como esta, julgo, de que somos um país de poetas e músicos, mas que nem sempre sabemos acarinhá-los e revigorá-los. “És um lírico!” é uma expressão que eu própria já a disse… Ou “Não sabes que na aula não se canta?!” ou “À mesa não se escreve”. O que será que nos ocorre quando alguém simplesmente se põe a cantar pela rua fora?
 
E ser fadista ainda não está fora das atividades de risco promarginal. Com o estigma de artistas, como convém. Às vezes com orgulho, quando pertencer à norma não é o mais razoável… Os artistas podem ser admirados e, até certo ponto, amados, mas nunca o são incondicionalmente. É certo que hoje em dia os financeiros não estão mais bem cotados.
 
Afinal, um ser introspetivo e criativo pode não ser um livro aberto, mas falar também não o garante de uma atitude inteligente e honesta. O cientista, por exemplo, que é respeitado, porque é por princípio rigoroso até à exaustão, é-o desde que não solicite uma bolsa de investigação…
 
Afinal, nesta assumida era das telecomunicações, em que se abusa, obviamente, da comunicação à distância, há jovens que já vão pensando melhor, com mais seriedade e rigor, como no valor da privacidade e da segurança pública, assim a sociedade lhes proporcione condições para darem o seu melhor.
 
Em abono da verdade, ainda há quem pense que a arte é exclusiva dos excêntricos. Os mesmos críticos que, ao fim de um dia de trabalho, não dispensam um fadinho na rádio Amália, ou um filme sentados no sofá, ou um livro de um autor conhecido…
 
Porque os professores, que a bem dizer somos todos, bem precisam diariamente de recobrar forças nos motivos de alento para conseguir enfrentar as adversidades, como por exemplo os dissabores causados por doença e perdas de companheiros de trabalho, vítimas dos malefícios do amianto existente nas velhas construções, que tanto tem assolado esta e outras classes profissionais!
 
Todos sabemos que às vezes as regras na educação ofuscam, quando não matam, a liberdade criativa e opinativa de cada um. O coletivo é responsável pelo indivíduo, e o contrário também é verdade. Por isso, cantar deve fazer parte de uma opção de trabalho, ainda que individual. A grande aliada da poesia estudada. Um workshop ao fim do dia, por exemplo…
 
O ato educativo é, pois, muitas vezes um ato criativo de compreensão, de introspeção e de cooperação. E os professores são, com orgulho, uma família de artistas, felizmente cada um à sua maneira. Eu à minha.



 

Rosa Duarte - 02-04-2014 09:10

[Setúbal na Rede] - Na aula não se canta

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