«E no seio de um imenso silêncio montanhoso, repentinamente vibrou um visceral uivo distante cujo eco, mais penetrante do que o som original, se desdobrou noutros ecos, se fundiu com eles, formando uma espécie de mântra gutural extraordinário poderoso, captado não pelos ouvidos de São sentada em lótus numa cordilheira qualquer, mas pelo seu corpo búdico. E saudou em pensamento ao seu irmão lobo.»

 

                          Cordilheira mântrica/Rosa Maria Duarte/Óleo s/tela/55x38

«Sob um luar de quase dezembro, São pressentia a cidade a adormecer aos poucos, os transeuntes e os carros a escassear, pequenos canteiros junto às estradas a sossegar as ervas pisadas de rua junto às magras árvores em crescimento. Se São dormitava numa intermitência de enlevo e experiência espiritual, sentia-se sem se ouvir. Mais um silêncio suave de noite. Então São deixou o seu corpo entregar-se e escorregar pelo túnel escuro do adormecimento e foi empreender nova ronda por outra ala hospitalar...»

 

«O cair da água poderia soar se caísse naquele vazio de fonte a um quase abandono, não fosse o amor do canto do melro anunciar a saudação de dona São que, de saída, levava uma emoção viva de comunhão renovada com o seu pequeno quotidiano. Para respirar, bastava-lhe aquele ar seco e frio de outono de uma cidade que, em tempos, fora muito rústica.»

 

«Não era tarde, mas o sol já se ia pondo... Pesava uma atmosfera fria e nostálgica, com aromas a castanha assada e bedidas quentes. Era final de novembro naquele jardim onde os galos cantam, os patos chapinham, os cães inquietam-se presos por trelas, as luzes de natal assinalam a chegada do inverno. Boas e menos boas as memórias que daquele lugar de Lisboa qualquer pessoa podia e pode ter...»

 

«A pequena Sãozinha gostava de ajudar, e fazia-o com gosto e alegria. Gostava de ir para o campo com os pais e as irmãs, ainda noite, ajudar nas regas que estavam combinadas assim com os vizinhos. Gostava de animar as pessoas e os bichinhos à sua volta. A cada bonita joaninha punha-se a cantarolar 'joaninha voa, voa, que o teu pai foi a Lisboa, buscar uma saca de farinha para a nossa joaninha'. E esquecia-se do resto, perdendo-se pelo labirinto do milheiral a pular e a levantar a cabeça para olhar entre as maçarocas as estrelinhas do céu. Quando chegaria a de Belém?»

 

Marcamos os nossos pés na areia, mas o mar traz de longe a intemporalidade numa areia beijada pelo momento...

 

Fastread poetry

 Somos as mães a embalar essa meninice de cada memória

de cada presente franzindo ventos de longe a frente geada

de gente germinada pelo som da natureza em renovação. 

«A sua sombra crescia pelo passeio quando São deu por si a levitar. Em casa, depois que adoeceu, já não se levantava. Tinha que contar com os outros. Mas o seu espírito, enquanto o corpo dormitava na penumbra do seu quarto, passeava por jardins e calçadas que nem conhecia, a apanhar o fresco das manhãs frias de novembro. As lágrimas de orvalho sentia-as fora de si, enquanto aproveitava aquele milagre divino num ar brumoso. O sol ia subindo no céu e São resolveu regressar, olhando-se com respeito e comoção pela vida que levara, de frente para um corpo cansado, sereno, envelhecido pelo tempo. - Mãe. - Uma voz suave acordou-a.»

 

- Olá. Eu sou aquele gato branco que gosta de miar e visitar todos os quintais. Neste quintal mora um gato preto, parece ser bom vizinho, muito caladinho. Somos como os humanos, todos diferentes, todos iguais, mas nós com 7 vidas. Somos sempre fofinhos, não é? É tão bom fazer malandrices e continuarem a gostar de nós.:) 70x7 é o fado do perdão.

