No casamento da minha prima Beta |
Como sabem, nós éramos muitos irmãos. Hoje somos menos um, o mais novo...
Quando ainda éramos muito pequenos (os mais velhos, claro está, porque os três mais novos nasceram depois de mim), não podíamos passear sem adultos.
O meu pai passava muito tempo no mar. A minha mãe tinha um casamento conservador. Também nessa altura pouca gente tinha carro e quem conduzia era quase sempre o homem.
Por isso passávamos muito tempo em casa. Tínhamos televisão e a companhia uns dos outros. Mas não chegava. Para aliviar a cabeça à minha mãe, e não só, pedíamos para ir brincar um bocadinho para a rua. A pouco e pouco fomos conquistando a confiança da minha mãe.
Tínhamos, no entanto, uma prima, filha da minha tia Maria, que era mais velha. Ela tratava-me por piolho, porque eu era baixinha (em comparação com os outros irmãos mais velhos). Gostava de me pentear o cabelo.
Então a minha prima Beta, ainda solteira, levava-nos de vez em quando à praia. A minha prima Fernanda, da rua da Costa, às vezes também levava. Ainda se ia à praia de Algés, a primeira da linha de Cascais, que era uma praia razoável, frequentada por muita gente.
Mas à medida que fomos crescendo, fomos nós mesmos ganhando alguma autonomia e passámos a ir sozinhos à praia (embora a maturidade não fosse ainda muita...). Os nossos irmãos mais novos queriam ir connosco e nós gostávamos de os levar... Íamos normalmente para a praia de Carcavelos. Foi lá que eu, num belo dia de nevoeiro, apanhei uma insolação. Estávamos no princípio do verão. Eu sempre fui muito branquinha (a minha mãe chamava-me Branca de Neve). Nesse dia aprendi a lição, acho. Até perdi a vista. Desde então fiquei com algumas sardas para não me esquecer que a exposição ao sol não é boa ideia depois de almoço. Tinha os meus catorze anos.
Depois, com a minha prima Fernanda comecei a aprender a dançar valsa. Quando ela fazia anos, convidava-nos para a festa de aniversário. Então havia sempre um momento na festa em que se dançava a Valsa da Meia-Noite. Descobri a valsa e o quanto eu gostava de a dançar!
A primeira vez que fui a uma discoteca teria uns quinze anos. Num domingo à tarde. Nessa altura existia uma ou outra discoteca que abria ao fim de semana à tarde. Confesso que achei esquisita a experiência, por ser num espaço fechado e escuro, embora a ideia de dançar fosse agradável. Havia pouca gente. Não cheguei a dançar. Para aquilo que eu ouvia dizer sobre as discotecas, não achei nada de especial. Só mais tarde comecei a ir à noite à discoteca e gostei um pouco mais, ainda que fosse um pouco frustrante, porque tinha que vir cedo para casa.
Comecei a trabalhar e a namorar e a desfrutar um pouco mais do ambiente animado da noite ao fim de semana. Todavia, como tinha habitualmente compromissos ao outro dia de manhã, mesmo ao fim de semana, nunca vivi nessa altura a boémia lisboeta.
Nunca fiz uma direta. Mesmo quando precisava de roubar tempo ao descanso porque andava a trabalhar e a estudar, nunca consegui fazer aquilo que se costuma chamar uma direta. Há dias fiz a minha primeira (e espero que única) direta...
Depois dos quarenta, com a minha aproximação séria ao mundo do fado, a noite ganhou um verdadeiro ascendente na minha vida artística e social.
Claro que eu sempre encontrei inspiração na noite. Desde novinha. O crepúsculo. O firmamento. As constelações. Os nossos passeios noturnos na aldeia da Vide. A água escura a correr por entre os salgueiros. A vida natural noturna. O silêncio. As incidências de luz...
Nasci à tarde, por volta das sete da tarde.
Quando nasci, fiquei a dormir no quarto dos meus pais, virado para a rua principal, a rua de Alcântara, muito barulhenta de gente e trânsito, mesmo à noite já nessa altura. Depois, por volta dos cinco anos, fui partilhar o quarto junto à cozinha com a minha irmã virado para a rua das Fontainhas, que era uma rua mais sossegada, mas que tinha dias...malta da noite, do fado inclusive que passava por ali, fábricas que trabalhavam toda a noite, outras vidas mais secretas...
Quando o meu irmão mais velho foi trabalhar para o Algarve, eu fiquei no quarto dele, com porta virada para a escada da rua. Tinha os meus dezassete anos. Mas não tinha ainda esquecido que tinha falecido a Sra. Joana naquele quarto. A primeira pessoa que eu vi morta. Ainda era muito miúda. Uma hóspede já velhinha que vivia naquele quarto com uma filha, a dona Lurdes; esta gostava de me ouvir ler as leituras na missa e que de me ouvir cantar. A Sra. Joana, a mãe, também era muito simpática. Punha-me na perna dela a andar de cavalinho. Morreu de velhice, disse a minha mãe. Tiveram que lhe por um lenço na cara a segurar a boca, porque tinha ficado aberta. Andei a sonhar com a imagem daquela defunta durante muito tempo.
Quando vínhamos da rua, chegávamos à porta do prédio, chamávamos sempre pela minha mãe. - MÃÃÃEEE!! Nessa altura não havia sistema elétrico automático, como agora. Só no interior das casas é que se podia acender a luz da escada, que era paga por cada inquilino, segundo o próprio consumo.
A minha mãe sabia que a escada era muito escura, que tinha três patamares até chegarmos à porta de casa. A porta do prédio ainda por cima às vezes ficava aberta e entrava gente estranha para dentro...
Enquanto a minha mãe não abrisse a luz da escada, ficávamos a gritar por ela nos primeiros degraus. Como a casa era grande, nem sempre ela nos ouvia à primeira. Então se estava a estender a roupa, era deixá-lo... Outras vezes era o som da tv que estava um bocado alto. Uma tv a preto e branco. Volta e meia fazia chuva no ecrã. Só mais tarde é que se comprou outra a cores...
Quando fui ocupar o tal quarto que era do meu irmão mais velho, antes pintei-o e decorei-o. Foi nesse quarto que estudei noites sem fim para tirar a licenciatura na faculdade de letras.
O meu pai chegou a colar um boneco de Carnaval na minha porta, com a forma de um morcego. Ele zangava-se quando eu ficava até muito tarde a estudar.
Ao outro dia, mal dormida, acordava em sobressalto ao toque do despertador antigo, com duas campainhas, super-estridente. Dava sempre um pulo na cama quase em estado de choque. Era um despertador igual ao dos meus avós, no beco do Sabugueiro.
Entretanto aprendi a gostar desse meu quarto e de ter a minha privacidade de adolescente. Punha-me a ouvir, enquanto lia, os Bee Gees, os Moody Blues, o Bob Dylan, o Bob Seger, etc. Outras vezes punha-me a dançar, como forma de ginasticar o corpo. Gostava de convidar as minhas amigas para verem os meus livros, os meus desenhos, ouvirem a minha música... mostrar Os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes que comprei com o meu dinheiro, das edições avante (porque normalmente requisitava os livros na carrinha da Gulbenkian).
Também muito cedo decidi na minha vida, com doze ou treze anos, seguir uma via saudável de alguma prática de ioga...
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