3.1. O riso branco e a ironia da morte
Só quem voltou para contar é que pode rir-se
assim, garante. […]E ri-se, ri-se muito a cada página, mostrando os dentes como
serras. A ironia da coisa, só a percebeu depois de ter despejado as palavras
todas no papel e ao escolher o subtítulo Valsa Lenta, saboreado a cada passo,
com o braço a fazer figas por trás da cintura da morte. Explica: “A ironia do
relato não foi propositada. Só depois percebi que há humor na morte quando
vista à distância.” (in Visão nº 217,
de 15 a 21 de maio de 1997)
O humor e o riso sempre foram poderosos instrumentos facilitadores
de interação e de afirmação de vontade humana. Na criação da obra de arte é
fundamental o riso na liberdade do indivíduo para a sua construção pessoal e
social. Esta vitalidade é multifacetadamente explorada pelo artista, que muitas
vezes assume um papel importante na consciência crítica de um país ou de uma
cultura. Não só o riso na cultura da vida como na cultura da morte. Segundo Friedrich
Nietzsche, o Homem é o animal mais melancólico, mas também o mais alegre. A
vida para o que ri da morte quer ser encarada diferentemente.
No homem, contudo, há mais de criança do que no jovem, e
menos tristeza: compreende melhor a morte e a vida.
Livre para a morte e livre na morte; divino negador, quando
já não é tempo de afirmar: assim compreende a vida e a morte.
Não seja a vossa morte uma blasfémia contra os homens e
contra a terra, meus amigos; eis o que exijo da doçura da vossa alma.
Vosso espírito e vossa virtude devem inflamar até a vossa
agonia, como o arrebol do poente inflama a terra; senão a vossa morte será
malograda.
Assim quero morrer eu para que, por mim, ameis mais a terra,
meus amigos: e eu quero tornar-me terra, para encontrar o meu repouso naquela
que me gerou. (NIETZSCHE, Assim Falava
Zaratustra, 1998)
“Rir até que a morte nos
separe”, como no título de uma peça de teatro da Associação Cultural de
Recardães. Agora também o título de Jonathan Tropper Até que a morte nos una (J.TROPPER, 2015). É a ligação à vida
segundo uma atitude talvez mais corajosa e entusiasta, pretensamente de sua aceitação
ou de desdramatização, mesmo que momentânea e circunstancial, frequentemente
por razões de melhor sociabilização.
Aqueles
que vão respondendo aos apelos criativos e desenvolvem o seu talento artístico,
que todos temos latente, vão podendo desfrutar do privilégio da observação
interior de si a partir de cada experiência inédita, sendo o artista um útero
da fecundação de ideias. Mesmo o escritor da morte dá vida às palavras.
A
arte é uma vivência. É uma manifestação de experiências. Em potencial incubação
de expressões. De diversíssimas interpretações da realidade. Da tristeza, com o
humor. Como a previsibilidade da morte. É exemplo o epitáfio do ator Raul
Solnado, pensado pelo próprio: “Aqui jaz Raul Solnado, muito contra a sua
vontade.”
O
que é mais sagrado para um humorista é a liberdade. E a doença aprisiona o Homem
na dor e na incapacidade. José Cardoso Pires sentia-se incomodado com a ideia
da aproximação da morte com dor e em situação de humilhação. E o riso
permitiu-lhe encarar a vida de forma diferente. Porque a vida para o que ri é
menos pesada.
Óscar
Wilde (Pensamentos de Óscar Wilde,
2011) entendia que a vida já era séria demais, para falar dela sempre a sério.
Se todos vamos morrer, porquê encará-la de forma chorosa ou sisuda. O homem
humorista, quando é religioso e aceita a existência de um deus, é a de um deus
que ri.
António
Alçada Baptista tem uma obra que se intitula precisamente O Riso de Deus. O autor acompanha a vida de Francisco, o personagem
central deste romance, nas suas deambulações pelo mundo dos acasos e encontros
e da intimidade de algumas mulheres cúmplices da mesma procura, e instaura uma
forma de questionamento radical que decorre do facto, inédito na sua escrita,
de ser toda uma vida posta em balanço, tendo por contraponto esse limite que é
a morte. Acreditando em Deus? Possivelmente. Mas um deus que ri, que joga, um
deus apaixonado pela pura alegria de existir.
