PAISAGEM
COM MULHER E MAR AO FUNDO de
Teolinda Gersão
Inesquecível
livro oferecido pela minha melhor amiga da altura, a Mafalda Ferreira, que não
a vejo há muito. Pareceu-lhe que eu iria gostar. Os verdadeiros amigos são
assim, conhecem-nos. Eis uma leitura atenta e académica deste livro sob o ponto
de vista de
O ABANDONO DO HERÓI ROMANESCO DE SI-MESMO
/ AS
DESCONTINUIDADES NO DISCURSO PARODÍSTICO
/ O MONÓLOGO
INTERIOR
Na abertura do
livro, na página reservada às dedicatórias, Teolinda Gersão começa por remeter
a expressão que usou na obra «as cidades como fruta podre» para o seu autor, Le
Corbusier, bem como um passo da p.131 para Raul Brandão, e de seguida afirma
que o resto do texto também não é seu, mas de «quem o reconheça como coisa
sua», o que revela um exercício crítico interessante sobre a complexidade do
sentido de autoria, conferindo à obra um estatuto não de criação artística, mas
de simulacro criativo da realidade. Este momento de crítica autorreflexiva, a
par com outros na obra ("não vou poder dizer isto nunca, e muito menos
escrevê-lo, porque não sei escrever", p.128), poderá não fazer dela uma
obra assumidamente autorreflexiva, mas são reflexos e interpelações ao leitor
que contribuem para o seu caráter metaficcional e que denunciam um passo para a
ordem pós-modernista. O objetivo crítico ainda deste momento discursivo
prende-se com o paradoxo de reflexividade introduzido por Nietzsche e
trabalhado por artistas pós-modernistas de que não há originalidade, nem
certezas, mas apenas o simulacro revelado textualmente (Carlos Ceia, O que é Afinal o Pós-Modernismo?,
Edições XXI, Lisboa, 1998, pp.47/8). Outro exercício ficcional de
autorreflexividade é o discurso parodístico que atravessa esta narrativa e que
junta a paródia, a sátira, o escárnio e maldizer à narração objetiva dos factos
vividos no regime salazarista, pela deformação e censura do “cenário aberto e
sem figurantes, oferecido e vazio” (p.60): “As carteiras alinhadas, diante do
quadro preto, do cruxifixo e do retrato de O.S.. Rezar todas as manhãs por
O.S.. Enquanto todos reencontram a família, à noite ele fica sozinho,
trabalhando, velando sem dormir pelo seu povo. Graças a ele as pessoas vivem em
segurança, defendidas da discórdia, da infelicidade e da guerra, libertas de
todo o mal. Entre a ira de Deus e os ventos da História, ele levanta-se como um
anjo para proteger o seu povo[…] Velai por ele, ó Deus, pois ele é a nossa
segurança e a nossa força” (p.83).
Este romance faz
um retrato da sociedade portuguesa sufocada pela censura salazarista (“à noite
os funcionários de O.S. sentavam-se em cadeiras altas, debaixo de lâmpadas
acesas, com livros e jornais abertos em cima de mesas ensebadas e um lápis azul
em cada mão e começavam a cortar palavras, segundo instruções sempre novas de
outros funcionários”, p.82), amordaçada pela repressão e pela clausura, exausta
por uma guerra colonial injusta e sem saída, e encena o derrubar da ditadura de
O.S., iniciais que ocultam o nome do ditador, simulando a falta de liberdade de
expressão vivido na época.
A desmistificação
da história portuguesa do Estado Novo, mostrando a hipocrisia dos sonhos
políticos de Oliveira Salazar e a falência do desenvolvimento social e
cultural, é um dos aspetos pós-modernistas mais marcantes deste romance de
Teolinda Gersão. Associada a esta desmistificação da nossa história,
encontramos a paródia, teatralizada nos quadros quotidianos familiares, com o
recurso à ironia (“O.S. era o seu esposo místico, ele dava razão e sentido à
sua vida. À noite era nele que pensava em sua cama, adormecia pensando nele, um
homem perfeito e santo, como mandava a Igreja”, p.85). A paródia de um Deus
distraído perante o espetáculo do abuso de poder é outro paradigma
pós-modernista demonstrável neste livro: “devorar novos mundos escravizar
outras gentes, e Deus não estava com atenção e Deus não estava com atenção e
Deus não estava com atenção” (p.91), repetição que confere ao discurso
descontínuo o tom parodístico oralizante e pregador.
