O FADO DA MINHA
INFÂNCIA
Para mim falar de fado é simples, mas doloroso ao mesmo
tempo.
Simples porque sei que vive de sentimentos genuínos de gente
humilde, mas, por vezes, doloroso ligado à faina dura do mar, marcado
pela distância física que eleva a mágoa o grito silencioso de saudade.
Eu nasci e cresci com ela em casa.
Vivi os meus primeiros vinte anos de vida com os meus pais, mais
cinco irmãos, na rua de Alcântara nº 17 – 2º andar, num andar alugado com
esquerdo e direito. Éramos muitos. O meu pai é que sustentava a casa.
Volta e meia, quando o meu pai regressava do mar, a minha mãe
engravidava. Nessa altura, os partos ainda eram feitos por parteiras que iam a
casa das parturientes. Só o meu irmão mais novo, o Alex, nasceu na
maternidade Alfredo da Costa. A minha mãe já tinha quarenta anos e foi
aconselhada pela obstetra a ir para a maternidade.
O meu pai manteve-se durante muitos anos marinheiro da
marinha mercante. Fez serviço no paquete Vera Cruz, Santa Maria e outros que não me lembro.
Apesar da cultura familiar rigorosa e muito conservadora, até
pelo facto de o meu pai estar ausente de casa durante muitos períodos no ano, nós
tratávamos os nossos pais com à vontade e tratávamo-los por tu. Eles não se importavam. Os bairristas são
assim, descontraídos e afáveis. E deixavam-nos brincar e jogar à bola na rua, nas traseiras da rua principal, na rua das
Fontainhas, que era fabril e menos movimentada. Ainda que os horários das nossas brincadeiras
fossem muito controlados...
Havia muita miudagem para jogar: às escondidas, à apanhada, à
barra, à linda falua…barrigadas de brincadeira. E estávamos sempre a esticar a
sorte…gritávamos para o 2º andar: mãe podemos ficar mais um bocado? A mãe nem
respondia. A vassoura ficava à nossa espera atrás da porta…
Os nossos pais não tinham muita instrução, mas eram pessoas atentas. Eram amantes da Amália, da Hermínia, do
Alfredo Marceneiro, do Fernando Farinha, do Maurício, do Max, do Carlos Ramos e
de tantos outros.
Mas, até por algumas curiosas parecenças físicas, a
referência vocal do meu pai era o Alberto Ribeiro, ator galã que
contracenou no filme «Capas Negras» com Amália Rodrigues. Foi com um tema deste
cantor que o meu pai ganhou o segundo lugar no concurso de fado da Emissora
Nacional, há muitos anos, quando era eu ainda uma raquítica miudita. Há quase quarenta anos!
Apesar da proximidade da minha casa às famosas casas de fado
de Alcântara, nunca me foi autorizado aproximar-me de lá. Nem se falava nelas
lá em casa. Só soube da sua existência já era quase adulta. Até então era uma espécie de tabu.
Já rádio e televisão não faltavam lá em casa. Ouvia-se muita
música. Gravadores e gira-discos também, mas só mais tarde quando os meus
irmãos mais velhos começaram a trabalhar.
O meu pai acordava sempre muito cedo. Ia para a casa de banho acompanhado do seu transístor para ouvir a Emissora Nacional e a Rádio
Renascença. Gostava muito dos parodiantes de Lisboa. E ali ficava, na casa de
banho, uma, duas, as horas que fossem necessárias para se escanhoar bem, a
cantarolar e a assobiar, de janela escancarada na cozinha contígua virada para a fábrica dos parafusos com uma linha de Tejo no horizonte, em camisola
interior de alças e pele repleta de creme Nívea para compensar o forte bronze
do mar.
A minha mãe preferia as radionovelas como a Simplesmente
Maria. Chamava-me para ouvir com ela a rádio, porque achava um desperdício gastar as
pilhas do rádio só com ela. E chorava a cada instante com a história triste da
Maria, que era uma simplesmente maria. Um sucesso radionovelesco.