Em
abono da verdade, creio poder afirmar-se que o catolicismo contemporâneo nasceu
do riso do Papa João XXIII, da sua bondade, ao convocar o Concílio Vaticano II
e promover a liberdade religiosa e o ecumenismo.
O
Homem, na sua história mais remota, procurou proteger-se do medo do mundo e da
morte através das práticas religiosas em penitência, logo evitando o riso, por este
ser entendido como profano e aprazível. No fado português, por exemplo, que é uma
expressão musical internacionalmente reconhecida, embora também tenha um pendor
religioso e, sobretudo, de sofrimento, quando se refere ao riso, não se retrai
e dá com frequência destaque ao riso solto e franco. («Lá vai a Rosa Maria que
é a alegria desta ribeira/ouve e ri à gargalhada qualquer piada por mais
brejeira” fado: a Rosa da Madragoa
com letra de João Dias e música de Moniz Pereira).
Curiosamente,
os sufis do Islão são considerados a gente que mais ri.
Ao
longo da história da literatura ibérica são muitos os exemplos clássicos da
música e do teatro em que o riso é reação libertadora do medo, apesar da
melancolia característica da gente do mar e temente a Deus.
São
de valor inestimável os tratados nacionais e estrangeiros sobre o papel do riso
na literatura peninsular e europeia.
O
riso é uma habitual ferramenta de descompressão na interação com os outros e na
atitude que se quer facilitadora perante os problemas quotidianos. Mesmos face
a dramas, como na doença. Daí que o riso seja algo quotidianamente etiquetável,
consoante a expressão mais ou menos espontânea ou doseada de quem o produz. E
as cores são popularmente associadas ao riso. Como o riso amarelo de quem não
tem vontade de rir…
A base teórica dos estudos desenvolvidos
por Mikhail Bakhtin, acerca do riso e da carnavalização, e por Linda Hutcheon,
evocam os conceitos que remetem, também, para o discurso carnavalizado, tendo
como eixo norteador a crítica social, evidenciada através da paródia.
Nas
obras de Cardoso Pires e Sampedro, o riso que aí é descrito é mais o branco,
porque há uma urgência em rir para afugentar a “mulher de branco”. Até pela
desmemória do escritor português, pela incerteza do sucesso operatório das
enfermidades dos seus colegas de quarto; pela condição física indolor de
Sampedro nos Cuidados Intensivos. “[…] me he perguntado, mientras estoy escribiendo, si no será que en
el Monte Sinaí he adquirido una nueva memoria en lugar de la habitual, lo mismo
que la serpiente cambia de piel entera y deja atrás su camisa” (SAMPEDRO,
1998:36)
Segundo
Bakhtin, neste caso “é como se víssemos um vestígio do riso na estrutura da
realidade a ser representada, sem ouvir o riso propriamente dito” (BAKHTIN, 1982:142).
Na revista Ler de outubro 2008, a escritora e
jornalista Filipa Melo escreveu um texto In
Memoriam a José Cardoso Pires que subintitulou «Ars moriendi: um riso branco». Esta expressão latina «ars
moriendi», que significa a arte de morrer, foi originalmente usada em dois
textos latinos do século XV que foram guias da tradição ocidental para ensinar
como morrer.
O ato de
escrever sobre a morte é uma forma por excelência de refletir sobre a arte de
morrer. Daí que faça sentido falar da arte de morrer em De Profundis, Valsa Lenta, porque havia alguma consciência da
desmemória de si num encontro de serenidade natural.
O texto de
homenagem de Filipa Melo parte da proposta de não se procurar nada e se achar
tudo para que José Cardoso Pires seja lido e não contado, passados os respetivos
anos após a sua morte. A sua escrita, filha do jornalismo e de algum modo da
influência de escritores norte-americanos como Hemingway, continua a falar por
si.
Linda Hutcheon (1985) aborda a paródia que é um
ingrediente evidente no episódio dos companheiros de quarto de Cardoso Pires,
qual estratégia retórica utilizada para despertar a consciência do leitor,
neste caso, para confrontar o mortal com a doença e com a morte. A paródia, de
acordo com a esta autora, é um processo integrado de modelação estrutural, de
revisão/reexecução, inversão e “transcontextualização” – formas de reciclagem
artística – de obras de arte anteriores.
No âmbito da
temática académica do retorno ao ato da escrita, é conscientemente uma procura não
definida da genologia deste testemunho.
