O AROMA DA MEMÓRIA
Ter memória de elefante não é para todos. Mas à nossa escala
humana, cobaias do terceiro milénio, não há ninguém que a ela não recorra, nem
que seja para se reconhecer ao espelho, fazer um simples feedback para lançar a mão às chaves do carro ou de casa, ou
desanuviar de um dia de trabalho com uma imagem mental de companhia.
A nossa memória é a nossa história, a nossa identidade.
Construímo-nos a registar e a reler esses registos. E a cada recordação, mesmo
sem querer, fazemos involuntárias reformulações.
De tal modo que me veio à ideia as correrias que fazia com os
meus irmãos no parque infantil do Monsanto nos escorregas de chapa enormes, a
sentir as minhas pernas a queimar pela fricção, os baloiços brancos largos, com
proteções lassas e grossas…e de sentir depois algum enjoo a seguir ao almoço à
conta do calor e dos safanões…
E apesar do gosto humano por estas viagens memorialísticas, o
que recordamos do que sentimos nunca são as sensações rigorosamente reais.
Nunca relemos ou recordamos de forma fidedigna um acontecimento, nem mesmo por
resistência ou de força decalcada. Quando analisamos o que sentimos, o que
estamos a fazer são juízos de valor sobre o que pensamos que estamos a sentir.
E parece que a individualidade das nossas experiências é o que a ciência mal
consegue explicar. Cada um de nós habita um cérebro único, que a ele estamos
ligados pelo humor dos desejos pessoais, momentâneos, moldados nos nossos
neurónios.
No entanto, tanto a ciência como a arte lidam ambas com
factos. Proust dizia: “A sensação é para o escritor o que a experimentação é
para o cientista.” Mas até agora só o artista consegue amplamente descrever a
realidade subjetiva.
O filósofo Henri Bergson, Nobel da literatura em 1927,
afirmava que a realidade da autoconsciência não podia ser reduzida ou dissecada
experimentalmente. Acreditava que só nos podemos compreender através da
intuição, um processo que exige muita introspeção e contemplação. Proust, seu
primo por afinidade, foi um dos primeiros artistas a interiorizar esta
filosofia. Filosofia tão em voga no ocidente dos nossos dias.
A tal ponto que Proust considerou a literatura realista, a que se
limitava a descrever coisas, a mais afastada da realidade. Como insistia
Bergson, a realidade é melhor compreendida subjetivamente quando acedemos às
verdades intuitivamente.
A neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel
Herz, uma psicóloga em Brown, demonstrou, no ensaio científico Testing the Proustian Hypothesis, que os
nossos sentidos do olfato e do paladar são os únicos sentidos que se ligam
diretamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro.
O hipocampo e outros diferentes tipos de memória, nas palavras de Sara Sá, são assunto da última revista da Visão.
O hipocampo e outros diferentes tipos de memória, nas palavras de Sara Sá, são assunto da última revista da Visão.
De reconhecida autoridade, António Damásio no seu Livro
da Consciência avisa que: “O eu é, garantidamente, uma festa móvel.”
(p.215)
A ficção de Proust, que é principalmente a não ficção,
explora a forma como o tempo muda a memória.
Moldamos a memória à nossa narrativa pessoal. Proust
previne-nos que a realidade das nossas memórias deve ser tratada com cuidado e
ceticismo.
Hoje curiosamente a ciência está a descobrir a verdade molecular
subjacente a estas teorias proustianas. A consciência é cada vez maior sobre a
imperfeição das nossas lembranças de factos passados.
A “desonestidade” da memória foi primeiramente documentada
por Freud, por acaso, quando se apercebeu que as suas pacientes, no decurso do
seu estudo, acabaram por acreditar na sinceridade das memórias que relatavam de
abusos sexuais.
Contudo, a ciência diz-nos que os neurónios não se tocam.
Formam memórias por alterações subtis na resistência das sinapses. Então o momento
de tempo é introduzido no espaço vazio da arquitetura do cérebro.
Para Proust, as memórias eram como as suas frases, que nunca
parava de as modificar. Tornou-se um incansável revisor dos seus textos.
Era um escritor que acreditava no ato da escrita como um
processo criativo espontâneo. Nunca começava por delinear as suas histórias.
Achava que o romance, tal como a inverdade das memórias que descrevia, devia
discorrer naturalmente.
A plasticidade da narrativa era um dos elementos mais
realistas em Proust. Até na última noite da sua vida, queria modificar uma
parte do romance que descrevia a morte lenta de uma personagem, porque
entretanto tinha um pouco mais a experiência do que é estar moribundo.
Também Paul Ricoeur em Vivo
até à Morte alude ao poder da escrita que permite: "Curar a memória ao narrá-la sem que dela se morra." Neste fez questão de testemunhar na última parte do livro, com letra
moribunda, o sentimento de proximidade do fim, já no último mês da sua vida.
Proust estava intensamente consciente da sua própria fraude.
Como ele próprio disse: “O único paraíso é o paraíso perdido”. Não há maneira
de descrever o passado sem mentir. As nossas memórias não se parecem com a
ficção. São a própria ficção.
O romance e a vida, o cronista e o ficcionista são, na
realidade, indistintos. A recordação de uma determinada imagem não passa de
nostalgia de um determinado momento.
Proust sabia intuitivamente que as nossas memórias exigiam
este processo transformador.
O segredo de Proust foi a consciência da distorção da memória
de algo para o podermos recordar.
Os modelos conservadores científicos não conseguiram explicar
a aleatoriedade e estranheza da memória.
Atualmente começam-se a revelar pormenores moleculares que
presidem ao modo como as nossas memórias subsistem, as “marcas sinápticas” de
que nos fala o Nobel Eric Kandel, mesmo depois de nos termos esquecido delas.
As memórias, como insistia Proust, não se limitam a perdurar,
mas também a mudar invariavelmente. Sempre que evocamos os nossos passados, as
nossas reminiscências ficam maleáveis de novo.
O jovem autor Jonah Lehrer, no livro Proust era um neurocientista, a que tenho recorrido nesta reflexão,
explica que embora os priões que marcam as nossas memórias sejam praticamente
imortais, os pormenores dendríticos são constantemente alterados, viajando
entre os polos da lembrança e do esquecimento. O passado é ao mesmo tempo
perpétuo e efémero.
Não é ingenuamente que n’O Viver para contá-la, Gabriel García Márquez inicia o livro
autobiográfico com a frase: “A vida não é a que cada um viveu, mas a que
recorda e como a recorda para contá-la.” Outro escalpelizador da memória da
vida.
E estaria tudo no bom caminho da descoberta do ser, não fora
o Livro das Previsões citado por
outro Nobel da literatura, José Saramago, n’ As Intermitências da Morte pressagiar que: “Saberemos cada vez
menos o que é um ser humano”.
Quinta do Rouxinol, 28 de outubro de 2012
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