Este romance
problematiza o modelo ficcional de estrutura convencional, iniciado na 3ªpessoa
por uma escritora-narradora que se encarrega de adensar e desordenar o fio
narrativo, em que a indefinição do espaço onde se encontra a personagem central
feminina vai levar a um ambiente campestre, de manhã com neblina, onde já havia
pouco verde.
Esta personagem
observa da janela de “casa, interrogando cada coisa, e nenhum objecto ter mais
nenhuma relação consigo” (p.9) a paisagem que nos é descrita e a sua mente
questiona as consequências da ausência de memória e a importância da “sua”
paisagem como ponto de referência no caso de perder as coordenadas do tempo. A
janela e a paisagem ganham novas dimensões, por conotação metafórica, de
comunicação para o mundo: “O universo estava lá[…]mas como continuar a existir,
se o tempo se quebrara, de repente?”.
À medida que o seu
corpo desfalecia, o espaço envolvente foi sofrendo transmutações, de paisagem
lunar a um escuro fundo do mar, tendo este começado a bater contra a janela, o
que levava a crer num desmoronamento da casa, em dissemelhança com a vida de desapego
desta personagem. Este abandono físico e mental temporário, tudo indiciava ser
desencadeado voluntariamente pela personagem, mas não passou de um desmaio,
sendo que esta vai encontrar de novo a ordem caduca no seu pequeno mundo e a
beleza cromática da paisagem (grandeza plástica), o que vai permitir-lhe uma
pausa “na sua obscura luta contra o mundo” (p.11). O desejo de confronto da
personagem com o mundo/sociedade é por ela considerado desproporcionado devido
à força do seu adversário, e nós, leitores, só temos acesso a esse seu
pensamento íntimo e inconfessável através do monólogo interior da personagem,
atitude passiva de conformismo fingido, “fingindo-se passiva e doce” (p.11),
com medo de previsíveis consequências. O mundo da personagem é agora
personificado e o monólogo interior dá lugar a um diálogo entre os dois seres,
levando o herói romanesco feminino, que nós ainda nem sabemos o nome (porque a
descrição da personagem é dispensável no romance experimental), a negar a sua existência
humana para se afirmar uma simples folha de árvore – abandono da natureza
humana a favor da natureza vegetal, cuja existência não é tão complexa e
comprometida. Estas tréguas aparentes, com vantagem para o adversário, e este
abandono da sua condição, foi efémero e fê-la pensar na morte como a única
decisão livre e fácil para se poder evadir do sofrimento, o que lhe permitiu
recuperar um certo poder sobre si mesma. Sentada na sua cadeira de baloiço, a
personagem abandona o seu estado de consciência, perde mais uma vez a noção do
tempo, sem contudo perder completamente a visão daquele espaço, e dividida
entre a lucidez e o sonambulismo, despende tempo no seu quintal, fala com
alguém em tom familiar, a natureza transfigura-se ganhando contornos assassinos
e o rapaz com quem está, o seu Horácio, é trespassado por uma bala. Não passava
de um sonho que a perseguia e que lhe recordava a morte do seu companheiro, sem
precisão de tempo nem de espaço, mas, ao que tudo indica, remete para a
perseguição da PIDE aos antifascistas durante o regime salazarista. A escrita
aparece-nos como uma viagem intra e extratextual, própria do pós-modernismo.
A personagem
Horácio aparece naquele momento da obra, mas não é caracterizado, tal como
acontece com a protagonista ao longo da obra, nem referido o motivo que o levou
à morte; apenas a dor da ausência estimula o discurso da personagem feminina
que se dirige àquele que ela sabe que “partiu”, mas que os seus sentidos ainda
detetam os movimentos e a sua presença nos espaços que anteriormente ocupava.