O meu pai marinheiro, apesar de tudo, procurava não se ausentar por períodos
muito longos. Evitava as viagens de longo curso. Não muito mais de um mês. O
seu marialvismo acentuado era, contudo, genuíno, que incluía, felizmente, os bons rituais familiares bairristas.
O domingo era família (quando não estava em trabalho). Ou íamos para o Alvito
fazer uma sardinhada e brincar para o parque infantil, ou íamos para a Tapada da Ajuda depois de almoço e estendíamos camas de rede e montávamos carros de esferas.
O campo era o oxigénio do meu pai. Para ele, assumido beirão do Fundão, Valverde. Para a minha mãe também, mas não tanto. Porque costurava em casa e não sofria tanto com a agitação da cidade. Ela gostava e gosta da sua terra na Serra da Estrela, mas veio cedo para Lisboa com oito anos, e nunca lhe sentiu muito a falta.
O campo era o oxigénio do meu pai. Para ele, assumido beirão do Fundão, Valverde. Para a minha mãe também, mas não tanto. Porque costurava em casa e não sofria tanto com a agitação da cidade. Ela gostava e gosta da sua terra na Serra da Estrela, mas veio cedo para Lisboa com oito anos, e nunca lhe sentiu muito a falta.
Em contrapartida os filhos, todos, adoravam e adoram a sua terra, uma
aldeola chamada Vide. Até o marido que quase gostava tanto da terra dela como da dele.
Desde que nascemos têm sido grandes momentos lá. Se algum verão não permitia as férias na Vide, era um desgosto infindável para nós, criançada às vezes tão insuportável. Éramos muitos, uma escadinha, quatro rapazes e duas raparigas, estas, umas marias-rapazes. Fazíamos marcação cerrada, se não fôssemos. Com tortura psicológica requintada. Papelinhos em todos os bolsos dos casacos dos nossos pais a repetir: vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide...
Desde que nascemos têm sido grandes momentos lá. Se algum verão não permitia as férias na Vide, era um desgosto infindável para nós, criançada às vezes tão insuportável. Éramos muitos, uma escadinha, quatro rapazes e duas raparigas, estas, umas marias-rapazes. Fazíamos marcação cerrada, se não fôssemos. Com tortura psicológica requintada. Papelinhos em todos os bolsos dos casacos dos nossos pais a repetir: vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide, vamos à Vide...
Belos tempos. Era o lugar mágico, a Vide. Ainda é. Os nossos
pais tinham mais paciência para nós. Podíamos estar sempre fora das paredes da
casa. Íamos tomar banhos revigorantes ao rio. Brincávamos todos juntos, até com
os nossos pais. Às vezes o clã familiar ainda se alargava mais. E cantarolava-se.
Faziam-se festivais da canção. Cantavam-se histórias. Faziam-se caminhadas na
serra. Ía-se à chinchada. Adivinhavam-se as constelações na brilhante e majestosa abóbada
celeste, tão natural e recortada pelo
horizonte serrano…
Não levávamos tv. Nem queríamos. Só música da rádio e muito fado
vadio…
Onde está a pequena Rosa Maria do vestido de veludo vermelho, mangas em balão, sapatos de verniz preto e fivela na procissão da Nossa Senhora da Assunção?
O tempo, esse grande escultor. Um construtor demolidor... O nosso pai morreu. A nossa mãe envelheceu. A família multiplicou-se. E o fado perdurou e mantem-nos ligados pela saudade.
O tempo, esse grande escultor. Um construtor demolidor... O nosso pai morreu. A nossa mãe envelheceu. A família multiplicou-se. E o fado perdurou e mantem-nos ligados pela saudade.
É por isso que eu não consigo deixar de cantá-lo. Porque o
fado não é de quem o canta.
O fado é um
recado intemporal, repetido, mas sempre único e sentido.
É a memória
de uma família, de um povo que canta o seu destino em cada voz dolente e oferecida,
em oração.
É o silêncio
que se vai afinando em verso, desde a infância até ao entardecer.
Alcântara e Madragoa, 2 de novembro de 2014
Rosa Maria Duarte
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