«O silêncio é uma das grandes artes da conversação» (afirmou
Cícero)
Na sequência do convite que me foi feito pela direção da Sociedade Teosófica de Portugal, vou apresentar algumas ideias do ponto 3.6. da minha tese de doutoramento cujo subtítulo é «Da música e da literatura». Foi um trabalho realizado no âmbito das Literaturas Comparadas na FCSH que tem como corpus principal o livro «De Profundis, Valsa Lenta» de José Cardoso Pires e o «Monte Sinaí» do escritor catalão José Luis Sampedro.
A literatura
e a música convivem de muitas maneiras, umas vezes completando-se, outras
simplesmente acompanhando-se (LONGRE, 1994:7) Têm um mestre intemporal - o
silêncio.
«A não ser
que ouças, não poderás ver./A não ser que vejas, não poderás ouvir.» (Voz do Silêncio de Helena Blavatsky, trad.
De Fernando Pessoa, p.68)
Sem silêncio, a arte não existe. A
música não existe. A vida não existe. É o silêncio que permite a génese
criativa. Uma mente ruidosa precisa de um instante silencioso para se focar.
A palavra e a música pertencem a
sistemas semióticos comparáveis. Tanto a linguagem verbalizada como as notas
musicais têm a mesma origem: a voz humana.
O texto linguístico e a partitura
musical combinam-se desde tempos recuados da nossa civilização. Na Idade Média,
o poeta tinha que saber escrever, compor e cuidar da voz. No teatro, as
linguagens artísticas sempre confluiram: as palavras, a música, as artes
plásticas, o guarda-roupa… um espaço em que o silêncio é estruturante. Um
silêncio misto, às vezes místico, de observação e reconhecimento.
A palavra e a música são indispensáveis
à ritualística e à atitude devocional cujo requisito-mor é o SILÊNCIO.
Esta cumplicidade palavra+música
comprova-se nomeadamente pelos muitos músicos compositores que sentem o apelo
de escrever letras e letristas que passam a compor.
Os conceitos de autor e polifonia
surgem associados tanto na música como na literatura, ainda que com uma
semântica naturalmente específica. A riqueza das várias vozes do mesmo autor.
Segundo Longre, Rousseau defendeu que
o homem começou a cantar antes de falar. Que a música vem antes da palavra
porque é uma linguagem universal, vinda do coração, das emoções, das paixões e
da Natureza (LONGRE, 1994:18).
Ao comparar a música e a literatura,
verifica-se que, ao longo da sua história, o princípio era o da imitação da
realidade, ou seja, da natureza das coisas e dos homens. No século XVIII, a
música é vista como a língua das paixões e remete-se para o universo moral.
Ainda segundo Rousseau, a música e a
literatura despertam no corpo e no espírito os sentimentos que evocam,
interpenetrando-se e completando-se (ROUSSEAU, 1755/1781).
A literatura e a música conjugam-se
de forma única no próprio processo de criação para o fim último que é a obra de
arte. Juntas, elevam-se ainda mais no espírito do criador e, segundo um entendimento
bíblico dos talentos dotados ao homem, atingem o excelso no silêncio da criação
divina.
Esta relação-invenção ou
relação-criação é a condição por excelência para a investigação comparatista.
Trata-se de uma nova visão e uma
redescoberta dos fenómenos que se julgavam já estudados.
Os estudos comparatistas continuam a
trabalhar com outras disciplinas, incluindo as artes plásticas.
A literatura já não é considerada
superior à música e a música já não tem o exclusivo de despertar emoções. Poema
musical ou música poética, o facto é que por vezes a fronteira entre estas duas
artes é difícil de demarcar.
Com o Romantismo do séc. XIX, o
músico atingiu um estatuto social nunca alcançado. A música desempenha um papel
mais ativo e até mais filosófico. Nas obras literárias, a música apresenta-se
como oportunidade de as personagens se descobrirem a si próprias e, muitas
vezes, desencadearem um processo de redenção e purificação da alma. Como na
peça musical «De Profundis» de Mozart.
Para muitos escritores e poetas do
Romantismo, e também desde então, que a música não é apenas uma presença no
silêncio da escrita. A música é uma ajuda para gerar ideias e para desencadear
o ato criativo na atividade literária. Pode ser uma verdadeira inspiração ou,
então, um simples despertar da imaginação que se constrói em interação com ela.
Natureza, viagens, solidão,
melancolia são alguns dos temas do Romantismo que se espelham também no fado.
Em Portugal, são desta altura os primeiros registos da música marginal urbana
que é o fado, cujos fadistas começaram por ser pessoas do povo e até marginais.
O fado tem um pendor fatalista e romântico à sua maneira, capaz de despertar a
máxima emoção, de provocar paixões e elevar convicções. Mas são sobretudo
retratos do quotidiano citadino que animam o fado.
O nosso fatum (ou destino) não pode continuar imperturbável. É Fernando Pessoa
quem nos diz, um jovem educado no culto de um individualismo quase excêntrico.
Como perturbá-lo? Criando uma explosão poética mais libertadora da nossa consciência.
