sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

às nossas tias freiras


UMA VIDA CIRCUM-NAVEGADA

ouve-se um pingar no ralo da banheira. rodas abafadas a um certo longe que deslizam em alcatrão de gravilha molhado, escorregadamente. parecem brincar na chuva. intervalos de um ténue zumbido de ausência. quase silêncio. ponteiros marcham certeiros a compasso, ainda sonolentos da manhã. a circum-navegar a vida. mais um ciclo de dia. sereno e cinzento. alguma vidraça remexe-se. não sossega, caramba. um assobio humano conhecido repetido. de dono ansioso. afasta-se. então dispara uma sirene. é uma ambulância aflita. quem levará nela?

- ainda não quero morrer, doutor – declarava uma combalida senhora bem parecida, apesar de não ter placa, deitada numa maca, com alguns tons azulados de mau prenúncio. como o homem gosta de presságios e espíritos… quase vive em pré-anúncio de morte declarada. não receemos: é o momento mais democrático na vida do ser humano.

- é melhor não entrar. vão lá ter. – aconselhava o paramédico. recatadas senhoras, freiras de congregação, entreolharam-se. a nossa querida irmã Conceição… falecer por falecer, preferiam-no lá nos seus austeros, mas cómodos aposentos. Deus o permitirá…

entubada, com bilha de oxigénio, prostrada, a enferma falou a espaços no percurso até ao hospital. um corpo imóvel, mas de cabeça com ânsias na vida…

num quarto deitada, ia ouviando ao longe o som daquela pequena cidade ribatejana. um pequeno pluvial miudinho aguçava-lhe a nostalgia da família. então via a irmã deitada ao seu lado. na sua direita. qual das irmãs? sorriu-lhe. faziam companhia uma à outra, na saúde e no recolhimento da doença.

- bom dia, irmã Conceição. melhorzinha? – era a médica de serviço.

- claro que sim, senhora doutora. pronta para ir para casa. já me consigo levantar. – respondia-lhe, um tanto ansiosa e quase infantil.

- bom, bom. vamos lá ver isso. – e auscultava-a, media-lhe os níveis de oxigénio, fazia-lhe umas perguntas clínicas e invadia-se no seu passado conventual… de sabor a mistério e ficção. ora, mais outra viagem à sua gaveta das memórias. será que a senhora doutora saberia se quando morrer as poderá levar consigo?

- ó irmã, Deus poupa-se às nossas memórias! convida-nos, mas deixa-as portas fora, a arejar.- riram-se.

após a hora da visita, sentiu-se sonolenta. vozes repentinas metralhadas no corredor sacudiram-lhe a modorra quase destituía do querer participar em mais um final de dia, naquelas familiares rotinas de terço e salmos louvados. como andarão, na escola, os seus meninos do centro paroquial, e os ainda mais velhotes da Misericórdia de tantos pensamentos partilhados…

Conceição, também ela, já idosa de 82, dividia-se entre gestos de despedida e resilientes palavras e movimentos de conforto para mais um momento de reflexão.

- lembro-me de todos. deixa estar. a tua mãe, ah…pois é…a tua mãe…- e colocou pensativamente o auscultador do telefone. a máscara do oxigénio a interferir-lhe nas preocupações. quanto tempo com aquela bilha, seria para sempre? quanto o para sempre? Dias, meses, anos… deixaria a sua já única irmã órfã de si.  das outras, iria ao encontro. reconhecê-las-ia na luz perpétua do ascender?…

mais uma vez a cor azul, não do céu, mas da sua pele, do rosto, os lábios escurecidos, um fio de sangue enegrecido a despontar ao canto da boca levemente inanimada, o corpo a prostrar-se…com um sereno adeus. E lá se foi. ao som dos responsais mais afinados que alguma vez cantaram aquelas servas do Senhor. os salmos de escolhidos polifónicos. De profundis. com sinos a repique. um convento a enlutar-se. constrangedora inscrição fúnebre colada ao portão encimada de pequenina cruz negra, conforme o catálogo de impressão doméstica de qualidade. juntos à igreja do santo milagre. um pingo de sangue escorrendo saudade.

a vida e a morte, de braço dado, em cada memória humana. mentora além tempo. esquife da vida, simples e claro, repousando no ventre de um relvado descampado, desenhado a lápides regulares e por um convento rústico amenizado pelo vento. romantismo a perder de vista…sem morte anunciada.

um lugar celebrado nas linhas viageiras de quem amou aquela religiosa gente. como Garrett quando se foi instalar nos paços do seu amigo Passos Manuel há precisamente cento e setenta anos. e ainda lá está na sua prolongada visita… a contar a história da encantadora joaninha em contraluz e do frade distante que não ousou apadrinhá-la… a sua e as nossas velhinhas a fiar, contemplando o infinito e mais além na sua cegueira para o mundano. as nossas queridas tias freiras a fiar as constelações da abóbada reluzente  hospitaleira das terras de Santarém.

famílias de um Deus maior abraçando colinas e em devaneio pelo famoso vale insuflado de vida e de pasto luminoso.

frondosas árvores brotam da mesma terra lindos ramos floridos com o húmus de esta amada humana gente.

descansa em paz, tia.

                                                                 Santo Milagre, 21 de fevereiro de 2013

                                                                                 A tua sobrinha Rosa  
  

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