Não há dor exaltada, nem expressão de revolta, mas uma tristeza silenciosa que
leva a protagonista a perder o acesso ao mundo concreto, como a imagem das duas
crianças nuas que a protagonista vê desfocadas como numa fotografia,
provavelmente seus filhos, numa altura em que estavam numa casa de madeira
verde, à beira-mar. A indeterminação do espaço e do tempo desfamiliariza a
personagem com o mundo em que vive de forma despersonalizada. A descontinuidade
do discurso presente ao longo da obra sugere esta indefinição temporal e
espacial nos momentos de despersonalização da personagem, sendo algumas pausas
significativas marcadas por um espaçamento diferente no texto que fragmenta premeditadamente
a construção do discurso e leva ao distúrbio formal que denuncia o estado de
uma sociedade fechada aos problemas dos seus indivíduos. A subversão
intencional que é feita no uso da pontuação não significa falta de coerência e
coesão no texto, mas a rejeição da linearidade discursiva, premeditada pela
narradora omnisciente, como forma de problematização do sentido do texto, o que
resulta na desconstrução da sequência narrativa. O desequilíbrio da escrita
testemunha o próprio desequilíbrio da personagem, o que é comum na ficção
experimental, alcançando a linguagem um estatuto de protagonista da história.
As formas do discurso tornam-se ambíguas ao serem projetadas ao mesmo tempo de
duas perspetivas: a da personagem e a da narradora.
A evasão da
personagem de si-própria traduz-se também na procura da rotina quase que
alienatória para, desse modo, se libertar da sua capacidade de discernimento
que a faz sofrer, dos seus pensamentos, do seu corpo, das suas palavras “deixar
cair todas as palavras, porque todas se equivaliam e nenhuma tinha sentido
algum” (p.14), da sua existência, tentando representar a morte na esperança de
a alcançar e livrar-se de qualquer obrigação – alcançar finalmente a sua
vontade própria: “Nenhum poder do mundo a obrigaria viver”. (p.15).
O abandono do
herói de si-próprio é também causado pela falta de convicções experimentadas no
momento que encara o seu mundo “aparente, feito de coisas falsas, um mundo que
não existia, onde as coisas se perdiam, se confundiam umas com as outras, numa
massa indiferenciada[…]um enorme deserto de palavras falsas” (p.15). Este tipo
de afirmações na obra prepara o leitor para o discurso parodístico carregado de
ironia a propósito da sociedade construída por O.S., onde a ligeireza
aparentemente animada do discurso carrega valores repressivos dos sentimentos e
convicções individuais, e testemunha a prática de contenção verbal ou, pior
ainda, a expressão da cobardia e traição que tornam as relações humanas falsas
e hipócritas.
A personagem
entrega-se a este abandono devido à perda incalculável das suas motivações no
mundo e a memória leva-a ao tempo em que as palavras apenas representavam as
coisas que de facto existiam; agora as palavras tentam imitar a água, o
espelho, o mar, as coisas em geral, função que cumprem mal. Há um momento
imediato em que ela resolve lutar contra as palavras falsas e levanta a voz sem
medo da morte, mas as palavras falsas personificadas entram em sua casa e são
narrados episódios fantásticos em que as palavras imobilizam a personagem na
cama; no entanto a sua boca solta-se e voa, junto com outras para gritarem
palavras verdadeiras, mas são devoradas por uma boca gigantesca criada a partir
das falsas – “coisas desconexas” (p.17) que fazem a personagem pensar em fugir
para o interior do medo. O nosso herói feminino revela-se a cada passo um
anti-herói ou um herói picaresco pelo simulacro da multiplicidade de mundos em
que se movimenta e que vai sobrepondo, sem alcançar verdadeiramente qualquer
um. Esta personagem, num lento monólogo interior, tranquiliza-se agora com a
possibilidade de fuga pela morte que é a única coisa que, julga, não poderem
roubar-lhe. A narradora dá-nos conta, entretanto, da pausa do pensamento da sua
personagem que afirma ser um espaço em branco, tentativa de encenação do real
confinada às páginas do livro, num jogo entre realidade e ficção. Trata-se
também de referências semânticas à vivência humana do tempo.
A desconstrução da
diegese presente no discurso adensa-se na dimensão imaginária da personagem e
serve para comprovar a decadência experimentada num contexto sociopolítico
imposto por O.S., que na obra se vai aproximando convulsivamente do abismo. A
carnavalização da instituição familiar e social é apresentada pela autora neste
jogo de verdade e mentira, “falo apenas de crianças, da morte dos filhos, é uma
conversa à toa, um tema muito banal e sem importância, muito próprio para falar
assim, sem pensar, numa manhã de Verão, enquanto se tricota” (pp.54/5).