Liberdade pela arte. E não há arte
sem liberdade; ainda que a liberdade individual seja, em boa parte, uma
construção influenciada pelas vivências e experiências. De interioridade, por
exemplo, como no silêncio em observação de si mesmo. José Rodrigues Miguéis
dizia: “O universal está no meu quintal. A questão é saber cavar”. O ato
criativo, que é individual, é uma linguagem universal.
Pela ficção, a arte literária
livra-se da tirania dos factos.
Há sempre uma função social
inevitável da literatura, até pelo seu pendor de imortalidade, mas o ato
criativo é um mundo em si-mesmo, com um olhar próprio, uma linguagem sua, que
não é duplicação da realidade.
São muitas as cumplicidades
comunicativas nas linguagens artísticas. O silêncio na escrita com a música e o
desenho, por exemplo, em De Profundis,
Valsa Lenta de Cardoso Pires. Naturalmente, as obras autorais exigem desses
humanos o génio que os habita. Humanos, por ventura, tão inquietos e inacabados
como qualquer outro. Que recorrem à intertextualidade e à multidisciplinaridade
para chegar mais perto do leitor que é ele próprio e os outros.
Se a arte só pudesse ser feita por
pessoas-modelo, os santos seriam os maiores artistas. O caso de Wagner, segundo
o próprio Nietzsche, é exemplo da genialidade e do desconcerto ideológico…
O título De Profundis, Valsa Lenta é uma metáfora de silêncio e música.
Embora o De Profundis seja o requiem escolhido pelo autor para
remeter para a temática da proximidade da morte, a expressão Valsa Lenta apela à dança de compasso
binário lento que o acidentado associa para se rever, na sua escrita, em
situação de parceiro numa dança com a morte, que não tem pressa e interage com
ele suavemente durante os dias em que perdeu quase completamente a memória: a
«morte branca» ou a «viagem à desmemória».
Com
o despertar dessa «quase hipnose», José Cardoso Pires regressa a casa, à sua
Lisboa, “[…] em saudação de primavera em pleno mês de Janeiro […]” (PIRES,
1998:62), saído, como ele próprio diz, da babilónia do Hospital de Santa Maria
e por isso põe música de fundo, mas agora uma música burlesca “[…] se possível,
como o «Quarteto das Dissonnâncias» de Mozart. Música, porque não? No renascer
de cada vida a música é um privilégio abençoado […]” (Idem, 1998:62)
Regressado
à quase normalidade dos seus dias lisboetas, “Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol,
cá vou eu […]” (Idem, 1998:61) nos
passos mais secretos do homem que ele foi, amante das tertúlias e da boémia.
Percorrer os lugares da Lisboa que tão bem vivenciou e desfrutou.
De
forma ainda que indireta, reconhecer na Lisboa de Cardoso as raízes da cultura
ibérica que subjaz à influência poético-musical, igualmente cara a José Luis
Sampedro: "morir
forma parte de la vida y me gustaría escucharla hasta la última nota" (in
carta de Marga Iraburu de 12-09-05).
O facto é que José Cardoso
representa, também no De Profundis Valsa
Lenta, o homem da capital que recobra o ânimo aos primeiros sinais
quotidianos da vida lisboeta.
A noite e o silêncio, propiciadores do
convívio, foram-lhe inspiração e fascínio. Este José que se sentou muitas vezes
ao balcão a escrever, perto da televisão (que havia na altura) do Procópio, no
bar ex-líbris da zona das Amoreiras, frequentado por jornalistas, políticos,
artistas como a Amália Rodrigues, enquanto esperava pelos seus amigos, como me
confidenciou o funcionário mais antigo da casa.
No seu retorno à vida, que considerou
um renascer, a música foi a expressão artística que elegeu.
Naquela Lisboa onde
também o fadista Carlos do Carmo teve o privilégio de conhecer o José Cardoso
Pires (mais o Zeca Afonso, o Mário Castrim…), quando regressou à capital (JL nº 1124,
nov. 2013). Na Fotobiografia de José
Cardoso Pires, Inês Pedrosa afirma que José Cardoso ouvia “[…] a voz imensa
de Carlos do Carmo, sobretudo trazendo dentro a voz do seu Alexandre O’Neill,
numa Gaivota que o Zé ouvia até à exaustão, sempre maravilhado.” (PEDROSA,
1999:14)
Deambular e contactar com a realidade
é a cultura viva, à semelhança do escritor observador atento e participativo
nos ambientes sociais, que converte o espírito jornalista em matéria narrativa
ao sorver a ambiência dos locais noturnos.
David Mourão Ferreira afirmou um dia,
num programa da RTP (Parabéns, 1994),
que a fadista Amália Rodrigues fez mais pela poesia do que muitos especialistas
e estudiosos da área.
«Escuta! …do grande e insondável
vórtice daquela luz dourada em que o Vencedor se banha, toda a voz sem palavras
da natureza se ergue para em mil tons proclamar:» (in Voz do Silêncio, p.112).
SILÊNCIO QUE SE VAI CANTAR O FADO
OBRIGADO À DIREÇÃO DA SOCIEDADE
TEOSÓFICA DE PORTUGAL.
OBRIGADO PELA PRESENÇA AMIGA.
E PRONTO: ASSIM SE CUMPRIU MAIS UM EVENTO AGENDADO DO PROJETO FADO NAS ESCOLAS.
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