quinta-feira, 10 de novembro de 2016

In Memoriam a João Lobo Antunes

Obrigado pelo seu importantíssimo trabalho.

https://run.unl.pt/handle/10362/15316

3.1.         A ciência e o texto (pp. 83 a 100 da minha tese de doutoramento - disponível online)


A ciência que se destaca nos livros em estudo é a ciência médica hospitalar, de acordo com o assunto de cada um deles. Sabemos, pois, que a prática clínica da procura do diagnóstico a partir da recolha narrativa, de preferência ao próprio doente, a par do exame médico, continua vigente. Não obstante o médico se debater com a falta de tempo para ouvir o paciente.
Segundo o neurocirurgião João Lobo Antunes, o médico tende a interromper o discurso do doente em média dezoito segundos depois de este começar. Até pela comum dificuldade que muitas vezes o paciente tem em explicar as suas queixas.
Quando há algum tempo pediram a Lobo Antunes um breve comentário sobre o progresso da medicina na última década, este, a certa altura, respondeu em tom conclusivo:
Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão. (ANTUNES, João Lobo, 2012)
O fundador da medicina clínica de base científica, William Osler (1849-1919), que é citado com frequência por João Lobo Antunes, dizia que «era mais importante conhecer o doente que tem a doença do que conhecer a doença que o doente tem». O próprio neurocirurgião português afirma que o conhecimento contemporâneo não se deve apenas à investigação, mas, e cada vez mais, ao progresso dos outros saberes.
E então no âmbito da literatura, recorda-nos Fernando Pessoa que “A ciência/Pesa tanto e a vida é tão breve!” nos vv.20/1 do seu poema ortónimo «Ela canta pobre ceifeira» (in Cancioneiro, Athena nº 3, dezembro de 1924). Neste sentido poético, todo o texto é possível de entender-se como um parto mental doloroso, mas fascinante, que o poeta não recomenda, não obstante não resistir, cuja realidade mental é explicitada como um fenómeno inevitavelmente individual da natureza humana.
Se a própria definição de ciência é complexa, como nos lembra João Lobo Antunes, em última instância, poderá um dia ser tudo explicável, segundo um método científico próprio? E nessa altura tudo ficaria “nítido como um girassol”, sempre virado para a luz. Contudo, a mente individual, que tantas vezes atrapalha e se atrapalha, é indispensável para fazer ciência; mesmo quando quer desaparecer, não o consegue de todo (apesar dos métodos dos iogues baseados nas chamadas ciências ocultas da sabedoria antiga oriental).
No Monte Sinaí, José Luis Sampedro afirma o seguinte:
Toda «realidad» es imaginaria, cada cual se inventa su propio mundo único con briznas y materiales de afuera, los mismos que a otros sirven para hacerse mundos diferentes.  El Sinaí del ajedrecista seguro que no es lo mío y el mundo común a todos – sea lo que sea – lo desconocemos, aunque los científicos piensen que lo capturan en sus fórmulas: sólo fragmentos. No estoy contra la ciencia pero sí más a favor de la sabiduría, cuya base es el sentido de los límites y su aceptación. Algunos científicos son a la vez sabios. (1995:54/5)
A ciência tem avançado muito sempre com novos métodos de investigação, mas a arte, neste caso a literária, tem dado provas leais de ser bom aliado nos seus testemunhos e experiências singularmente retratadas. Para Octávio Paz a literatura é capaz de retratar as mudanças, porque “as prepara e profetiza… encarrega-se de representar em muitos casos nossos desejos e paixões.” (PAZ, 1994:123)
Neste estudo comparativo, o corpus central contém a nona edição do livro De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, de junho de 1998, quatro meses antes da sua morte e a primeira edição do livro La Ciencia y La Vida de março de 2009, constituído por diálogos em Cardona entre o escritor José Luis Sampedro e o seu médico assistente que se conheceram no hospital Monte Sinaí. O livro Monte Sinaí deste escritor catalão é o texto na primeira pessoa que narra essa experiência como paciente, publicado em 1998.
O texto português é o penúltimo livro escrito pelo autor, que morre a 26 de outubro do mesmo ano. Segundo o próprio, não é um livro terminal, mas um “espaço branco” no seu percurso. É uma obra habitualmente classificada como memória, devido ao seu carácter factual, com um discurso pessoal e subjetivo. O autor aceitou a classificação de livro de memórias (“uma memória da não memória”), do qual António Lobo Antunes, escritor seu amigo, num artigo da revista Visão, salientou a maturidade criativa e humana.
