quinta-feira, 6 de novembro de 2014

a pedido de um aluno


OS LIVROS NA MINHA INFÂNCIA

Alto, louro, olhos azuis, de mão pesada e ágil, ele era muito metediço e matreiro. Tinha p’rá aí uns treze anos. Ainda que não parecesse, gostava muito de nós, da nossa pequenez e fragilidade feminina, mas invariavelmente cumprimentava-nos ao longo corredor da casa com uns bons calduços e uns beliscões miudinhos que faziam inchar as nossas carnitas rosadas tão tenrinhas.

Todos éramos mais novos do que ele. Na época éramos só três, para além dele mesmo. Por isso tínhamos de respeitar o nosso irmão mais velho, mesmo nas suas diabruras. E respeitávamo-lo. Era, até, mais do que respeito…

Eu e a minha irmã padecíamos do mesmo fraco: gostávamos dos seus livros. O bebé que era o meu irmão a seguir a mim ainda era muito pequenito para reclamar estes devaneios e aventuras visuais e táteis. É que lá em casa não havia dinheiro para livros. Mas estes de que falo eram os da escola do mais velho, e com esses não se brincava!

Mas as duas, abelhudas cúmplices minorcas, íamos sorrateiras até ao quarto do nosso irmão mais velho visitar os manuais escolares que ele tinha guardados religiosamente, em especial dois, com imagens do nosso agrado: o livro de Religião e Moral e o livro de Ciências da Natureza. Levávamos os livros até à sala de jantar contígua e, às escondidas da mãe (o pai passava temporadas fora), folheávamos gulosamente todas aquelas imagens que nos pareciam reais e grandes, com muita cor e nitidez. Passávamos-lhes os dedos a avaliar a forma de cada bicho e de cada folha fotografados. Daí vieram-nos mais tarde as manias com os herbários, as grandes coleções de folhas recolhidas da serra do Alvito e da Tapada da Ajuda. Mas isso foi bem mais tarde.

Eu não sabia o nome do livro de Religião e Moral e chamava-lhe o livro do filho do pai que mataram. Por muito que olhasse, continuava impressionada com a imagem de Adão a empunhar uma faca para matar o filho a mando de Deus. Olhava-a, olhava-a e não me conseguia decidir do que sentia...

Eu e a minha irmã tínhamos essa ocupação secreta que nos unia, enquanto o bebé chuchava às escondidas debaixo da mesa da sala.

O meu irmão mais velho, esse sabidão ruidoso, quando entrava em casa, estava sempre à espera de nos apanhar de surpresa, e caçava-nos muitas vezes, com os habituais gritos encenados, em flagrante delito. Nós, ruborizadas e choramingonas, lá atirávamos os livros para debaixo dos sofás e das cristaleiras, no meio da atrapalhação, na esperança da ocultação. Na esperança de que ele estivesse a fazer só de conta que tinha dado conta da infração, por mero hábito torturador. Mas quase sempre apanhávamos mais calduços e beliscões. À séria. A doer. E foi assim que ficámos preparadas para, se quiséssemos, ingressar em qualquer corpo dos fuzileiros. Ainda hoje somos umas mulheres guerreiras, imbatíveis, na nossa aparente feminilidade. Que fazem pensar duas vezes quem ousa nos beliscar…

E, curiosamente, quando o nosso irmão deixou de ser um ‘enfant terrible’, passou a olhar e a tratar-nos com umas ladies, com preocupação e desvelo. «Rosa, não cortes o cabelo que te fica bem comprido». Surpreendia-nos.

À minha irmã um dia ensinou-lhe a tocar guitarra. Eu não tive na altura essa sorte porque ainda tinha os braços pequenos. Mas como tinha olhos curiosos, fui incumbida de lhe trazer os livros, que me indicava por escrito, da carrinha da biblioteca da Gulbenkian, que estacionava na calçada da Tapada às quartas-feiras e, se eu quisesse, podia trazer um também para mim. Visto que eram três por semana. Uauh!

A princípio, quando subi o degrau para entrar na carrinha cinzenta, um pouco curvada, olhava as prateleiras com estranheza, a cheirarem a tinta e a papel velho. Com uma série de livros, todos eles com as capas escuras e lisas. Talvez a chamarem por mim. Resolvi então descobrir o que tantas letras estavam a fazer dentro de tantos livros.

Comecei arbitrariamente pelo V: Veríssimo, Erico, Olhai os Lírios do Campo. Soou-me bem e o rapaz que conduzia a carrinha, e que tinha pouco mais que a idade do meu irmão, encorajou-me.

Dali em diante, a simples visita semanal tornou-se um compromisso amoroso revigorante. Ainda hoje somos companheiros diários de grande nobreza e de diálogo intenso, com tantas histórias para contar.

No quotidiano, quando trabalho com os meus alunos os contos da Clarice Lispector, por exemplo, eles, intrigados, perguntam-me porque é que a autora-personagem da «Felicidade Clandestina» confidencia que, em pequena, ao emprestarem-lhe um livro, sentia o coração quente como o de uma mulher amando o seu amante. E eu conto-lhe a minha história. Ah… E sorriem, com algum enlevo e esclarecidos.

É que eu ainda continuo a gostar de me balouçar na cadeira com um livro aberto no colo, acariciando-lhe a textura e a cor, quantas vezes em êxtase deveras puríssimo. Antes de virar a última página…

                                                                      Laranjeiro, 6 de novembro de 2014

                                                                                  Rosa Maria Duarte
 

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