O TEMPO DAS HOMILIAS PARTILHADAS
Perdoem-me esta evocação do passado. Eu que até nem costumo
prender-me demasiado ao passado, porque procuro investir no presente e no
futuro, mas dei por mim há dias a contar ao Manel as minhas memórias quase inéditas
ao longo destes anos do Grupo de Jovens da paróquia de S. Pedro de Alcântara. Num
tempo pós-25 de abril.
Narrativas que são passaportes no tempo. Se tivesse aqui uma
guitarra e quem a tocasse, tentava contá-las em verso. Assim confidencio-as sem
compasso. Em duas palavras escorreitas. Como se tivesse apressada por ter a matéria
para dar à espera…
Tinha então pouco mais de 10 anitos. Aproveitando o
entusiasmo da minha irmã mais velha e as suas ideias de convivência com a malta
do bairro que ia à catequese, fui percebendo que a igreja não eram só silêncios,
missas cansativas e rituais repetidos.
Havia, na altura em Alcântara, muitos jovens como eu,
sobretudo mais velhos, que tinham conversas giras e procuravam conviver fora
dali.
Os adultos, que vieram mais tarde a ser especiais amigos,
alguns eram professores das escolas da zona. Um deles, o Carlos, foi professor
da minha irmã na Ferreira Borges.
Foi um período de muitas atividades comunitárias, de
reflexão, ensaios musicais e outras. E um diácono extraordinário, o João Afonso, que
conseguiu convencer o nosso inflexível pai para um retiro de 3 dias em
Sassoeiros, Oeiras, alegando que era muito importante nas nossas vidas. E foi-o,
deveras!
Agradeço este texto a esses meus amigos, quantos deles já não
vejo há muito! E à ferramenta-mãe de que me sirvo e que é essencial a qualquer
escritor: a memória.
A memória que muito já se estudou e disse. E muito ainda está
por dizer e apurar. Porque há memória sensorial, visual, poética,
factual…sempre criativa no seu complexo potencial que é sempre individual e dinâmico!
E, continuando, nessas vivências de grande intensidade
comunicativa, comunitária e ritualística, percebi então que a religião é o que
podemos pensar e agir em interação comprometida e aprofundada.
Os jovens ativos daquele grupo viveram grandes tempos de
mudança do 25 de abril, únicos, conturbados, mas maravilhosos. E passaram a
questionar os rituais do Catolicismo.
Os privilegiados, que fomos da revolução, pudemos pensar em
mudar regras. Algumas ainda que temporariamente.
Uma delas foi a homilia
convencional que passou a partilhada.
O padre Ernesto, mais novo que o padre Alfredo da paróquia,
embora com um consentimento protelado, acabou por conseguir dizer missa só para
o grupo de jovens, na sala de cima das reuniões, que consistia em ler uma
passagem bíblica devidamente preparada e depois partilhar a palavra, abrindo o debate
sobre o tema da narrativa ou parábola, num timing
acordado que era mais ou menos respeitado. E mais as mãos dadas durante a
oração, mais as saudações na «paz esteja convosco», mais a hóstia recebida na concha da
mão, cânticos com músicas pop e letras inéditas…mudanças que em boa parte se
mantêm e são hoje um dia a dia convencional alargado, que nem se pensa na história da sua conquista.
Passado pouco tempo, o padre Ernesto foi transferido.
O padre Alfredo ainda me casou e batizou os meus filhos, mas
entretanto morreu.
A minha tia Conceição, freira, mestra-superior da família, e de
tantas outras, também.
Mas todos continuam vivos naquilo que deram e ensinaram. E
nas palavras que os recordam.
As palavras têm o dom de não deixar morrer os sentimentos e
de dar fala ao silêncio.
As palavras são assim: despertam a música que há entre nós. A elevação de sermos.
Alcântara, 29 de novembro de 2014
Rosa
Maria Duarte
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