Memória, Memória Descritiva e,
daí, Memória duma Desmemória poderia chamar-se a este relato se o rigor
científico me tolerasse um título de metáfora tão esguia e o gosto da escrita o
não rejeitasse por exibicionismo fácil. Todavia, culpa minha, foi na memória ou
na tragédia da memória que, com maior ou menor erro, concentrei o acidente
vascular cerebral que acabo de redigir. Se esse enfocamento é aceitável do
ponto de vista neurológico não sei, mas foi a experiência sofrida que mo ditou
na interpretação forçosamente diletante em que a tentei descrever. (PIRES, 1998:65)
Auge da maturidade
literária que não é proporcional ao tempo de vida, é ela mesma variável e
discutível, seja mais aos quarentas como em Fernando Pessoa, aos setentas como em
José Cardoso Pires ou aos noventas como em José Luis Sampedro.
Filipa Melo
refere-se ao «modo josé», pois é um autor que sempre foi avesso ao modo indireto
de dizer as coisas. Como também José Luis Sampedro, no seu inseparável jeito interventivo
de economista da igualdade social.
Com um caráter
vertical invejável, José Cardoso Pires teria «pavor do ridículo literário», como
um reflexo do «nojo» que sempre sentiu pela pequena burguesia, de que
descendia. Na sua linguagem, rejeitava o barroco, a redundância, o equívoco e o
medíocre, porque os associava à deferência graxista, à genuflexão e ao
salamaleque. Os seus livros falam da dignidade e desse esforço no ofício da
escrita, de uma procura contínua de «conta justa, pincelada sem alarde». Com
humor, q.b..
Corvos santificados, mártires à maré e doutores heréticos a
receitarem milagres, espécies destas só em Lisboa. É um povo de cais e fado a
cavalo dum diabo complacente, a gente que aqui se faz. Por isso, o à-vontade
com que se junta na mesma cama o pecado com a virtude e o engenho com que sabe
por uma vírgula burlesca numa estória de má sina. Por pudor é capaz de dizer
amizade em insulto enternecido, por desdém agride à maneira de elogio:
"Chico esperto, mãozinha bruxa", chama ele ao traficante desalmado.
No entre-suspeito ouve de manso, pois sim, está bem abelha, e fala pianinho
para prevenir e aclarar. Mas se o caso não entra nos acertos é capaz de perder
a paciência e então, "gatos ao mar", arranca em discurso de
finalmente.[...] (PIRES, 1997:42)
Por isso ele
corrigiu os seus livros até à exaustão, “até à boca da impressora”. E o seu bom
humor e ironia, apreciados por muitos, pelos seus colegas de escrita, como
António Lobo Antunes, Jorge Amado, e tantos outros, não lhe comprometeram o
tempo de sobriedade no recolhimento voluntário e necessário para a sua escrita.
Um dia foi
chamado a um momento difícil de contingência humana, confronto com a commedia della paura, “uma pega de caras
da morte concretizada por uma razão trocista.” Um AVC.
Era um
escritor que explorava o estar consigo próprio e a consciência de si. Escreveu
sobre como se via, escritor fumador, a pensar ao espelho, a «ver para lá» e a «ver
para trás» e a duvidar-se (E Agora, José?,
1977). Já com as duas filhas, uma casa ao lado da igreja de S. João de Brito, em
Alvalade, veio a comprar a casa da Costa da Caparica só para escrever, num
isolamento voluntário, virado para o mar, que tanto apreciava. Ele sabia que a
vida demasiado social, como a de Hemingway, poderia condenar a sua carreira de
escritor.
A “revolução
dos cravos” fora-lhe muito cara no que significou de direito à liberdade. E o seu
romance, O Delfim, já então publicado,
constituiu «uma crítica feroz ao saudosismo português», no que de revivalismo
fascista alguém o experimentou.
A vida
fora-lhe sempre rica em experiências:
Depois de ter sido - fôlego - comissionista de
drogaria, apontador de cais, praticante de piloto sem curso expulso em apenas
sete meses, agente de vendas, correspondente de inglês, intérprete de uma
companhia de aviação, «copy-writer» de publicidade (fonte para Alexandra Alpha, a protagonista do
romance homónimo que motivava nele um «particular orgulho»), editor,
jornalista, cronista, professor universitário de Literatura Portuguesa e
Brasileira, Cardoso Pires, com dez livros publicados, vive só da escrita. Ao
espelho, José, «um gato escaldado por cinquenta anos de água benta que mia
dobrado a adivinhar a chuva», pergunta: «De resto quem te ouve? Quem dá crédito
à tua liberdade?» (MELO, Filipa, in revista LER,
«José Cardoso Pires in Memoriam», 2008)
O riso face
à morte é lúcido e ironicamente indignado.
