quarta-feira, 31 de outubro de 2012

visita do João Monge


O que me leva a escrever? 

Interpelou-nos assim o letrista João Monge, na terça-feira passada, a espicaçar a curiosidade do seu jovem público, que éramos nós, profs., e os nossos alunos: O que me leva a escrever?... Para que serve uma música? Do que falam as canções?...

De homem recatado, sentado na mesa dos convidados em frente ao auditório, passou a uma figura verticalmente expressiva, que agradeceu e explicou, no seu jeito de pedagogo que também é, o que é isto de fazer estas coisas.

Não há receitas nem grandes cursos para letristas. “Eu não vejo nada que vocês não vejam.” Foi uma das mensagens que quis passar.

Falou-nos um pouco da sua experiência de viver do lado de cá do Tejo (“o lado certo”), num 14º andar da avenida 25 de abril em Almada. A música «Postal dos Correios» dos Rio Grande, com letra sua, foi fermentada à janela quando olhou para alguém e imaginou a sua história. “Vou escrever a história daquele gajo que ali vai”. Foi mais ou menos assim.

Falou também da ideia da passagem de testemunho, que é a maior prova de amor aos jovens, na sua letra «Senta-te aí», composta e cantada pelo mesmo grupo, de quem é amigo de longa data. Ainda bem que não o convidaram para a banda, diz, porque não sabe cantar. Mas a escrever, não há pai… “É um vício saudável”. Como também o é o teatro, de que é grande fã e autor.

Do que é que vive o autor? Foi uma pergunta de uma menina do curso de Técnico de Secretariado.

Dos direitos de autor. “Quando pagarem um bilhete no teatro, já sabem que uma pequena parte é para o encenador, que também é autor, outro pequena parte para o cenógrafo, que também é autor, também para os atores…, para o funcionário do bengaleiro, e a mais pequena parte é para o dramaturgo”, elucida e parodia. “O autor é o gajo mais assaltado da época contemporânea.” (sorrisos de apoio ao artista)

À minha mente assaltaram-me também as palavras do nosso saudoso José Cardoso Pires, no seu E Agora, José? o primeiro texto «Atento, Venerador e Obrigado», que é uma declaração pessoal de refutação ao conceito do escritor na sociedade portuguesa, que conclui assim: “Perante o exposto, e dado que lhe não são possibilitadas quaisquer formas de recurso efectivamente consequentes, o declarante remeteu-se, com o preço das inevitáveis segregações, à condição de cidadão à margem, que é aquela para que certos Estados impelem o escritor que crê na independência do espírito.” (p.16)

Passou-se à inspiração. E João Monge citou Picasso. Como ele, não crê nela: “Eu só espero que a inspiração quando me bater à porta me encontre a trabalhar.”

E continuou com palavras de sua autoria a incitar o entusiasmo alheio: “O fracasso é um descanso; está sempre garantido.”

Ainda responde a mais umas quantas respostas. Escrever para ele é uma droga boa. Qual o melhor trabalho? O melhor trabalho é tendencialmente o último, porque é como uma cria que o progenitor não se cansa de lamber e de olhar, embasbacado…

João Monge quis distinguir a letra de uma música de um poema. As artes de palco e as que não são. A vida do poema num papel em branco e a letra-canção numa música num espartilho que é o tempo limite. O leitor do poema que decide o tempo. E o cantor que é o emissor da letra.

Pelo meio ainda lembrou mais nomes, o João Nobre dos De Weasel, com quem está a fazer um trabalho. O Gabriel, o Pensador, que é bom músico. O Vinicius de Moraes, que é uma referência maior da música e da poesia. Luís de Camões d’ Os Lusíadas,  cantáveis e cantados. E, naturalmente, os nomes residentes dos seus amigos Rui Veloso, Jorge Palma, Tim, Camané, Vitorino, Carlos do Carmo.

Na manhã seguinte, fomos espreitar a Pietá do Camané, do João Monge e do António Chaínho. Michelangelo não se importaria, de certeza, de a ouvir…

                                                                    Laranjeiro, 31 de outubro de 2012

                                                                                    Rosa Duarte
 

sábado, 27 de outubro de 2012

ainda sobre Proust...