 

Ficar ou partir é escolha é destino é missão é evolução é renovação é intuição é vida é vontade é universo é teosofia.

 

«Durante as horas noturnas da sua prostração, São viveu uma plenitude espiritual, não pelo seu pensamento, que às vezes sobrepunha imagens reais a outras confusas, mas numa profundidade silenciosa de certas paisagens ao lusco-fusco, uma flutuação de sentidos de aspiração espiritual, ao ritmo de alguma vitalidade pálida, pouco percetível, mas ainda sanguínea. Olhava o seu corpo, a sua vida como se fosse de outrém, mas alguém lhe disse para voltar à luz da cidade onde vivia. Fazia falta no mundo à sua volta.»

 

A paz e a alegria só são possíveis se houver espaço interior em cada um de nós para compreender o outro.

 

- Porque não te sentas um pouco? Vamos conversar sobre os teus projetos. Ah, podes mas quando terminar a web summit? Combinado. Eu fico mais uns minutos. Vou folhear uns livros...talvez de poesia...ler aquela ode à paz...

 

Sousa Martins ali é apenas uma estátua rodeada de sentimentos, fé e dizeres dos seus crentes. Todos os dias naquele jardim. Nem tão pouco uma pequena brusca decadência física...Como seria ele no apogeu da sua serenidade humana, alguém ativo, audaz, interventivo, compassivo e teria agora rugas no contorno do rosto, uma cor baça no olhar, talvez à mercê da vontade de outros médicos, talvez para quem o tempo não surgiria como um abismo que às vezes nos apavora...

 

Deve ser o Magritte que continua, lá do alto, a desenhar lindas nuvens penduradas nas casas e nos carros.

 

Fastread poetry

 Nem sempre o lugar é natalício nem vitalício nem o início

do querer saber viver sobreviver e reconhecer o sentimento

de chegar de ficar de partir sentir que a terra ainda é a nossa.

O segredo da vida está bem guardado numa caixa junto à árvore do paraíso. A chama ígnea de cada um é invisível, muito poderosa e só na intimidade do silêncio e da meditação a (re)conhecemos.

 

Fastread poetry

 Vamos brincar à paz à infância à velhice à quadra natalícia.

Vamos brincar à poesia à seriedade à alegria à boa amizade.

Vamos brincar à pele vermelha à pele castanha e à amarela.

Vamos brincar à brincadeira de ser crescido e talvez feliz.

Somos bichinhos da terra tão pequeninos perante a força dos braços da natureza que ora nos eleva até aos céus para olharmos as estrelas ora nos cobre de musgo à entrada de um presépio com burrinhos...

 

“Quem não limpa a sujidade com a qual a fonte da sua inspiração pode ter sido contaminada por um inimigo, não preza essa sua fonte de inspiração, nem se honra a si mesmo. Quem não defende os perseguidos e os indefesos, quem não compartilha a sua comida com os famintos nem tira água do seu jarro para os que têm sede, nasceu demasiado cedo sob forma humana. Repara nesta verdade que está diante de ti.”

 

Será que este veículo é anterior a 2007?

 

                          Há carroças no fado/Rosa Maria Duarte/Óleo s/tela/55x38

Somos espuma a brincar à beira-mar com um vento norte a desenhar-nos lábios brancos de neve marinha. Falamos com hálito de maresia e timbre ondulado com vibrato fadista.

 

Fastread poetry

 Aquele sono agitado, frases altas, ecos de outro tempo

 recuperava o sentido o tempo a lucidez o medo humano

um caminho longo de lábios hesitantes e a pele cansada.

«Saber ser cada dia é agradecer com humildade e elevação o milagre da vida»

 

                                     A palavra é partilha/Rosa Maria Duarte/Óleo s/tela/41x27

Basta um pouco de céu a despontar no horizonte para despertar a vontade de descobrir o mundo de cada um de nós.

 

E se fôssemos como aqueles cogumelos que nascem e crescem juntos? À chuva, ao sol, à lua, ao homem, até que a morte nos separe (ou não)...? :)