O livro Monte Sinaí é um dos muitos livros escritos pelo escritor, humanista e economista José Luis Sampedro que morreu com 96 anos. É uma narrativa autobiográfica que recorda a sua experiência hospitalar com realismo, sapiência e arte.
La Ciencia y La Vida resultou da cúmplice amizade entre o escritor e o médico cardiologista Valetín Fuster, que se conheceram no hospital em Nova Iorque com esse nome, Monte Sinaí, em meados de 1995, onde Sampedro esteve entre a vida e a morte, acometido por um grave episódio de doença cardíaca, que rememora no livro com o mesmo nome.
Longevo, José Luis Sampedro morreu há quase dois anos. Fez um percurso literário e participativo socialmente muito ativo, com grande sentido crítico quanto à conjuntura económico-social europeia. Foi um distinto economista e professor de Estrutura Económica na Universidade Complutense de Madrid.
Não obstante as suas fragilidades físicas, sobretudo ao nível cardíaco, Sampedro manteve-se sempre lúcido e interventivo e afirmava com frequência que, não obstante as muitas desigualdades no sistema organizacional político-social e cultural dos povos, o progresso inequívoco imparável a registar na história da humanidade tem sido a investigação científica.
De acordo com o tema da escrita individual, optei por focar a minha atenção nestas obras porque são um testemunho vivo autobiográfico de dois escritores que puderam e quiseram revelar a sua individualidade literária e intimidade próxima com a sua finitude física numa experiência narrativa memorialista, ao recuperar o espaço de escrita para dar o seu próprio testemunho e refletir num tempo de perplexidade perante o fenómeno social de final de século/milénio. Há a reconstrução do real no ato da escrita literária e da “viagem” ao interior de eu, numa preocupação de relatar o fenómeno de limite, onde convergem vários saberes implícitos ou explícitos das áreas científica e humanística. É uma viagem de escrita autobiográfica que não perde de vista o apoio médico efetivo durante o período narrado, indispensável à vida de qualquer utente hospitalizado.
A temática central é a realidade do eu acidentado, vivida e narrada de acordo com a experiência do escritor paciente, que se torna presente pelo ato da escrita. Segundo o próprio autor português, não foi fácil relatá-la porque exigia cultura científica (que assumiu não ter). No caso do autor catalão, este começou a tomar as suas primeiras notas fora da UVI do hospital:
Fue en la otra habitación, ya fuera de la UVI, a la que me trasladaron tres días más tarde, cuando comencé a usar mi libretita habitual para algunas anotaciones pour mémoire. Y es ahora, cada día más próximo a mi normalidad (o a una nueva normalidad, un nuevo estado, aún no lo sé) cuando empiezo sistemáticamente a narrarme a mí mismo lo vivido: La ascensión y descenso del sagrado Monte Sinaí em Nueva York. (SAMPEDRO, 1998:12)
La Ciencia y La Vida não se trata de uma narrativa, mas de três dias de conversa, durante os quais Sampedro pôde interagir e contar com o parecer científico do seu amigo médico ao longo do encontro, que foi publicado em livro por sua mulher Olga Lucas, jornalista e escritora, coautora no livro Escribir es Vivir.
A ideia de compreender melhor a temática do ser criativo, que por excelência se revela em situação de risco, surgiu-me durante os seminários do curso de doutoramento em Línguas, Culturas e Literaturas, nos quais se conversou sobre o novo paradigma. Este conceito foi criado pelo historiador da ciência Thomas S. Kuhn, que questionou o modelo clássico de conceber o conhecimento e a realidade, e propôs uma nova atitude epistemológica para compreender os fundamentos essenciais da realidade, tais como a natureza intrínseca do homem e a sua relação com o mundo, numa confluência de várias disciplinas das ciências e humanidades, que são observáveis na obra de José Cardoso Pires: a literatura, a música, a medicina, o jornalismo, o teatro e a psicologia.
Nos diálogos entre José Luis Sampedro e o seu médico há uma intencional multidisciplinaridade, em torno da ciência e da cultura. O conhecimento passa a ser entendido como interconhecimento, porque a sua incompletude requer o diálogo entre os diferentes saberes. O próprio escritor catalão, após a sua experiência no Monte Sinaí, é convidado a dar entrevistas sobre a experiência vivida. Os médicos receberam o seu testemunho literário com entusiasmo para o seu trabalho clínico. Tal como aconteceu com José Cardoso Pires e com o seu médico assistente João Lobo Antunes. O prefácio deste médico é, na íntegra, uma carta pessoal que ele escreve a José Cardoso e acaba publicada no De Profundis, Valsa Lenta (ver anexo 3).