O seu amigo
Alves Redol, com quem chegou a passar algumas das suas férias, morreu solitário
nos seus ideais e fê-lo pensar e lamentar um país que não escuta os seus
escritores, porque são considerados «animais incómodos». Em vários textos (em Dispersos 1, Dom Quixote) insurgiu-se
contra a «estratégia do requiem», o «elzevir necrológico». O elogio artificial
aos mortos. Mas Filipa Melo interpela-o:
Mal sabes, agora, José, quando te questionas sobre
quem te ouve, que virás a ser um dos escritores portugueses mais celebrado em
vida, com o reconhecimento e os prémios nacionais mais importantes, e o único
em tão estreita, e sarcástica, comunicabilidade com o tempo que será capaz de
escrever sobre a morte própria, a fazer-lhe figas como os gatos. (in Revista Ler, outubro/2008)
Ao espelho,
o escritor vê-se e vê que «o mal é esse». A manipulação das coordenadas temporais
e a busca de «um tempo português» («O Tempo Dentro de Nós», Diário de Lisboa, 6.5.1970). O tempo
circular «inventa[-se] quotidianamente para iludir a morte», tal qual o
trabalho da escrita. Filipa explica isso:
Na oficina de Cardoso Pires, o tempo recusa a vida
percorrida «de bloco-notas na mão», é antes feito da seleção da memória «das
coisas, dos seres, dos cheiros» que permite a realidade objetiva e os
sentimentos. É tempo sem Deus, tempo honesto, suado (dirá a Alexandre Pinheiro
Torres: «o que se escreve sem esforço ninguém o lerá com gosto»), responsável,
individual, em aproximação contínua ao que António Lobo Antunes, um dos dois ou
três amigos íntimos do escritor, definiu como um «núcleo impartilhável de vida,
cheio de sombras e recessos, que as tuas personagens nos traziam como que por acaso,
no desleixo vigiado sem o qual a elegância não existe» (crónica «Para José
Cardoso Pires, ao ouvido», Público,
24.1.1999).
Algum tempo
de recuperação e José Cardoso Pires retorna ao ato da escrita, reconstruindo a
sua experiência mnésica em De Profundis,
Valsa Lenta. Na primeira pessoa. O «Eu» transformado «noutro alguém». Na manhã
de 12 de Janeiro de 1995, ao jeito de cartilha «Como te chamas?», José
responde: «Parece que é Cardoso Pires.» Foi internado de urgência no Hospital
de Santa Maria, em Lisboa, onde lhe foi diagnosticado um acidente vascular
cerebral (AVC) de gravidade acentuada, provocado por um coágulo de sangue que
se alojara na zona nobre do cérebro, o hemisfério direito. Durante oito dias,
embotada a memória, em estado de afasia, o escritor despersonalizou-se, «tudo
sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal».
Entretanto, um telex da agência Lusa descreve o seu estado clínico como
correspondendo a uma «morte cerebral»; ele chamar-lhe-á depois «branca e
amável», «branca e nula». Irónico, cita uma das frases que lhe soa bem: «A
notícia da minha morte foi um exagero.» (Mark Twain)
Em 1997,
Cardoso Pires escreve De Profundis, Valsa
Lenta compelido talvez por aquele fenómeno que os técnicos chamam
«síndroma de Lázaro». O retorno espontâneo da circulação, após tentativas
frustradas de reanimação. O resultado é este registo literário que é uma experiência
de quase-morte e a recuperação das capacidades cognitivas e discursivas.
Sendo a maior (e mais instintiva?) proeza técnica do
escritor, uma competição desenfreada entre o Eu e o Outro de si (a primeira e a
terceira pessoas verbais), o livro exibe a condição humana na mais crua luta
pela sobrevivência e na mais profunda simbiose com o poder da imaginação. Para
uma morte branca, ao espelho, José convoca uma escrita de uma brancura
iluminada: «essa escrita branca foi sempre o meu sonho, uma escrita despojada,
uma escrita substantiva tanto quanto possível» (entrevista a Maria Teresa
Horta, Diário de Notícias, 11.7.1997).