Ao longo da obra,
são frequentes as personificações para ficcionar o ilógico e o irracional,
evasão possível através de incursões ao mundo fantástico das palavras, “um
restolhar de inúmeras pequenas línguas, mandíbulas, dentes batendo, enquanto
fragmentos de palavras eram repetidos a uma velocidade vertiginosa, deveria
haver um modo de calá-las[…]deveria haver algures um ponto de fuga”(p.17), que
neste caso se trata de uma imagem movimentada em direção mais uma vez ao
abandono de si-própria que não parece terminar, e que a levou, na sequência do
seu monólogo, a ingerir comprimidos suficientes que a levassem ao afastamento
de tudo e de todos.
Clara é uma nova
personagem, amiga da nossa personagem principal, que conhecemos a partir de um
monólogo interior desta e que a leva a viajar ao passado, pela afinidade
existente entre ambas.
Frequentemente a
ideia de evasão perpassa o texto, ora no monólogo da personagem ora no discurso
da narradora, tornando-se uma constante explícita e implícita. Esta ideia de
evasão, requintada com imagens diversas, umas mais nítidas do que outras, onde,
por exemplo, a metáfora do mar está associada ao escuro, ao desamparo e à
impotência, e a levam a desejar repentinamente “sair de casa, fugir de casa,
fugir das imagens que não aguentava olhar”(p.24). A personagem sai de casa,
desata a correr e alcança o lugar onde não há gente, um deserto fora e dentro
de si, “o lugar onde a consciência se perde, se dilui, estilhaça[…]odiando o
seu corpo bruto e forte e empedernido e denso que resistia à morte e resistia
ao mar e aguentava sem estilhaçar-se toda a violência do mundo, até a morte de
um filho”(p.25). Este polissíndeto imprime ritmo à intensidade do desejo de
abandono e de morte da personagem e deixa no ar a ideia de dor causada pela
perda de um descendente, dor que não pretende caracterizar o foro sentimental
apenas da mãe, mas de qualquer mãe, e que, ao mesmo tempo, reafirma a
descomunal resistência da mulher. No entanto, é uma dor que transforma a morte
do filho numa coisa monstruosa que ela quer fora de si, como ato instintivo de
sobrevivência ou de ausência de sofrimento. Sozinha e em convulsão na areia da
praia, a personagem fica exausta e a narradora de seguida inclui no seu
discurso referências ao “enorme espaço em branco”(p.25) resultante do simulacro
que experimenta a fragmentaridade da coesão narrativa, protagonizada pela
própria linguagem. Trata-se de uma narrativa onde o enunciador real deu lugar
ao narrador fictício e a sua omnisciência permite-nos um conhecimento íntimo e
diverso da personagem. A linguagem utilizada não representa o mundo e o
discurso no pretérito perde a sua função real, permitindo ao leitor, junto com
o narrador fictício, “presenciar” os eventos: “Sentou-se na areia e olhou as
coisas como se tivesse sido atirada para a praia e olhasse em volta pela
primeira vez. O sol começava a descer, tinham certamente passado muitas horas.
Olhou os barcos para gastar ainda algum tempo, deixou-se invadir pela imagem do
mar e dos barcos – estava vazia, por dentro, deserta e vazia, e o mar inteiro
cabia dentro dela, deixou o mar entrar pelos seus olhos…” Nesta transcrição, o
tempo real é referido em horas e o tempo psicológico é aquele vivenciado pela
personagem, desprendida do tempo real e da vida, “enchendo-se” de água, cor e
emoção daquela paisagem tão forte e tão ausente do seu íntimo. O contraste
entre a sua atitude desencantada e o movimento do mar conduz a personagem à
visão metafórica de um barco que antes desaparecera no mar, que ela tinha
avistado e não fizera nada para o socorrer, tempo que nos reporta para as perdas
na sua vida, causadas pela imposição de valores proclamados na época, como a
guerra no ultramar, o papel submisso da mulher na sociedade (“A mulher sem
desejo nem corpo, porque só ao homem pertencia o desejo e o corpo”, p.99), o
conformismo, a obediência cega ao Estado e à Igreja…
A descrição de uma
paisagem ou de uma situação resulta em excelente “prosa de arte”. Mas esta só
se transforma em ficção quando a linguagem se anima e se humaniza através da
imaginação individual. A personagem não é decisiva para transformar o texto em
ficção, mas a “ilusão da realidade” só “é possível pela colocação do leitor
dentro do mundo imaginário”, tal como Lessing afirma no seu Laocoonte.