As doenças cardíacas e os acidentes vasculares cerebrais são causas de morte de uma percentagem muito elevada de indivíduos. Estes tipos de acidente são tão perigosos quanto silenciosos e mortais. José Cardoso Pires e José Luis Sampedro puderam desafiar esse silêncio, partilhando as suas experiências pessoais ocorridas, curiosamente ambas em 1995, num discurso engenhoso, sóbrio e acessível, despojado de sentimentalismo afetado. Contudo, ao contrário de Sampedro, José Cardoso Pires foi definitivamente apanhado pela morte branca aos 73 anos, às primeiras horas do dia 26 de outubro de 1998, após um coma de quatro meses no hospital de Santa Maria, consequência do último AVC que sofreu. José Luis Sampedro nasceu mais cedo e morreu mais tarde, a 8 de abril de 2013.
Neste trabalho não podemos deixar de partilhar a convicção de que o decorrer da história da humanidade, que sabemos não ser linear e ascensional, mas feita por períodos de sucessão e confronto, está a cumprir mais um importante ciclo de exigência da compreensão da vida consciente no mundo infinitamente grande e no mundo infinitamente pequeno (serão realmente distintos?). O Homem vai conhecendo mais e melhor o seu corpo, a sua mente, o macro e o microrganismo que o integra e rodeia, à medida que desenvolve o seu pluralismo epistemológico com vista à compreensão do princípio da criação e o rumo da evolução do homem e do cosmos, não obstante os inúmeros avanços científicos e tecnológicos anteriormente alcançados com valiosos contributos como o evolucionismo, a relatividade e a mecânica quântica. Contudo, José Luis Sampedro recorda que a evolução do conhecimento do eu tem sido mais lenta do que o progresso tecnológico, o que vai comprometendo a saúde física e mental da humanidade.
O contributo filosófico da literatura ao longo dos tempos para a aprendizagem vivencial do Homem tem sido grande, na qual se destaca a poesia de Fernando Pessoa. “Afinal a melhor maneira de viajar é sentir” é a proposta do heterónimo Álvaro de Campos, ao se lançar na viagem da sua própria escrita.                         
No livro De Profundis, Valsa Lenta, o narrador autodiegético retrata uma realidade no curso final da sua existência, que constitui um elemento perturbador para o conhecimento do eu e para a narrativa pessoal: “Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto” (p. 25). É interessante verificar que narrativa e ciência aqui se fundem de tal modo na tessitura deste testemunho que o escritor faz da ciência a sua inspiração e o médico prefaciador faz da imaginação o seu ofício. É uma narrativa que procura o equilíbrio no mundo natural das emoções. Segundo José Cardoso Pires, há mais imaginação na ciência do que na literatura e explica exemplificando com a obra de Júlio Verne que descreve a Lua para o leitor, enquanto a imaginação da ciência levou o homem a pisar a Lua.
José Luis Sampedro em Monte Sinaí confidencia que só recupera a clareza do seu pensamento escrevendo segundo o impulso da necessidade, para se descobrir a si mesmo. Já nota que a sua memória grava cada vez menos o presente.
Alguns estudiosos do fenómeno literário, como Milan Kundera, consideram que tornar uma personagem viva é desvendar a fundo a sua problemática existencial.
Em La Ciencia y La Vida, José Luis Sampedro menciona o seu livro publicado em 1998 onde descreve e analisa a sua experiência limite, passando em revista a longa vida até então, no já citado Monte Sinaí, que integra o corpus do trabalho.