No prefácio,
o neurologista João Lobo Antunes explica por que é «intrigante» este caso
clínico, um «testemunho impressionante de como o génio criativo floresce no
sofrimento». Perante a morte, o escritor portou-se como um marialva («Hemigway
disse: “[A morte] é mais uma Puta.” É isso. Pena que a definição não seja
minha.» - entrevista de Maria Leonor Nunes, JL, 21.5.1997). De frente para a
morte, José Cardoso, descarado, ri, com as suas gargalhadas comedidas, inesperadas
e nada católicas. Constrói na tragédia uma comédia negra, e põe a navegar uma
(des)razão surrealista.
“Satanás
deve-se fartar de gozar com os sinais de humor da morte. O que eu vi naquele
hospital, o que eu senti…tudo aquilo tem um humor terrível.” (entrevista a
Filipa Melo, revista Visão, 15/5/1997)
Após De Profundis, Valsa Lenta, Cardoso
Pires regressa ao jogo do tempo de vida. Nunca aquela que possa existir para lá
do tempo, mas a que põe em causa a sua duração. Como num jogo de miúdos, interroga-se
quanto tempo mais quer…
A preocupação é ontológica, de encontrar um caminho
para terra incógnita, sem dor, sem humilhação e sem metafísicas. Entre 1996 e
1997, conversamos por várias vezes sobre a morte. O que fica dessas conversas é
o caso humano, sui generis, p’rás
urtigas com a literatura, que só servirá para que ainda publique um «requiem» a
Lisboa, como se navegasse, como se navegasse, «ancorado à cidade que [o verá]
partir» (Lisboa, Livro de Bordo,
1997).
José Cardoso
Pires diz que: «A morte faz parte do cerco da vida. […] Não há imortalidade.
Morremos e morre tudo, não existe mais nada.» Aos 71 anos, agnóstico («a minha
mãe era uma católica fervorosa e, por isso, fui criado numa igreja um pouco de
campanário: aliás de onde saíram muitos agentes da Pide...»), Cardoso Pires despreza
a Igreja, que é apenas «uma entidade desmitificada, uma força social». Admite
que a vitória sobre a morte até pode ter surgido como «um milagre», mas um
milagre da Ciência, pela qual passou a sentir um fascínio «quase infantil,
quase idiota», e um feito de médicos como João Lobo Antunes, «grandes na sua
profissão, ligados à humanidade e ao coração e, ao mesmo tempo, com um humor
criativo». Preocupa-o o medo físico do fim porque «Não quero que me mantenham à
tona deste planeta a fazer figuras tristes»; rejeita os balanços de vida («até
porque não me convinha fazê-los») e escuda-se com «a ironia da morte».
Dizem-lhe que: «Está com um óptimo
aspecto.» Responde, sem pontos de exclamação, antes com uma monotonia
escarninha: «Pois, não estou morto.»
Humor negríssimo, iluminado entre ruínas, a lembrar o
diálogo a duas máscaras daqueles dois homens-corvos no quarto do hospital,
«dois passarões arruinados, a agredirem-se e sem consciência de que se refugiam
no humor para fugir ao medo que têm da morte». José tem a certeza de que
Satanás se farta de rir com estes dribles, se calhar até foi ele que lhe deu o
neologismo, «simoso», a arma pronta para designar todos os objetos, tudo à
volta, sem vulto, nulo: «Desligava-me das coisas porque sabia que só era capaz
de as fixar durante alguns segundos. Aceitava o mundo com um fatalismo
transigente.»
Apesar de
não se sentir inquieto no seu estado instintivo de aceitação, sabia que o riso
esgaçado dos seus companheiros de quarto era escurecido pelo medo e agravo da
morte. A sua doença começou com «um desmaio súbito», um sono misterioso que
acabou «como um tipo que põe o sujeito e o predicado numa frase, para a meio e
depois regressa para lhe colocar o complemento».
Regressou à vida com a sua fúria felina de fixar o
território, num encantamento agradecido, «como se estivesse bêbado, imensamente
grato a um mundo que me parece absolutamente maravilhoso». Em pouco tempo,
estava de novo a ver para lá («Pá, lava-me essas rugas. Riscam o espelho.») Um
tipo resiste e marra e escoiceia, «esse é [também] o modo josé de rosnar a
vida». Um tipo tem é que se documentar, estar preparado. Avaliar e golpear a
memória.