O estado de
espírito da personagem consegue sobrepor-se ao vigor da natureza e surgem-nos
imagens soltas onde o deserto é metáfora generalizada com o sentido de vazio e
vácuo em todos os espaços existentes, onde o ato da criação como ato de amor
surge pelo pedido da personagem ao homem (seu?) para lhe dar forma e vida (como
um pequeno deus?), mesmo que passageira e transitória. Mas a vida é mais do que
o corpo, as palavras, o amor, o som, pois nunca é plenamente alcançada devido à
distância existente entre nós e o mundo.
A natureza, o mar,
o sol, a claridade da manhã, o verde, o próprio corpo são imagens que refletem
a despersonalização da personagem que vive numa sociedade em que as “palavras
abertas, como gritos” (p.29) são castigadas e as outras são ocas e destituídas
de vida própria, e por isso só fazem sentido no seu pensamento que vagueia no
mundo das metáforas e só suporta a lucidez num mundo ridicularizado pela
paródia.
“O homem que ela
amava estava morto e não veria jamais seu filho” (p.29) é uma das primeiras
frases de um longo período que só vai terminar na p.31 e nos faz mergulhar num
dos monólogos interiores da personagem que se deixa arrastar para uma viagem,
segundo ela, sem regresso, onde as certezas não existem e a realidade se resume
a uma sucessão rápida de imagens que lembra a representação cinematográfica, e
o ritmo discursivo é ajudado por repetições diversas, nomeadamente as anáforas:
“mais alta, mais larga, mais grossa, mais rasgada” (p.30). a ideia da morte é o
epílogo deste momento narrativo, já indiciada pela sensação de medo de ficar e
“deixar o corpo atrás de si como uma casa vazia” (p.31), corpo morto que
causará horror no processo da sua decomposição e por isso a terra deve tapá-lo
rapidamente.
A natureza é um
cenário expressivo num contexto em que nada é estável, nem o tempo, e a
ausência e indefinição se rendem à força do mar “porque para o mar não havia
distância, estava em todos os lugares unindo tudo, a noite e o dia, o norte e o
sul, a terra e o céu, o real e o irreal” (p.32). Estes momentos realçam o cunho
narrativo trazido do próprio cinema, pois a palavra, tal como a imagem, pode
descrever e animar ambientes e paisagens, focalizando, recortando, aproximando,
comentando, expondo, descrevendo. A personagem pode permanecer calada, porque
as palavras do narrador (tal como a câmara no cinema) se encarregam de dar
conta do seu comportamento e mesmo comunicar-nos os seus pensamentos. Segundo
António Cândido de Mello e Sousa em A
Personagem de Ficção (9ªed., Editora Perspectiva, S.Paulo, Brasil, 1995,
p.29): “A ficção ou mimesis reveste-se
de tal força que se substitui ou sobrepõe à realidade”. Assim, no seio da
ficção, os seres humanos são puramente intencionais e tornam-se transparentes à
nossa visão, não por serem mais interessantes do que as pessoas reais, mas
devido à concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário,
que reúne os fios dispersos da realidade num padrão firme e consistente,
permitindo às personagens um papel em situações mais significativas e decisivas
do que habitualmente acontece na nossa vida.
A figura feminina
tem um papel central nesta obra, previsível pelo título, não apenas devido à
personagem principal, mas à própria personagem feminina, Clara, que gravita à
sua volta, apresentada com contornos pouco definidos mas expressivos e como
contraponto de estado de letargia daquela personagem.