Y a mí, vivir cerca del cuerpo me parece importantísimo, teniendo en cuenta que al hablar del cuerpo incluyo a la mente, porque no nos damos cuenta, pero el ser humano vive en realidad en dos mundos distintos, pero simultáneos e implicados el uno en el otro. (SAMPEDRO, 2008:37)
No prefácio do neurocirurgião João Lobo Antunes ao livro de Cardoso Pires, este afirma que é reduzida a produção literária deste tipo de testemunhos, que é óbvio porque, como metaforicamente explica: “A razão é simples: é que ela [a doença limite] seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio onde ele se escoa […]”. Por interesse profissional, Lobo Antunes já tinha tentado recolher outros registos idênticos de doentes igualmente vítimas de AVC, em especial ligados à atividade criativa, mas sem sucesso. No caso de José Cardoso Pires, para além do fator sorte que o médico admite no seu caso, não deixa de adiantar uma explicação mais fundamentada, relacionada com a área cerebral que servia o escritor na sua arte e que seria mais “musculada” porque mais exercitada comparativamente com a generalidade dos seres humanos. Em entrevista dada a Maria Teresa Horta (in D.N., 1997), José Cardoso Pires confidenciou “[…] conversas que tive com o professor Lobo Antunes ele disse-me: "Você contou-me coisas que valia a pena que as relatasse”[…] E eu resolvi seguir o conselho.
Este prefácio é um atestado assinado pelo neurologista João Lobo Antunes, que reforça os pormenores do acidente vascular cerebral de José Cardoso Pires. O instante da lesão provocou o desligamento dos sentidos e o apagamento de muitas referências estáveis no acidentado. E a falha cerebral é contada a partir um homem duplicado que testemunha o ocorrido a José Cardoso Pires, repentinamente alheio ao que se passa.
João Lobo Antunes relaciona o génio deste escritor com um outro, da música, Wolfgang Amadeus Mozart, que tinha a área auditiva do córtex cerebral hipertrofiada. Mozart, para além de outras fraquezas físicas, sofria do Sindroma Schönlein-Henoch que lhe aumentou a tensão arterial e lhe causou um derrame, paralisando-o de um dos lados do seu corpo. Cerca de duas horas antes da sua morte, Wolfgang teve convulsões e entrou em estado comatoso; uma hora depois ele acordou, olhou em volta e virou o rosto para a parede. Então sofreu paralisia do nervo facial, também consequência do derrame.
De Profundis é título de um tema musical religioso famoso de autoria de Mozart, integrado nas quinze missas muito apreciadas do século dezoito, a época clássica austríaca. Apesar das diferentes interpretações musicais conhecidas com o mesmo título em diferentes épocas, a expressão latina De Profundis pertence ao Salmo cento e trinta da Bíblia, no qual o salmista, em sofrimento, implora a Deus misericórdia que, ao ser concedida, permite uma compreensão mais profunda da divindade. É um salmo penitencial usado principalmente na liturgia dos mortos. Uma outra menção exemplificativa é no soneto «Esfinge» do Livro de Soror Saudade de Florbela Espanca quando esta alude à noite na charneca erma e selvagem, e aí ouviria da boca do luar “O De Profundis triste da saudade…”(v.11).
Curiosamente o significado implícito ao título Monte Sinaí serve ao escritor catalão o intuito de reafirmar a sua gratidão em tom consonante e descomprometidamente religioso à equipa do hospital que o assistiu com desvelo e preocupação, apesar do seu estado calmo e alheio, de distanciamento do estado consciente, motivado pela sonolência febril e indolor:
Ahora, veinte días después de mi ingreso en la Unidad de Vigilancia Intensiva de Cardiología del neoyorquino hospital Mount Sinaí recuerdo con claridad y extrañeza mi despreocupación ante lo que pudiera sucederme. Asombro y curiosidad sí, pero ninguna inquietud, como si el seriamente enfermo no fuese yo. Y eso a pesar de que previamente mi recorrido hospitalario en la silla de ruedas que me recogió del taxi había sido un laberíntico recorrido a lo largo de sucesivos corredores […]. Mi enfermo corazón, cuyas arritmias, soplos y desaforadas distonías habían alarmado a nuestro médico de cabecera hasta el punto de apresurar mi hospitalización. (SAMPEDRO, 1998:8/9)
É com um sentimento de gratidão que José Cardoso Pires conta a sua saída do hospital e, por isso, resolve, nesse momento da narrativa, encenar um clima musical imaginário, evitando, contudo, o dramatismo: “Regressava a casa […]. Ponho-lhe música de fundo, uma música burlesca, se possível, como o «Quarteto das Dissonâncias» de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a música é um privilégio abençoado […]”. (p. 62)
José Cardoso Pires também não foi um homem de convicções religiosas, mas sobretudo de preocupações politicosociais e culturais, à semelhança de José Luis Sampedro, tão notórias nos livros destes autores.
