UMA VIDA CIRCUM-NAVEGADA
ouve-se um pingar no ralo da banheira. rodas abafadas a um
certo longe que deslizam em alcatrão de gravilha molhado, escorregadamente. parecem
brincar na chuva. intervalos de um ténue zumbido de ausência. quase silêncio.
ponteiros marcham certeiros a compasso, ainda sonolentos da manhã. a circum-navegar
a vida. mais um ciclo de dia. sereno e cinzento. alguma vidraça remexe-se. não
sossega, caramba. um assobio humano conhecido repetido. de dono ansioso. afasta-se.
então dispara uma sirene. é uma ambulância aflita. quem levará nela?
- ainda não quero morrer, doutor – declarava uma combalida senhora
bem parecida, apesar de não ter placa, deitada numa maca, com alguns tons
azulados de mau prenúncio. como o homem gosta de presságios e espíritos… quase vive
em pré-anúncio de morte declarada. não receemos: é o momento mais democrático
na vida do ser humano.
- é melhor não entrar. vão lá ter. – aconselhava o
paramédico. recatadas senhoras, freiras de congregação, entreolharam-se. a
nossa querida irmã Conceição… falecer por falecer, preferiam-no lá nos seus austeros,
mas cómodos aposentos. Deus o permitirá…
entubada, com bilha de oxigénio, prostrada, a enferma falou a
espaços no percurso até ao hospital. um corpo imóvel, mas de cabeça com ânsias
na vida…
num quarto deitada, ia ouviando ao longe o som daquela
pequena cidade ribatejana. um pequeno pluvial miudinho aguçava-lhe a nostalgia
da família. então via a irmã deitada ao seu lado. na sua direita. qual das
irmãs? sorriu-lhe. faziam companhia uma à outra, na saúde e no recolhimento da
doença.
- bom dia, irmã Conceição. melhorzinha? – era a médica de
serviço.
- claro que sim, senhora doutora. pronta para ir para casa.
já me consigo levantar. – respondia-lhe, um tanto ansiosa e quase infantil.
- bom, bom. vamos lá ver isso. – e auscultava-a, media-lhe os
níveis de oxigénio, fazia-lhe umas perguntas clínicas e invadia-se no seu
passado conventual… de sabor a mistério e ficção. ora, mais outra viagem à sua
gaveta das memórias. será que a senhora doutora saberia se quando
morrer as poderá levar consigo?
- ó irmã, Deus poupa-se às nossas memórias! convida-nos, mas
deixa-as portas fora, a arejar.- riram-se.
após a hora da visita, sentiu-se sonolenta. vozes repentinas metralhadas
no corredor sacudiram-lhe a modorra quase destituía do querer participar em
mais um final de dia, naquelas familiares rotinas de terço e salmos louvados. como
andarão, na escola, os seus meninos do centro paroquial, e os ainda mais velhotes
da Misericórdia de tantos pensamentos partilhados…
Conceição, também ela, já idosa de 82, dividia-se entre gestos
de despedida e resilientes palavras e movimentos de conforto para mais um momento
de reflexão.
- lembro-me de todos. deixa estar. a tua mãe, ah…pois é…a tua
mãe…- e colocou pensativamente o auscultador do telefone. a máscara do oxigénio a
interferir-lhe nas preocupações. quanto tempo com aquela bilha, seria para sempre? quanto o para sempre? Dias, meses, anos… deixaria a sua já única irmã órfã de
si. das outras, iria ao encontro. reconhecê-las-ia
na luz perpétua do ascender?…
mais uma vez a cor azul, não do céu, mas da sua pele, do
rosto, os lábios escurecidos, um fio de sangue enegrecido a despontar ao canto
da boca levemente inanimada, o corpo a prostrar-se…com um sereno adeus. E lá se
foi. ao som dos responsais mais afinados que alguma vez cantaram aquelas servas
do Senhor. os salmos de escolhidos polifónicos. De profundis. com sinos a repique.
um convento a enlutar-se. constrangedora inscrição fúnebre colada ao portão
encimada de pequenina cruz negra, conforme o catálogo de impressão doméstica de
qualidade. juntos à igreja do santo milagre. um pingo de sangue escorrendo
saudade.
a vida e a morte, de braço dado, em cada memória humana. mentora
além tempo. esquife da vida, simples e claro, repousando no ventre de um relvado
descampado, desenhado a lápides regulares e por um convento rústico amenizado
pelo vento. romantismo a perder de vista…sem morte anunciada.
um lugar celebrado nas linhas viageiras de quem amou aquela
religiosa gente. como Garrett quando se foi instalar nos paços do seu amigo
Passos Manuel há precisamente cento e setenta anos. e ainda lá está na sua
prolongada visita… a contar a história da encantadora joaninha em contraluz
e do frade distante que não ousou apadrinhá-la… a sua e as nossas velhinhas a
fiar, contemplando o infinito e mais além na sua cegueira para o mundano. as
nossas queridas tias freiras a fiar as constelações da abóbada reluzente hospitaleira das terras de Santarém.
famílias de um Deus maior abraçando colinas e em devaneio
pelo famoso vale insuflado de vida e de pasto luminoso.
frondosas árvores brotam da mesma terra lindos ramos floridos
com o húmus de esta amada humana gente.
descansa em paz, tia.
Santo Milagre, 21 de fevereiro de 2013
A tua sobrinha Rosa