Os homens,
companheiro e filho, estão presentes no texto pelas evocações feitas pela
personagem nos seus monólogos interiores, evocações abruptas como a própria
dor, mas que não passam de memórias de um passado recente, ligadas aos valores
escorraçados que davam sentido à vida. A mulher é aqui mais do que um indivíduo
porque cabe-lhe perpetuar as memórias dos outros e permitir a sobrevivência
humana, cuja obrigação última é resistir à morte, independentemente da sua
vontade e da sua relação com o mundo. “E ela própria era confusa e dispersa,
caminhando assim por entre vultos, como se tudo fosse ao mesmo tempo irreal e
possível, e ela esperasse um qualquer milagre sem nome, porque nenhuma coisa
tinha agora nome, era tudo um magma, um mar, um labirinto branco, silencioso,
onde o desejo se perdia, sem objecto…”(pp31/2).
O valor estético
do discurso literário presente na obra é conseguido pela projeção do mundo
ficcionado nas orações construídas, de acordo com a precisão da palavra, do
ritmo e do estilo, especialmente preparados para narrar o comportamento e a
vida íntima da personagem, numa relação estreita entre a composição estilística
e o valor sonoro dos fonemas. De reparar, por exemplo, na escolha da sucessão
de metáforas desta última citação, ritmadas pela repetição anafórica do artigo
indefinido um e da aliteração
nasalizada em m e n: “era tudo um magma, um mar, um
labirinto branco, silencioso”.
O tempo não linear
da personagem recorre a saltos “quando conhecera Clara tinham ambas procurado a
desconfiança uma na outra, uma animosidade secreta, uma qualquer forma de
resistência ou de distância, porque ambas eram mulheres e amavam, cada uma a
seu modo, o mesmo homem”(p.33), correspondendo esta citação a um momento de
insegurança emocional das duas personagens femininas que vão sobreviver à morte
do homem e repensar a necessidade da sua aproximação.
As ideias de
transitoriedade, de viagem, de repetição e de retorno, são retidas pela
personagem no grande cenário da “sua vida passada à beira-mar. O mar era o
horizonte mais próximo, e também o mais remoto, desde o começo da infância. A
casa a que todos os anos se voltava e de onde sempre de novo se partia, segundo
um ritmo, uma lei, escondida nas coisas, que ela levava muito tempo a
entender”(p.36). a personificação do mar num ser vivo e poderoso (importância
subjacente ao próprio título), fantasia uma realidade que não pretende imitar,
animizada por imagens desconexas e subvertida por novas regras de pontuação “-
os que querem partir partirão sempre, disse o mar batendo com as ondas,
rodopiando sobre si próprio como dentro de um vidro, chegará sempre o momento
em que encontrarão imóveis, encostados à amurada de um navio[…]o barco dos
pilotos já vai saindo a barra e o navio ainda está preso ao cais mas já as
ondas o balançam, num prenúncio de viagem[…]e o navio parte finalmente,
deslizando sem atrito sobre as águas, um navio de sombra sobre um mar
escuro”(p.40).
Outros cenários
são inevitáveis na obra, como “a emigração e a guerra” (exemplo na p.46), que
deixaram certamente marcas dolorosas no eu da escrita, “este ódio ao cais, às
despedidas lancinantes, porque não gritar alto, assumir este cais e estas
cenas, estão em nossa vida desde há séculos, este cais de desastre, esta
amargura, é melhor assumi-lo até ao fundo e gritar como os outros de puro
desespero, em vez de iludir de falsa esperança, o que quer que aconteça é culpa
minha, sou culpada deste navio e deste cais, porque nós preferimos culpar o
destino, como se o destino existisse, e aqui estamos há séculos de pés e mãos
atados, embarcando, partindo para fora de nós mesmos, no barco da loucura, um
povo sem força nem vontade, apenas embarcando”(p.48).
África é também um
palco descrito “noites húmidas, uma baía iluminada, a confusão de um porto, de
uma cidade-porto que se enche de rumor à noite, quando chega um barco, mulheres
negras passando, com panos garridos seguros debaixo dos braços, enrolados em
torno da cintura, a estrada poeirenta, sem asfalto, por onde segue um jeep, a paisagem deserta, imbondeiros,
cactos gigantescos”(p.49) onde é encenada uma paródia que imita criativamente o
jogo da vida e da morte “o jogo podia de repente ser outro e o número saído ser
o número da morte, e o homem gritar por exemplo do alto do tablado: os que
tiverem este número são os que vão ser mortos, ou anunciar ainda mais alto, por
entre a música subindo: atenção agora, é uma jogada especial, as mães que
tiverem este número são aquelas cujos filhos vão ser mortos – e a tômbola
gigante rodando entre a terra e o céu que de súbito se transforma em carrocel,
em grande roda iluminada, de onde os filhos descem devagar de um outro
continente até ao chão, segurando a espingarda e todos os mortos”(p.53). E
neste quadro fúnebre, a paisagem é a única que continua a existir na vida da
personagem “ninguém ficou em minha vida, só o vento, o sol, o mar continuam
batendo, a praia deserta, sem pegadas, vazia de pessoas, meu filho morto e o
mar batendo”(p.56).