O AROMA DA MEMÓRIA 

Ter memória de elefante não é para todos. Mas à nossa escala humana, cobaias do terceiro milénio, não há ninguém que a ela não recorra, nem que seja para se reconhecer ao espelho, fazer um simples feedback para lançar a mão às chaves do carro ou de casa, ou desanuviar de um dia de trabalho com uma imagem mental de companhia.

A nossa memória é a nossa história, a nossa identidade. Construímo-nos a registar e a reler esses registos. E a cada recordação, mesmo sem querer, fazemos involuntárias reformulações.

De tal modo que me veio à ideia as correrias que fazia com os meus irmãos no parque infantil do Monsanto nos escorregas de chapa enormes, a sentir as minhas pernas a queimar pela fricção, os baloiços brancos largos, com proteções lassas e grossas…e de sentir depois algum enjoo a seguir ao almoço à conta do calor e dos safanões…

E apesar do gosto humano por estas viagens memorialísticas, o que recordamos do que sentimos nunca são as sensações rigorosamente reais. Nunca relemos ou recordamos de forma fidedigna um acontecimento, nem mesmo por resistência ou de força decalcada. Quando analisamos o que sentimos, o que estamos a fazer são juízos de valor sobre o que pensamos que estamos a sentir. E parece que a individualidade das nossas experiências é o que a ciência mal consegue explicar. Cada um de nós habita um cérebro único, que a ele estamos ligados pelo humor dos desejos pessoais, momentâneos, moldados nos nossos neurónios.

No entanto, tanto a ciência como a arte lidam ambas com factos. Proust dizia: “A sensação é para o escritor o que a experimentação é para o cientista.” Mas até agora só o artista consegue amplamente descrever a realidade subjetiva.

O filósofo Henri Bergson, Nobel da literatura em 1927, afirmava que a realidade da autoconsciência não podia ser reduzida ou dissecada experimentalmente. Acreditava que só nos podemos compreender através da intuição, um processo que exige muita introspeção e contemplação. Proust, seu primo por afinidade, foi um dos primeiros artistas a interiorizar esta filosofia. Filosofia tão em voga no ocidente dos nossos dias.

A tal ponto que Proust considerou a literatura realista, a que se limitava a descrever coisas, a mais afastada da realidade. Como insistia Bergson, a realidade é melhor compreendida subjetivamente quando acedemos às verdades intuitivamente.

A neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel Herz, uma psicóloga em Brown, demonstrou, no ensaio científico Testing the Proustian Hypothesis, que os nossos sentidos do olfato e do paladar são os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro.
O hipocampo e outros diferentes tipos de memória, nas palavras de Sara Sá, são assunto da última revista da Visão.

De reconhecida autoridade, António Damásio no seu Livro da Consciência avisa que: “O eu é, garantidamente, uma festa móvel.” (p.215)
 
A ficção de Proust, que é principalmente a não ficção, explora a forma como o tempo muda a memória.

Moldamos a memória à nossa narrativa pessoal. Proust previne-nos que a realidade das nossas memórias deve ser tratada com cuidado e ceticismo.

Hoje curiosamente a ciência está a descobrir a verdade molecular subjacente a estas teorias proustianas. A consciência é cada vez maior sobre a imperfeição das nossas lembranças de factos passados.

A “desonestidade” da memória foi primeiramente documentada por Freud, por acaso, quando se apercebeu que as suas pacientes, no decurso do seu estudo, acabaram por acreditar na sinceridade das memórias que relatavam de abusos sexuais.

Contudo, a ciência diz-nos que os neurónios não se tocam. Formam memórias por alterações subtis na resistência das sinapses. Então o momento de tempo é introduzido no espaço vazio da arquitetura do cérebro.

Para Proust, as memórias eram como as suas frases, que nunca parava de as modificar. Tornou-se um incansável revisor dos seus textos.

Era um escritor que acreditava no ato da escrita como um processo criativo espontâneo. Nunca começava por delinear as suas histórias. Achava que o romance, tal como a inverdade das memórias que descrevia, devia discorrer naturalmente.

A plasticidade da narrativa era um dos elementos mais realistas em Proust. Até na última noite da sua vida, queria modificar uma parte do romance que descrevia a morte lenta de uma personagem, porque entretanto tinha um pouco mais a experiência do que é estar moribundo.

Também Paul Ricoeur em Vivo até à Morte alude ao poder da escrita que permite: "Curar a memória ao narrá-la sem que dela se morra." Neste fez questão de testemunhar na última parte do livro, com letra moribunda, o sentimento de proximidade do fim, já no último mês da sua vida.