Embora nos testemunhos autobiográficos haja uma componente inédita, ou seja, o encontro com a morte na primeira pessoa, é recorrente nestas obras dos dois autores uma compreensão séria da vida através da experiência da reflexão, que frequentemente os transporta para a dimensão sociológica e, no caso de José Cardoso Pires também para a artística numa vertente musical, que surge de forma expansiva e estruturante, visível numa estética literária polifónica, híbrida, fragmentada e mesmo metaficcionada: “Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao volante” (p. 61).
A conhecida experiência de colaborador da Gazeta Musical e de todas as Artes foi-lhe ferramenta útil para as suas elevações poéticas e incursões narrativas contagiado pelo mundo das sinfonias magistrais e pelas geometrias verbais. De resto, De Profundis é um texto com notações soltas regidas pela valsa lenta de distanciamento da consciência, que desperta para contar um fragmento da vida com reconstruídos sentimentos, bela e breve, sentida e embalada, consoante o talento e um leque de possibilidades interpretativas. “O ambiente, sim, lembro-me dele. A recordação que tenho é de uma brancura iluminada, as pessoas eram vultos muito brancos.[…] O que me ficou foi a brancura morna e bastante iluminada.”(in D.N., 1997)
A perda da consciência de si e dos outros num passado clínico recente é vivida por José Cardoso Pires como uma espécie de dança memorialista requintada pela visitação da morte branca, num mundo «afísico», que é experiência conhecida porque é rememorada pelo ser humano entretanto reconduzido à lucidez da imaginação. A imaginação que o autor indissocia da memória como ingrediente literário indispensável, é alimentada pelo vivido nas leituras possíveis, que sabemos nunca serem puramente objetivas, mas captadas e retidas segundo a claridade e cognição de experiências entretanto filtradas pelo próprio. “O ambiente, sim, lembro-me dele. A recordação que tenho é de uma brancura iluminada, as pessoas eram vultos muito brancos.[…] O que me ficou foi a brancura morna e bastante iluminada.”(in D.N., 1997)
José Luis Sampedro salienta a importância da reflexão sobre as emoções para, por exemplo, melhorar a vida social do ser humano. Segundo o diretor do Instituto Cardiovascular do hospital Monte Sinai, Valentín Fuster, a educação emocional é um dos fatores fundamentais para o trabalho clínico. Sampedro dá exemplo do seu caso quando foi internado, que assim que viu o doutor Fuster junto da sua cama, no hospital num sábado à noite, sentiu de imediato algum alívio no mal-estar de que padecia.
Fuster aproveita para falar dos benefícios dos placebos, favoráveis à predisposição para a ideia de tratamento das dores, que começa no momento prévio do contacto humano no consultório.
O caso de José Cardoso Pires foi considerado um caso intrigante a nível anatómico-funcional pelo facto de a memória não “viver” propriamente na zona lesada do cérebro do escritor, segundo a opinião do seu médico, embora, mais à frente no prefácio, este afirme que não existem centros individualizados, mas redes neuronais sincronizadas de funções complexas como a consciência e a memória.
Estudos recentes como os do neurocientista António Damásio reafirmam os ainda inúmeros mistérios do cérebro, revelando também algumas descobertas nomeadamente da importância do tronco encefálico para a chave da consciência, que é a parte mais interna do córtex cerebral.
Segundo a professora de Cambridge de neurociência Paula Tallal, a medula espinal faz parte do cérebro e a repetição de atividades como a memorização e o reconhecimento de padrões gera novas células nervosas na medula e no cérebro (Quero Saber, edição um, 2010).
Cardoso Pires e Sampedro cumpriram a missão difícil de retornar logo que possível ao ato da escrita, reconstruindo e comunicando um incidente de quase limite da sua vida em que eles, ao se autobiografarem, não perderam o domínio do relato como narradores omniscientes. Escreviam por necessidade, como um ato involuntário, embora com límpida consciência do mesmo.
Fernando Pessoa, que foi um filósofo da palavra, explica o pensamento, anterior ao ato implícito, como por exemplo no poema «Não sei ser triste a valer»: “Se a flor flore sem querer/Sem querer a gente pensa./O que nela é florescer/Em nós é ter consciência.”
O ato da escrita é solitário, mas não é puramente individual, porque quem escreve tem experiências enquanto ser social. E há momentos em que os outros reconhecem o esforço do escritor e querem participar do seu trabalho. Como o projeto de La Ciencia y La Vida que constituiu uma homenagem a Sampedro pelos seus noventa anos, por iniciativa do Círculo de Leitores de Madrid.