A denúncia que a
narradora faz do regime salazarista é sustentada pela carnavalização do
discurso descontínuo, parodiado pela ilusão da manipulação de uma comunidade
que está confinada a valores incutidos pelo medo (“Se não fizeres depressa o
bordado, o cuco vem e arranca-te os olhos, dizia, na infância, sua mãe”, p.85),
regida por modelos de falsas virtudes (“Saber controlar-se era a sua maior
virtude[…]em cada dia se media com os outros e se confirmava como a mais
vigilante, a mais segura, a mais sensata”, p.84), por modelos educacionais
repressivos (“Educar era isso, gravar no espírito desde a infância[…]separar os
sexos, as salas, as escolas, fazê-las crescer em inocência”, p.86, “não deixar
as crianças sentir nem pensar livremente, mas ensinar-lhes o que deviam sentir
e pensar”, p.89), pela imposição de valores religiosos culpabilizadores e
castigadores (“O pecado, ó Deus, como era difícil ser santo. Estremecia só de
pensar no mal, e redobrava de firmeza ao sentir-se, ela própria, ameaçada. O
poder tranquilizador do sacrifício: Caminhar com pequenas pedras dentro dos
sapatos, usar junto do corpo uma roupa interior áspera e cingida”, p.86), por
uma moral sexual repressiva (“Através da renúncia ao corpo, transmudar
misticamente em ouro a carne maléfica e corrupta[…]Corrigir a natureza”, p.89).
O amor
experimentado por esta personagem, que sabemos agora chamar-se Hortense,
lembra-lhe uma nova força surpreendente “as palavras que o teu amor deixa no
meu corpo, faz nascer em meu corpo, estavam lá já muito antes, mas sem forma,
dormindo, e de súbito é o amor que as solta”(p.101), lança o escândalo na
família – estremecimento da ordem estabelecida – e a ideia de liberdade começa
a romper do discurso da narradora, a juntar outras como reivindicação e,
subentendida, a ideia de greve “as cidades caindo, se parassem as máquinas, o
riso que estava por detrás das coisas funcionando, porque poderiam sempre
deixar de funcionar, bastava querer”(p.95).
Apesar de terem
sido muitos aniquilados até à morte, como o seu companheiro Horácio, professor
demitido, que fora assassinado a meio da tarde, na rua, e da voz da pregação do
sacerdote que apelava “Humilhai-vos e mortificai-vos, cingi-vos de cilícios,
jejuai e orai, suplicai de joelhos que o Senhor vos liberte do mal”(p.109), a
consciência da força do povo foi aumentando “a um gesto nosso O.S. cairá, como
um rei de palha ou algodão, porque ele não é, em si próprio, nada, vive apenas
da força que lhe damos, da repressão, do medo, mas em si próprio não é nada, o
poder está em nós, apenas não sabemos”(p.123). São ainda encenadas sequências
descontínuas de revoltas abortadas, de exílio, de desistência, de cobardia
(“porque não tenho coragem de voltar à sala e perguntar por ti”, p.146), mas é
a própria Hortense que vai desafiar a narradora (a ordem inverte-se) a matar
O.S.. Porém, “é sempre para lá de mim que começa o mundo”(p.144) e a personagem
corre ao encontro de uma criança acabada de nascer “um pequeno corpo húmido,
perfeito, sufocado, abrindo uma passagem, puxado por outras mãos através de uma
passagem, experimentando bruscamente o ar e o espaço, o choque da sombra contra
a luz.”(p.147) que significa a corporização da grande metáfora do nascimento da
democracia e são aquelas as palavras que vão determinar o final da narrativa.
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