Proust estava intensamente consciente da sua própria fraude. Como ele próprio disse: “O único paraíso é o paraíso perdido”. Não há maneira de descrever o passado sem mentir. As nossas memórias não se parecem com a ficção. São a própria ficção.

O romance e a vida, o cronista e o ficcionista são, na realidade, indistintos. A recordação de uma determinada imagem não passa de nostalgia de um determinado momento.

Proust sabia intuitivamente que as nossas memórias exigiam este processo transformador.

O segredo de Proust foi a consciência da distorção da memória de algo para o podermos recordar.

Os modelos conservadores científicos não conseguiram explicar a aleatoriedade e estranheza da memória.

Atualmente começam-se a revelar pormenores moleculares que presidem ao modo como as nossas memórias subsistem, as “marcas sinápticas” de que nos fala o Nobel Eric Kandel, mesmo depois de nos termos esquecido delas.

As memórias, como insistia Proust, não se limitam a perdurar, mas também a mudar invariavelmente. Sempre que evocamos os nossos passados, as nossas reminiscências ficam maleáveis de novo.

O jovem autor Jonah Lehrer, no livro Proust era um neurocientista, a que tenho recorrido nesta reflexão, explica que embora os priões que marcam as nossas memórias sejam praticamente imortais, os pormenores dendríticos são constantemente alterados, viajando entre os polos da lembrança e do esquecimento. O passado é ao mesmo tempo perpétuo e efémero.

Não é ingenuamente que n’O Viver para contá-la, Gabriel García Márquez inicia o livro autobiográfico com a frase: “A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.” Outro escalpelizador da memória da vida.

E estaria tudo no bom caminho da descoberta do ser, não fora o Livro das Previsões citado por outro Nobel da literatura, José Saramago, n’ As Intermitências da Morte pressagiar que: “Saberemos cada vez menos o que é um ser humano”.

                                                     Quinta do Rouxinol, 28 de outubro de 2012

                                                                             Rosa Duarte
 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

a rua é a casa do povo


CANTAR TAMBÉM É TRABALHO

Este sábado, dia 13, a bandeira nacional foi a cantiga. Desfraldada numa praça humanizada, sem trânsito, o trabalho sério e combativo dos nossos artistas portugueses foi hasteado com palavras e música bem madura. De grande expressão emblemática. A arte de compor para predispor à coragem da afirmação. Não aquela música para entreter e conformar o ceguinho, mas a compartilhada e sentida, porque engrandecida pelo tom da vontade comum. Sabemos que a arte nos ensina e nos eleva no nosso trabalho diário. A bem dizer, sempre pressupondo uma equipa. Que se deve apoiar e encorajar! Sabemos que é a cantar que mais se intensifica a alegria de participar no grande projeto humano: a cooperação. As nações não se fortalecem fechadas sobre si mesmas, mas em coprodução. Se cada um der o seu melhor, então é de supor bom senso e não castigo. As tristezas não pagam dívidas. O que é de todos, não pode ser privativo. E ainda há quem trabalhe para oferecer cantigas. Sem pagamentos a 30 dias. Pois a música é ganha-pão, sem desprezo, de nobres sementes que sempre fertilizam; o dinheiro não. Este é alimento nas caixas de multibanco e um metal infértil nos recônditos cofres blindados do senhor papão.

O canto é um fermento sem iva, que cresce até a voz doer. Quem não dá o que não tem, não pode ser supliciado. A cantar, com firmeza e afinação, um alerta para a dor da desgovernação. Somos todos pardos na toada genesíaca. Amados pelo timbre primordial. O fruto no parto da Gaia mãe. Um dia enternecer-nos-emos verdadeiramente com a sua generosidade isenta de impostos ou congelamentos, talvez a tempo de a reanimar...

Anfitriã foi a noite da massa crítica no relvado fresco e no asfalto morno, persistente plebe no seu intento. A lembrar que é gente, maior do que toda a dívida do mundo. Ávida dos cravos da serenidade. De qualquer sentido circulável. Nas ruas deste pequeno país. Onde cabem praças de Espanha, avenidas de Berna, Penhas de França, avenidas do Brasil, dos Estados Unidos da América, de Londres e de Paris, lugares de todo o mundo. Sabemos chegar e partir. Gostamos de aprender. Vamos à escola (os mais dedicados…), mas suamos para as propinas. Sentamo-nos ao lado de toda a gente. E não esquecemos a família. Gostamos da armilada bandeira, não rendida, não voltada para baixo, mas de orgulho e persistência, de cabeça erguida. Guerreiros da paz e da diplomacia. Em cada esquina, uma cantiga, uma arma de poesia.