José Cardoso Pires e José Luis Sampedro, ao recordarem os seus acidentes clínicos, vão selecionar factos e sentimentos, conscientes de que o eu, quando se observa mentalmente, se torna outro, num fenómeno de polifonia.
José Cardoso Pires narra o incidente acontecido em Janeiro de 1995, numa quinta-feira à hora do pequeno-almoço, com dados precisos. Ao longo da narrativa, não menciona a duração deste internamento, mas a gravidade do seu estado de isquemia, como foi diagnosticado, embora de recuperação lenta e incompleta; foi superado com o seu despertar inesperado, o que antecipou a alta hospitalar.
Segundo os registos das páginas 35 e 36, de doze a vinte de Janeiro, esteve sujeito a testes de escrita e fala enquanto eram reunidos dados para o seu historial clínico. “Incrível, a memória tinha reaparecido, o coágulo de sangue, esse selo que me estrangulara o cérebro, diluíra-se no segredo do corpo e eis-me livre, renascido []” (p. 47). Nesta transcrição, as palavras «livre» e «renascido» constituem uma atitude consciente de alegria que foi anunciada no início da frase pelo adjetivo «incrível», diferente dos sorrisos que José Cardoso Pires, tranquilamente, oferecia a toda a gente durante o seu internamento: “Ah, não! Andei perfeitamente tranquilo, a sorrir para toda a gente. Eu, que não sou sorridente, como sabe, acho que nunca fui tão simpático.” (in D.N., 1997)
A sua narrativa não quer dar espaço à conjetura (e mesmo os testemunhos alheios, exteriores, são usados com muita escassez e prudência), não obstante a importância do olhar do outro na construção da sua identidade. Por isso se detém no limiar em que começa a perda da memória, da identidade própria e da linguagem (e, com esta, é a possibilidade de identificação do mundo que se perde) e prossegue a partir do momento em que tudo é apenas fragmentos. O que emerge desta passagem é a ideia de que a experiência é sempre uma interpretação, que é a construção de um real. E uma experiência que não se produz, só é possível interpretar a posteriori.
O mesmo acontece com José Luis Sampedro em Monte Sinaí e, mais tarde, em diálogo com Valentín Fuster, em que refletem sobre estas situações que fazem recordar o sentimento de perda do autodomínio e do distanciamento da consciência.
José Cardoso Pires, no momento de desfrutar da manhã luminosa do exterior em pleno mês de Janeiro, pôde fugir da “[…] pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu” (p. 62)
Esta simples, mas expressiva imagem (qual genial cena que recorda o Frankenstein de Shelley) de um especialista arrojado que decide desbravar os caminhos do desconhecido e do incerto no mundo encefálico e sacrifica alguém, indefeso, em prol da experiência neurocientífica, é mais um curto cenário construído pela linguagem metafórica do autor, com inspiração numa imagem fantástica conhecida de encontro iminente com a morte, pelo temor da supremacia desta sobre os avanços da ciência.
Segundo Paul Ricoeur (Teoria da Interpretação, 1976), a metáfora de tensão não é traduzível e cria o seu próprio sentido. Alguém suspenso entre o céu e a terra, que não é um trapezista, nem um paraquedista, mas um doente em perigo de vida, é metáfora viva, pois acrescenta algo de novo à realidade narrada. Assim, o sujeito vai construindo a sua identidade também nestes episódios da sua narrativa.
O texto literário tem um efeito no seu real porque é fundamental para a sua identidade. “[…] uma metáfora é no sentido forte da palavra, um evento de discurso. O resultado é que uma metáfora, ao ser acolhida e aceite por uma comunidade linguística, tende a confundir-se com uma extensão da polissemia das palavras.” (pp.75/6)
De Profundis, Valsa Lenta é uma narrativa com sete pequenos capítulos não numerados, nos quais o escritor inicia cada um supracitando colegas das letras, cuja epígrafe escolhida alude, naturalmente, ao tópico em desenvolvimento, como aquela de Mark Twain «A notícia da minha morte foi um exagero» em telegrama à Associated Press. O passado recordado, como a noite branca, fizeram José Cardoso Pires temer ainda alguma fragilidade no seu cérebro, adiando as amadas aventuras pelas experiências da palavra escrita e lida, algum tempo após o resgate entretanto acometido da “ilha dos náufragos” (p.57).
