quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Autobiografia (página 2)

Da esquerda para a direita: eu, o meu pai, a minha mãe,
a minha irmã, em baixo o meu irmão João.
(O fotógrafo de serviço era o meu irmão mais velho)
Há uns anos, a infância num bairro antigo de Lisboa, como o de Alcântara, era uma vivência de vizinhança. As minhas melhores amigas eram as miúdas que brincavam comigo nas traseiras da casa dos meus pais. 
Claro que eu, ainda novita, beneficiava da companhia dos irmãos mais velhos quando me autorizavam a ir brincar para a rua.
A rua era a das Fontainhas que, mesmo nessa altura, não era uma artéria principal de trânsito. Mas exigia os seus cuidados. Talvez ainda mais do que hoje, devido à atividade das fábricas nessa altura em funcionamento. Aquelas enormes camionetas do Faria, cheias de gigantes varetas de ferro que tinham na ponta um farrapo vermelho, porque ultrapassavam o próprio comprimento da caixa da camioneta.
Como é que a criançada se entretinha na rua a brincar? Com os tais jogos tradicionais que os mais velhos ensinavam: à barra, ao mata, ao elástico, à mamã dá licença, à apanhada, às escondidas, as pedrinhas, ao telefone quebrado, ao 'aqui vai o lenço, aqui fica o lenço', aos países, à batalha naval, ao aro... os rapazes não dispensavam o jogo da bola. Volta e meia passava a polícia e confiscava a bola. Muitas vezes a bola era do meu irmão mais velho, o que obrigava o meu pai a ir à esquadra. Depois eram sermões repetidos lá em casa (ainda há dias quando fui visitar a dona Amélia, única vizinha dessa altura que ainda vive lá no prédio, estivemos a recordar isso; eram os três zés da bola: o meu irmão, Zé António, o filho dela, o Zé Álvaro e o Zé Pinto).
Claro que havia também a tendência para as brincadeiras tipo mães e dos pais, a cochichar aqui e ali a dizer quem gostava mais de quem e assim vinham os primeiros namoros.
Quando entrei para a escola primária (nessa altura ainda não havia pré-primária), fiquei muito contente. Os primeiros seis anos da minha vida tinham sido sempre debaixo do teto paterno e, pela primeira vez, ausentava-me todos os dias de casa. Claro que nos primeiros meses saía sempre com a minha irmã, que ainda andava na escola da Tapada comigo. Só depois é que saiu para ir para a Ferreira Borges, como aconteceu comigo no final da 4ª classe.
Eu e os meus irmãos fomos sempre bons estudantes. Tínhamos boas notas. Gostávamos de aprender. Lá havia um ano ou outro em que havia uma distração (jogatanas, namoricos...), mas quase sempre corria bem. 
Lá no bairro o forte eram os santos populares. Havia bailaricos, manjericos. namoricos. Salto à fogueira. Ouvia-se fado e Demis Roussos.
A escola foi muito importantes para mim e para a malta nova do bairro. O contacto com o conhecimento, com certos professores, com colegas que nunca mais esquecemos. As visitas que fazíamos com a escola. Eu aprendi a nadar na piscina do pavilhão da Ajuda.
Quando era miúda, não era de muitas conversas. Observava mais do que falava. Havia alturas que só brincava no intervalo quando me perguntavam se queria; caso contrário ficava sentada, a olhar os outros. Portava-me bem na sala de aula. Acho que só levei uma ou duas vezes um «sopapo» (como ela dizia!) da minha professora, que doía porque ela tinha uma unhas pintadas muito compridas.
O 25 de abril de 1974 só se aconteceu quando eu já estava no 1º ano do ciclo preparatório. Até lá, o edifício à direita no recinto escolar ainda era só para meninas. O edifício da esquerda era só para rapazes. Havia uma rede a separar. Depois tiraram a rede quando Salazar morreu e lhe sucedeu Marcelo Caetano.
Um dia, já nessa altura, vinha a sair da escola, vi um rapazito vizinho meu a ser maltratado e fui socorrê-lo. Ele sentiu-se envergonhado, mas ficou agradecido. Hoje se o vir nem o conheço...
A Natércia era uma colega da classe da minha irmã que nos vinha chamar todas as manhãs. Ela tocava à porta sempre cedo. Subia e ficava na sala à espera. Um dia perguntou-nos que barulho era o que ouvia todos os dias lá em casa, tipo escovagem continuada. Era o nosso pai a lavar os dentes. O nosso pai gostava de se levantar todos os dias muito cedo e ficava horas na casa de banho num ritual muito próprio, de grande rigor.
Nessa altura, da minha primária, as raparigas usam pompons pendurados nas meias e xailes de enfiar na cabeça também com vários pompons nas pontas. Tive pena de não ter tido nada disso. Eu era toda ligada a coisas de miúdas. Mas ao mesmo tempo tinha o meu lado de maria-rapaz. Brincava aos índios e aos cowboys. Jogava à bola no corredor da casa dos meus pais.
Pude escolher o penteado à tijela, como se usava, mas choramingava sempre quando chegava a casa à saída da Cinderela, o cabeleireiro do bairro.
Houve uma ou outra vez que cheguei à escola sem sapatos. Estava a subir a calçada da Tapada quando ouvia gritar: - Fujam! Fujam!, e como os sapatos eram herança da minha irmã, ficavam-me largos, logo caíam-me facilmente dos pés. Nessa altura eu tinha um medo terrível dos guardas montados a cavalo.
Mas no dia 25 de abril de 1974, eu fui à escola. (pode ler-se mais no site: http://memoriasdarevolucao.pt/index.php/dias-memoria-da-revol/historias-e-memorias-da-revolucao/305-onde-e-que-eu-estava-no-25-de-abril-retrato-de-um-sentimento-em-flor-rosa-maria-duarte)
De regresso, quando cheguei à porta da rua do nº 17 estavam lá varinas a vender o Diário Popular. Nesse dia vinha na primeira página a fotografia do general Spínola em grande plano como novo presidente. Subi a correr, emocionada, as escadas até ao 2º andar e quando falei nisso lá em casa, todos olharam para mim com respeito. Tinha 10 aninhos, mas já me prendia com os assuntos dos mais velhos.

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