Homenagem cantada aos senhores de abril. 25 da história da democracia. Para os mais novos, a experiência da força popular, o canto das letras no compêndio sobre Portugal. Conhecer o lado combativo e fraterno do rosto vizinho. Ajudar a erguer a melodia como um facho a arder na noite escura e gritar, com emoção: O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO. Palavras de ordem jamais esquecidas.

Então o palco emudeceu.

Mergulhados na multidão, ainda saudámos e conversámos com uma grande senhora dos palcos inconformados: Maria do Céu Guerra. Caminhada apetecida pela avenida a lembrar os célebres cenáculos oitocentistas também a céu aberto de braço dado sobre o estado incomportável das finanças do país. 

Ó gentes da minha terra, bem hajam.                            

                                                                                     Rosa Duarte, outubro/2012
 
 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

narrativa e medicina


«A MINHA NARRATIVA»

A última conferência a que assisti do projeto Narrativa e Medicina, realizada no dia 19 de Setembro, foi proferida por João Lobo Antunes, Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa, intitulada «A minha narrativa», que foi a conferência inaugural do ano letivo 2012-13.

Como esperava, resultou numa conversa informal muito interessante em que este médico assumiu mais uma vez o papel de leitor e autor da grande narrativa que é a vida, criando grande afinidade entre o mundo das letras e a ciência neurológica e cirúrgica.

Embora Lobo Antunes tivesse preparado um texto que expressivamente leu, a sua conferência tendeu mais para uma partilha de cumplicidades, muitas literárias, com o público do momento, atento e espontâneo, na Faculdade de Letras de Lisboa. O orador confidenciou que é um homem de letras, embora a sua “dieta literária” não siga nenhum programa em especial. De tal modo que foi sensível à importância da importância da narrativa na doença. “A doença é o maior igualizador do ser humano” desabafa. E vai mais longe: reconhece o poder curativo da palavra. Embora às vezes as palavras sejam cinzeladas pelos instrumentos que usa. E cita Virgínia Woolf: “A doença requer uma nova hierarquia de paixão.”

O médico sublinha, de acordo com a sua experiência, a admissão da culpa na narrativa da doença. Um ato de contrição da parte do doente. “Os doentes esperam de nós, médicos, a absolvição”. Procuram desconjurar o medo. Por vezes também há um narcisismo incongruente. Os sentimentos humanos diversos perante as consequências do comportamento de risco, a transgressão e o desafio da ordem.

João fala também da compaixão ontológica, mas prefere a comiseração piedosa. E procura todos os indícios do medo. Ele próprio tem receio, por exemplo, da cadeira de rodas. Da dependência física. De ficar uma pessoa diferente.

E recorre às suas memórias de infância quando a sua mãe o levava, a si e aos irmãos, ao médico, vestidos com o melhor traje, o de domingo. Era como um ato sagrado. “As histórias são tijolos com que fui construindo o meu currículo”. Delicia-nos. “As relações íntimas nascem nas palavras. Não propriamente nas relações físicas, mas na sua textura.” O médico da altura fazia o favor de ser seu amigo.

“Cheguei à medicina com o gosto pelas histórias.” E pelos vistos esse gosto não foi caso isolado na sua família…

“Há escritores que me morreram.” Cita A Peste de Albert Camus. Lembrei-me logo do “meu” (perdoei-me!!) José Cardoso Pires. Este escritor que responsabiliza pelo seu ato da escrita, De Profundis, Valsa Lenta,  João Lobo Antunes.

Apetece citar a frase de Abel Salazar: “Um médico que só sabe de medicina não pode ser bom médico”. O conhecido fundador do Instituto com o seu nome na Universidade do Porto, onde estudou o meu rapaz mais velho (não resisti…).

Com João Lobo Antunes é, nada mais, nada menos, do que ensinar a ética através do gesto mais eloquente: o exemplo.

Saudações carinhosas ao sempre apreciado mano António.

                                                                      Quinta do Rouxinol, 12 de outubro de 2012

                                                                                             Rosa Duarte

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

o que ando a ler...