“Bem sei, a morte branca não existe, eu estive lá. Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia aos outros, não me tocava. Era um glaciar, a morte branca. A memória congelada.” (pp.65-66) Esta citação é retirada das «Entrelinhas duma Memória», na parte final do livro, que pressupõe uma narração de outrem subjacente ao texto antes da sua construção (ele próprio declara na entrevista já citada ao D.N. que não imaginou nada).
Esta parte final do livro constitui também um momento oportuno para o autor partilhar dados de algum modo ligados, por exemplo, ao desastre de automóvel de que foi vítima três meses antes do AVC que o obrigou a dar entrada nos cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria com três costelas cravadas na pleura e do qual a sua memória se alienou. Ainda nesta revela que esta narrativa se trata de um apontamento pessoal, com possíveis erros e imprecisões que podem revelar um comportamento em crise e complexos de interioridade, que se confirmam ao longo do livro, sugerido com as palavras que escolhe de Samuel Beckett «Já não sou eu, mas outro que mal acaba de começar» (p. 27).
Simónides de Kéos, o poeta grego da Antiguidade clássica, para quem a memória era um instrumento fundamental para a poesia, constitui a epígrafe de abertura da narrativa propriamente dita: «Quando perdeste o sonho e a certeza tornaste-te desordem e fizeste-te nuvem» (Epitáfio nas Termópilas). O cultor da mimesis refere-se à existência humana que é construtora da essência. Não se pode ficar num mundo que não se representa, onde deve o sonho comanda(r) a vida.
Sete, número com uma simbologia bíblica forte, são as epígrafes que abrem os sete capítulos da obra citada de José Cardoso Pires, de acordo com o conteúdo da situação narrada em cada, desde o momento do seu acidente em casa até ao seu regresso, dos autores a saber respetivamente: de Simónides de Kéos, de Carlos Drummond de Andrade, de Samuel Beckett, de Álvaro de Campos, de Mark Twain, de Ana Akhmatova e de Herberto Helder. O sentido comum é a ideia de liberdade urgente.
Segundo o filósofo britânico David Hume, sem memória não há consciência. Contudo, há uma ordem implicada que a ciência observa no universo e no homem como um ser não fragmentado, ligado, não separado da ordem (David Bohm, 1988), ainda que possa descrever-se segundo uma ordem explicada, mais mecanicista, pela interação das suas partes constitutivas. “O homem e o mundo encontram-se ligados como o caracol com a sua casa” (Milan Kundera, p.51)
Uma construção poética assemelha-se a uma peça de música pela sua disposição afetiva e símbolos articulados. A presença latente da poesia, segundo o propósito de José Cardoso Pires neste livro, é também denunciada pelas suas afinidades com o texto musical que abre, enriquece e encerra esta narrativa, aparentemente num tom dolorido, mas que é um Requiem de acentuada gratidão e de lucidez pela visão unificadora da Literatura e das Ciências quando, por exemplo, cita nomes destas áreas como Carlos Drummond de Andrade, Mark Twain, Álvaro de Campos, Leo Szilard (um dos génios da física), e o próprio João Lobos Antunes: “Os cientistas deste e do próximo século sabem que a tarefa é «thinking into the human brain», pois continuamos todos sem saber porque é que o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo»” (p. 18). Esta visão humanista focaliza a atenção nas diferentes atividades e resultados concertados da realidade humana.
A capa das primeiras edições desta obra foi expressivamente ilustrada com um desenho de Mário Eloy (A Morte na Gaiola), que é uma metáfora à morte ocorrida em clausura, cuja ideia é transposta, neste livro, para uma espécie de reclusão dos doentes hospitalizados, segundo o tópico em reflexão pelo autor, nomeadamente num propósito de intertextualidade; como aquele do pensamento de Herberto Helder que impele o seu interlocutor a sair depressa (no caso de José Cardoso Pires do hospital) porque aí a noite não salva os ecos.


Ou a ideia da morte que está no desenho da “mariposa–caveira”, uma espécie de borboleta cujo corpo é um esqueleto humano. Segundo o seu autor, que os mexicanos adotaram como figurante de procissões de carnaval.
O hibridismo da figura na imagem a seguir apresentada convoca o estranho e representa o fantasma da morte (situada no final do penúltimo capítulo do livro, p.55, a propósito do humor negro dos companheiros de quarto de José Cardoso Pires, no hospital).