A memória
vasculhada no seu hábito das pesquisas, e quanto à morte não seria diferente.
Cardoso Pires começa por semear referências, bibliografia, recortes, espalha-os
pelo caos cifrado do escritório da casa de Alvalade. Algumas que já foram
citadas no capítulo da receção desta obra. Dá conta do que foi o início desta
viagem à desmemória com uma citação de Rainer Maria Rilke: «Oh Senhor, dai a
cada um a sua própria morte! Aquela que provenha da vida, em que conheceu amor,
sentido e desespero.» Está num ensaio que oferece os sublinhados que fez nele que
são uma chave para aquilo que também ele defende. O livro chama-se How We Die (Cómo Morimos, na tradução espanhola, da Alianza Editorial, de 1995)
e foi escrito em 1993 por Sherwin B. Nuland (SBN), professor de Cirurgia e
História da Medicina na Universidade de Yale, um registo de experiências de
quase-morte.
Cardoso
Pires destaca, em sintonia com a linha de pensamento de Nuland, a risco
fluorescente: «Sinto mais curiosidade pelo microcosmos do que pelo macrocosmos;
interessa-me mais como vive um homem do que como morre uma estrela, como uma
mulher abre caminho pelo mundo do que como um cometa cruza os céus. (…) O
mistério que me fascina é o da condição humana, não o da condição do cosmos.
(…) Nada me agradaria mais do que uma prova da existência [de Deus], assim como
de uma bem-aventurada vida futura. Mas, por desgraça, não vejo qualquer indício
dela na experiência de quase-morte.» O escritor fizera essa «marcha de
sonâmbulo iluminado» (De Profundis).
E concluíra que o ars vivendi é o ars moriendi (SBN), sem intermediários,
transitivos ou reflexos.
José Cardoso
insiste que o instrumento para a arte de morrer é a dignidade, acima de tudo.
Quem por ela levou a vida direito, tem direito a morrer com ela («Não há maior
dignidade na morte do que a da vida que a precedeu», SBN). Admira os médicos
que asseguram aos seus doentes uma morte fácil, acompanhada, lúcida, mesmo com
recurso à eutanásia ou ao suicídio assistido. Num documentário, dirigido por
Clara Ferreira Alves e emitido em 1998, assegura: «A Medicina não anda cá só
para curar, anda a ajudar a matar também, é fundamental. Por isso é que eu
tenho uma grande admiração pela eutanásia, eu tenho um grande respeito pela
morte ajudada, e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.»
José Cardoso
Pires morreu a 26 de outubro de 1998, após mais de três meses de coma profundo
provocado por uma paragem cardíaca e respiratória. De certeza que nesse dia, a
essas 2h30 da madrugada, um anjo sobrevoou a cidade: «Era louro e de asas
vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins
de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das
praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra.» (Alexandra Alpha).
Um tipo livre, o Pires, sem peneiras, amante de
universos marginais, tinha de acabar numa história rara, com uma geometria
misteriosa como a que desejou às suas personagens. A história é a de José, um
homem que escreve colado ao seu tempo, regista a identidade de um país sem cor,
autofágico e fechado, depois perde ele próprio a identidade num passe que
afinal lhe abre a desmistificação do processo maior, o da morte. Distinguem-no
lucidez, independência e coragem e, sobretudo, o riso, um riso branco até
contra a morte, que «é sonho e esquecimento» (SBN). De resto, e agora: quem te
ouve, José? Quem dá crédito à tua liberdade? E José responde, de profundis, com a sua voz cava: «Disse
e vivi, Acta est fabula.»
Os seus amigos, que são muitos, recordam a sua verticalidade e humanismo,
nomeadamente político-partidária. Alexandre Pinheiro Torres recorda-o assim:
É
esta frase que eu relembro de José Cardoso Pires (para ele a ouvir-me no
Panteão?): «Escrever é duro. É muito trabalho, Alexandre. Mas o que se escreve
sem esforço ninguém lerá com gosto.» Magister dixit. Até porque José
Cardoso Pires estava e não estava em Lisboa, cidade que ele adoptou, cantou e
celebrou. Mas, no fundo, a roê-lo, a região pobre de onde saiu (Peso de Vila de
Rei, Castelo Branco, Beira Interior), a que um dia chamou de «Sicília
Abandonada, deserto de pedras, padres e pedintes». (in Cardoso Pires por
Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote,
1991, 124 p., pp. 105-112)
Quando se
deu o 25 abril, apesar da luta continuar pela causa comunista que lhe valeu um
certo carisma, a sua saída do Partido foi aceite pelos camaradas, como nos
revelou o seu velho amigo Urbano Tavares Rodrigues.
