sábado, 29 de novembro de 2014

Essa ferramenta-mãe chamada memória


O TEMPO DAS HOMILIAS PARTILHADAS 

Perdoem-me esta evocação do passado. Eu que até nem costumo prender-me demasiado ao passado, porque procuro investir no presente e no futuro, mas dei por mim há dias a contar ao Manel as minhas memórias quase inéditas ao longo destes anos do Grupo de Jovens da paróquia de S. Pedro de Alcântara. Num tempo pós-25 de abril.

Narrativas que são passaportes no tempo. Se tivesse aqui uma guitarra e quem a tocasse, tentava contá-las em verso. Assim confidencio-as sem compasso. Em duas palavras escorreitas. Como se tivesse apressada por ter a matéria para dar à espera…

Tinha então pouco mais de 10 anitos. Aproveitando o entusiasmo da minha irmã mais velha e as suas ideias de convivência com a malta do bairro que ia à catequese, fui percebendo que a igreja não eram só silêncios, missas cansativas e rituais repetidos.

Havia, na altura em Alcântara, muitos jovens como eu, sobretudo mais velhos, que tinham conversas giras e procuravam conviver fora dali.

Os adultos, que vieram mais tarde a ser especiais amigos, alguns eram professores das escolas da zona. Um deles, o Carlos, foi professor da minha irmã na Ferreira Borges.

Foi um período de muitas atividades comunitárias, de reflexão, ensaios musicais e outras. E um diácono extraordinário, o João Afonso, que conseguiu convencer o nosso inflexível pai para um retiro de 3 dias em Sassoeiros, Oeiras, alegando que era muito importante nas nossas vidas. E foi-o, deveras!

Agradeço este texto a esses meus amigos, quantos deles já não vejo há muito! E à ferramenta-mãe de que me sirvo e que é essencial a qualquer escritor: a memória.

A memória que muito já se estudou e disse. E muito ainda está por dizer e apurar. Porque há memória sensorial, visual, poética, factual…sempre criativa no seu complexo potencial que é sempre individual e dinâmico!

E, continuando, nessas vivências de grande intensidade comunicativa, comunitária e ritualística, percebi então que a religião é o que podemos pensar e agir em interação comprometida e aprofundada.

Os jovens ativos daquele grupo viveram grandes tempos de mudança do 25 de abril, únicos, conturbados, mas maravilhosos. E passaram a questionar os rituais do Catolicismo.

Os privilegiados, que fomos da revolução, pudemos pensar em mudar regras. Algumas ainda que temporariamente.

Uma delas foi a homilia convencional que passou a partilhada.

O padre Ernesto, mais novo que o padre Alfredo da paróquia, embora com um consentimento protelado, acabou por conseguir dizer missa só para o grupo de jovens, na sala de cima das reuniões, que consistia em ler uma passagem bíblica devidamente preparada e depois partilhar a palavra, abrindo o debate sobre o tema da narrativa ou parábola, num timing acordado que era mais ou menos respeitado. E mais as mãos dadas durante a oração, mais as saudações na «paz esteja convosco», mais a hóstia recebida na concha da mão, cânticos com músicas pop e letras inéditas…mudanças que em boa parte se mantêm e são hoje um dia a dia convencional alargado, que nem se pensa na história da sua conquista.

Passado pouco tempo, o padre Ernesto foi transferido.

O padre Alfredo ainda me casou e batizou os meus filhos, mas entretanto morreu.

A minha tia Conceição, freira, mestra-superior da família, e de tantas outras, também.

Mas todos continuam vivos naquilo que deram e ensinaram. E nas palavras que os recordam.

As palavras têm o dom de não deixar morrer os sentimentos e de dar fala ao silêncio.

As palavras são assim: despertam a música que há entre nós. A elevação de sermos.

                                                                          Alcântara, 29 de novembro de 2014

                                                                                            Rosa Maria Duarte



 

 

 

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