Ou ainda a outra ilustração seguinte que é um desenho de Gunther Grass (na p.31) e que representa o sintoma de medo perante a castração do escritor. A ideia da impossibilidade de voltar a escrever, simbolizada no sapo monstruoso que tem diante da pata dianteira uma caneta-tinteiro, caída e inútil. O título do desenho – “Maus presságios” – também é sugestivo do medo dessa incapacidade de escrita.
De notar que Gunther Grass foi um intelectual, romancista, dramaturgo, poeta e artista plástico alemão que recebeu o prémio Nobel da Literatura em 1999. Infelizmente, José Cardoso Pires já não teve oportunidade de sentir um pouco a alegria do colega. Na perspetiva de Cardoso Pires, os prémios não eram só do premiado. Ao receber o prémio Pessoa, ele próprio telefonou ao amigo Júlio Pomar e disse-lhe: “Olha, é para te dar os parabéns porque ganhei o Prémio Pessoa.” (PEDROSA, 1999:113)
Segue-se a imagem referida:

São os ecos metáfora do passado recordado, como os da noite branca, que fizeram José Cardoso Pires temer ainda alguma fragilidade no seu cérebro, adiando as amadas aventuras pelas insondáveis experiências da palavra escrita e lida, algum tempo após o resgate entretanto euforicamente acometido da “ilha dos náufragos” (p.57), ao contrário de Sampedro que as iniciou ainda dentro do espaço hospitalar. Salvaguarde-se aqui a ideia de euforia que se associa mais aos familiares do acidentado do que ao próprio, não obstante a sua percetível vontade de “fugir” daquela situação.
O testemunho escrito de José Cardoso Pires transmite uma mensagem de descoberta por parte do autor do bem precioso que é a memória, que considera acima da inteligência, porque permite o sentimento de gratidão inestimável à ciência, à dimensão humana do seu trabalho e aos seus profissionais que a têm posto ao serviço de outro e da civilização.
A inteligência é um processo mental que envolve a memória mas que sem ela não consegue construir qualquer projeto identitário.
Monte Sinaí é uma narrativa com 84 páginas, sem capítulos, que tem como epígrafe de abertura o agradecimento ao doutor Miguel Sáez que o levou ao hospital e aos doutores Valentín Fuster e Jill Kalman que lá o salvaram. De tom poético, vagamente melancólico, é uma obra de vocabulário vivo e subtil, que nos permite conhecer o percurso vital do autor e refletir sobre a fragilidade da vida humana.
La Ciencia y La Vida é um livro composto por seis capítulos, com seis tópicos diferentes, que termina com um testemunho breve de Fuster sobre o estado clínico grave em que se encontrava Sampedro quando o conheceu, o qual, logo que se viu um pouco melhor, prematuramente retomou a sua escrita na cama do hospital, sem autorização médica. O epílogo serve para partilhar o pensamento de que muito ficou por dizer, mas mais ainda por aprender. “El futuro es manejable, La Vida es imparable.” (SAMPEDRO, 2008:252)
José Luis Sampedro sempre considerou, até aos seus últimos dias, a ciência o pensamento saudável das sociedades modernas ocidentais em crise. Quando se encontrava na Unidade de Vigilância Intensiva de Cardiologia do hospital nova-iorquino, sentiu-se contudo estranhamente confiante, como se o doente fosse outro.
Ahora, veinte días después de mi ingresso en la Unidad de Vigilancia Intensiva de Cardiología del neoyorquino hospital Mount Sinaï recuerdo con claridad y extrañeza mi despreocupación ante lo que pudiera sucederme. Asombro y curiosidad sí, pero ninguna inquietud, como si el seriamente enfermo no fuese yo. (SAMPEDRO, 1995:10).
O ato da escrita de Sampedro deste testemunho foi possível num espaço de tempo mais curto do que no caso de Cardoso Pires. O internamento de urgência do escritor catalão pareceu-lhe uma viagem estranha, alheia e afastada de si. Apesar de não sofrer a perda de consciência, nem ter dores, não se dedicou às suas habituais anotações porque o escritor, com quem Sampedro se sentia a coabitar, se dissociou do eu enfermo.
A sua prazenteira estadia em Nova Iorque com os seus filhos, transformou-se “en una estancia hospitalaria”. A doutora Vane leu a nota que fora enviada do laboratório e que dizia que havia una infeção no sangue, logo que era necessário averiguar o agente da contaminação. Entretanto o coração ficou controlado e a identificação do agente infeccioso ficou em boas mãos.




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