José Cardoso
Pires foi muito apreciado por Urbano pelas exímias narrações das noitadas de
Lisboa, destacando a preferência do autor pelo livro Alexandra Alpha. Partilhou com José Cardoso Pires a sua paixão pela
liberdade. Para Urbano, Che Guevara foi o seu modelo de luta pela liberdade,
que conheceu pessoalmente. E também o nosso Salgueiro Maia.
A Lisboa de Cardoso Pires era, sobretudo, os lugares
que ele gostava de frequentar. Que entretanto muitos foram desaparecendo. O
próprio ambiente é outro.
Por
exemplo, o Bolero no Martim Moniz, o Conde Redondo, a Sé, o Parque Mayer, a cervejaria
Ribadouro (“uma baía de cascas de tremoços com canecas à mistura”). Na sua
escrita, às vezes sarcástica, a ternura é quase impercetível por pudor, (como na
sua própria vida), em que os humanos são prisioneiros do seu destino.
Em
Alexandra Alpha, por exemplo, estão
misturados todos os elementos geradores do fatalismo: solidão, erotismo,
álcool, violência, impotência e a morte.
Foi então que se ouviram na guitarra as notas do Fado do Arsenal: o bando
dos bêbados calou-se imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e
levantava a mão a impor silêncio e concentração.
Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a aclarar o
tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas. E pronunciou sem
soltar um som a letra do Fado do Arsenal, batendo os lábios ao ritmo do
instrumento e com as pausas, as voltas e os arrastados que mandava a regra.
Fazia os gestos sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado
fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem uma palavra,
sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som.
Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se a cantar.
Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som, lendo-lhe a letra nos
lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa única, disse François Désanti,
ouvir um mudo na voz dum coro de bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e
quase religioso. Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias
figuras ao mesmo tempo. (PIRES, 1987:111-113)
José
Cardoso Pires, escritor e homem de Lisboa, é um nome associado ao museu do
fado, ao portal do fado, ao livro de oiro de Alfredo Marceneiro, ao fado vadio,
ainda que haja registos pouco credíveis de que se tivesse manifestado no ano
1973 a desfavor do fado com letras de poetas eruditos, opinião que José Gomes
Ferreira e o artista plástico Júlio de Sousa teriam partilhado na altura. José
Gomes Ferreira, que numa das suas crónicas chamou às casas de fado “casas de
sofrer”.
Amália
Rodrigues foi apoiada nomeadamente pelos literatos Urbano Tavares Rodrigues,
David Mourão-Ferreira e Alexandre O’Neil. E ainda hoje são cantados os nossos
poetas em bonitos fados. Como Nuno Júdice por Carlos do Carmo.
Na
entrevista (em anexo 2.) com a filha mais velha do escritor, a Ana Cardoso
Pires, esta assegurou-me que o pai nunca se opôs à poesia literata como letra
de fado, bem pelo contrário.
Na
entrevista a Artur Portela em Cardoso
Pires por Cardoso Pires, José Cardoso Pires refere com orgulho que vivia na
rua Carlos José Barreiros, em Arroios, na qual em frente da sua porta vivia o
Manuel de Oliveira e logo ao lado o poeta Senhor de Brito, que era redator do
semanário A Canção do Sul e
companheiro de grandes fadistas muito aplaudidos daquele tempo como o Miúdo da
Bica, Frutuoso França, Natalina Bizarro, Mário José Paninho. (PEDROSA; 1999:23)
E no Jornal de Letras de 19 de novembro de
1997, Cardoso Pires reafirma o seu amor ao fado e à cidade de Lisboa, a
propósito da sua última publicação de crónicas Lisboa, Livro de Bordo.
Um
fado da vida que não pesa e que, encarado com sentido de humor, parece gostoso
e repetível. “En el umbral de
los ochenta años ya va siendo hora de empezar de nuevo.” (SAMPEDRO, 2013:84)
Viver em liberdade e
morrer em serenidade. Confidenciou José Cardoso Pires: “Se eu tiver aquela morte,
estou porreiro.” (PEDROSA, 1999:112)
Rosa Maria Duarte
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