Desde menina que me prendo a ouvir música, a dançar, a cantarolar.
Acho que a música foi o meu mais remoto refúgio.
Eu gostava de cantar para os meus irmãos bebés.
As minhas amigas achavam invulgar eu falar e cantar para os animais. Quando aparecia um canito ou um gatinho, punha-me a simular uma conversa cantada. Elas riam-se.
Acho que o primeiro idioma pelo qual me apaixonei foi a língua italiana, precisamente por senti-la cantada. Depois vieram naturalmente outras...
O meu pai gostava muito de musicais de cinema. E eu aprendi a gostar também. Fred Astair, Frank Sinatra... A ópera é que nem toda me agradou, a que pude e quis conhecer... Gostava mais de circo com encenações bem feitas de música tocada por palhaços com graça, acrobatas, orquestras para crianças... Gostava muito do Sequim d'Ouro.
Os primeiros coros a que pertenci foi na igreja. Depois foi em contexto escolar. Ainda pensei em pertencer a outros, mas...
O meu pai quando estava a barbear-se na casa-de-banho, punha-se com frequência a trautear, ora «Não Venhas Tarde» (para a minha mãe), ora «Nem às Paredes Confesso», o Toni de Matos e outros.
O natal dos hospitais era um programa que gostávamos muito de ver. E os festivais da canção. Dávamos a nossa própria pontuação. Ficávamos indignados com os resultados finais (sobretudo dados a Portugal).
Nas férias, quando íamos a pé a caminho do rio, na Vide, o meu pai punha-se a cantarolar: «o comboio vai a subir a serra, parece que vai, mas não vai cair...». Aprendi a fazer o mesmo. O «água fria da ribeira, água fria que o sol aqueceu...». Ainda hoje.
Enquanto criança, e mesmo depois de monitora na colónia de férias Rogério Cardoso em Sintra, aprendi muitas canções para animar grupos.
Atuei no espetáculo do fogo de campo, com a minha irmã, a cantar «eu venho da Califórnia, tocando o meu pucarito, vou contar a minha história, mais o meu cavalo amiguito. Eu sou vaqueiro...», tudo com coreografia sincronizada a duas. Foi na colónia que conheci a Conceição Ribeiro, fadista, que era mais velha do que eu (e ainda é) e que também é de Alcântara.
Nessa altura as aparelhagens de música eram muito caras e muito sensíveis. Acabei, por força das circunstâncias, por herdar um rádio-gravador do meu irmão mais velho, quando ele foi trabalhar para o Algarve.
Fiz então a minha primeira gravação de voz: a «Pedra Filosofal» do António Gedeão e música de Manuel Freire. Não desgostei do efeito.
O 25 de abril foi o boom da música. E eu não deixei que isso me passasse ao lado. Poemas de intervenção bem musicados. Liberdade de pensamento em forma ritmada.
Falávamos e cantávamos entre nós, nos intervalos com as colegas da altura.
O Fernando Tordo e o Ary dos Santos foram a uma sala de aula da Ferreira Borges declamar e tocar para quem quisesse. Creio que a divulgação não foi muito eficiente, porque a sala não estava cheia. Foi um momento único!
A minha irmã |
No Centro social do Calvário, onde a minha irmã trabalhou, também se faziam festas, com cantoria, para as crianças. Eu alinhava. A minha irmã cantava e tocava guitarra (que o meu irmão mais velho lhe ensinou), a Lurdes, colega que também lá trabalhava, cantava e eu ajudava. Os nossos irmãos mais novos frequentavam o centro. «Era uma vez um rei com uma grande barriguinha, comia, comia, e mais fome tinha».
Eu resolvi, por influencia do folk e do Bob Dylan, começar a tocar harmónica. Entretinha-me no meio da serra a encher o ar com aquele som arrastado e dançarino.
E havia ainda o teatro. O TIL divertido para as crianças que ocupou o espaço do centro. Com muita música.
As encenações toscas em casa dos meus pais. As representações ensaiadas com os meus filhos, com grande empenho, que fizeram a delícia dos nossos convidados. Giros momentos cantados. Histórias também com fantoches.
O fado já estava a fervilhar dentro de mim. Há quanto tempo, nem eu sei bem...
Quando comecei a frequentar gradualmente a boémia de Lisboa para um trabalho académico, o monstro da saudade consentida saiu sem aviso e nunca mais recolheu ao silêncio amordaçado.
«O fado, esse monstro intelectual que é tudo» (Fernando Pessoa)
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