COMO A ARTE NOS CONHECE!


A arte é a nossa maior cúmplice. Mesmo para os lógico-dedutivos! Se a arte são as emoções diárias, os sonhos sempre fantásticos, os estilos ao espelho, os pensamentos arrojados, os retratos incompletos, os pequenos rituais existenciais, as linguagens comprometidas… então criamos para nos conhecermos. (Re)inventamo-nos para não pararmos cada emocionante jornada.

E a qualquer momento, a arte acena a convidar-nos pela capa de um livro. A seduzir porque é fisicamente atraente. Ou quimicamente cheiroso. Ou inteligentemente oportuno. Ou semanticamente indagador ou contemplativo…

Paro, olho e folheio. E vejo-me a passear com um livro graficamente colorido intitulado  Poust era um Neurocientista, de um jovem americano, Jonah Lehrer, que almeja o entendimento de quem somos e afirma que a arte antecipa a ciência, ou por outras palavras, como a arte é grandiosa na observação da complexidade contraditória do ser humano.

É um livro acarinhado publicamente por António Damásio, em que o próprio autor reforça a ideia de que nenhum mapa da matéria consegue ainda explicar a imaterialidade da nossa consciência.

É mais um livro interessante, até porque dá uma perspetiva curiosa do pensamento de vários artistas, das letras e da imagem, como Walt Whitman, que foram pioneiros na sua perceção distinta de uma realidade diversa da natureza humana. Este, por exemplo, ao introduzir uma nova subjetividade na conceção poética e do hino que faz da sua poesia à vida material indissociável da vida espiritual. A técnica inovadora dos seus poemas, em verso livre, que influenciou o mundo moderno, incluindo o nosso poeta e ensaísta português Fernando Pessoa.

 Jonah Lehrer refere que “Muito antes de Damásio, já Whitman compreendia que “o espírito recebe do corpo tanto quanto dá ao corpo”. Eis a razão pela qual ele ouvia a carne tão intimamente: era lá que a sua poesia começava.” (p.39)

Álvaro de Campos tem um poema dedicado a Walt Whitman: Saudação a Walt Whitman. Este que cantou energicamente a vida anatómica com palavras que sangram como veias.

Nós vamos conhecendo e tendo consciência das nossas contradições naturais e do mundo em que vivemos. (Ainda) Não as sabemos explicar e, muito menos, se o quisessemos, desativá-las. Só a arte, nas suas múltiplas linguagens criativas, as consegue representar de forma diversa e única, o que nenhuma lógica ou método científico parece alcançar.

Pelos vistos foi William James o primeiro cientista a aperceber-se de que a poesia de Whitman era literalmente verdadeira: é o corpo a fonte dos sentimentos.  

Outro nome conhecido das letras, George Elliot, a rapariga de muitos nomes, cedo se decidiu a ser romancista, numa época em que as mulheres tinham pouca liberdade, porque o seu objetivo era oferecer-nos uma visão de nós próprios, “mais segura do que uma teoria em mudança” (p.44).

Laplace, o fundador da “ciência da humanidade”, o matemático mais famoso do tempo de Napoleão, também seu ministro do Interior, dizia que não precisava de Deus porque acreditava na teoria da probabilidade a partir das medições astronómicas para responder aos mistérios e capaz de qualquer previsão. Mas toda a matéria estava e está a transformar-se lentamente. O céu descrito pelos astrónomos é "consistentemente inconsistente".

Em Elliot o mistério intrínseco da vida é um dos seus temas mais apaixonantes. Elliot citava In Memoriam do poeta inglês Tennyson (1809-1892): “Acreditem / Há mais fé numa dúvida honesta, do que em metade dos credos” (p.54).

E Lehrer interpela o seu leitor: “Se a ciência pudesse ver a liberdade, com que se pareceria? Se quisesse encontrar a vontade, onde a procuraria?” (p.56).

De facto, a biologia na altura não partilhava da fé de Elliot na plasticidade do cérebro. O que lhe confere um espírito criativo e visionário. A ela e a muitos outros pensadores desta e de outras épocas, amantes da representação atenta e inventiva da vida.

E Proust?...

Estou estupefacta…e pensativa, reforçando a consciência da dimensão escalpelizadora da sua arte.

                                                                                             8 de outubro de 2012
                                                                                               Quinta do Rouxinol