https://run.unl.pt/handle/10362/15316
3.1. A ciência e o texto (pp. 83 a 100 da minha tese de doutoramento - disponível online)
A
ciência que se destaca nos livros em estudo é a ciência médica hospitalar, de
acordo com o assunto de cada um deles. Sabemos, pois, que a prática clínica da
procura do diagnóstico a partir da recolha narrativa, de preferência ao próprio
doente, a par do exame médico, continua vigente. Não obstante o médico se
debater com a falta de tempo para ouvir o paciente.
Segundo
o neurocirurgião João Lobo Antunes, o médico tende a interromper o discurso do
doente em média dezoito segundos depois de este começar. Até pela comum dificuldade
que muitas vezes o paciente tem em explicar as suas queixas.
Quando
há algum tempo pediram a Lobo Antunes um breve comentário sobre o progresso da
medicina na última década, este, a certa altura, respondeu em tom conclusivo:
Não sei o que nos espera, mas sei
o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela
tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a
individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada
vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento
sem empatia ou compaixão. (ANTUNES, João Lobo, 2012)
O
fundador da medicina clínica de base científica, William Osler (1849-1919), que
é citado com frequência por João Lobo Antunes, dizia que «era mais importante
conhecer o doente que tem a doença do que conhecer a doença que o doente tem».
O próprio neurocirurgião português afirma que o conhecimento contemporâneo não
se deve apenas à investigação, mas, e cada vez mais, ao progresso dos outros
saberes.
E
então no âmbito da literatura, recorda-nos Fernando Pessoa que “A ciência/Pesa
tanto e a vida é tão breve!” nos vv.20/1 do seu poema ortónimo «Ela canta pobre
ceifeira» (in Cancioneiro, Athena nº
3, dezembro de 1924). Neste sentido poético, todo o texto é possível de
entender-se como um parto mental doloroso, mas fascinante, que o poeta não
recomenda, não obstante não resistir, cuja realidade mental é explicitada como
um fenómeno inevitavelmente individual da natureza humana.
Se
a própria definição de ciência é complexa, como nos lembra João Lobo Antunes,
em última instância, poderá um dia ser tudo explicável, segundo um método científico
próprio? E nessa altura tudo ficaria “nítido como um girassol”, sempre virado
para a luz. Contudo, a mente individual, que tantas vezes atrapalha e se
atrapalha, é indispensável para fazer ciência; mesmo quando quer desaparecer,
não o consegue de todo (apesar dos métodos dos iogues baseados nas chamadas
ciências ocultas da sabedoria antiga oriental).
No
Monte Sinaí, José Luis Sampedro
afirma o seguinte:
Toda «realidad» es imaginaria, cada cual se inventa su propio mundo
único con briznas y materiales de afuera, los mismos que a otros sirven para hacerse
mundos diferentes. El Sinaí del ajedrecista seguro que no es
lo mío y el mundo común a todos – sea lo que sea – lo desconocemos, aunque los
científicos piensen que lo capturan en sus fórmulas: sólo fragmentos. No estoy
contra la ciencia pero sí más a favor de la sabiduría, cuya base es el sentido
de los límites y su aceptación. Algunos
científicos son a la vez sabios. (1995:54/5)
A
ciência tem avançado muito sempre com novos métodos de investigação, mas a
arte, neste caso a literária, tem dado provas leais de ser bom aliado nos seus
testemunhos e experiências singularmente retratadas. Para Octávio Paz a
literatura é capaz de retratar as mudanças, porque “as prepara e profetiza…
encarrega-se de representar em muitos casos nossos desejos e paixões.” (PAZ,
1994:123)
Neste
estudo comparativo, o corpus central contém
a nona edição do livro De Profundis,
Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, de junho de 1998, quatro meses antes da
sua morte e a primeira edição do livro La
Ciencia y La Vida de março de 2009, constituído por diálogos em Cardona
entre o escritor José Luis Sampedro e o seu médico assistente que se conheceram
no hospital Monte Sinaí. O livro Monte
Sinaí deste escritor catalão é o texto na primeira pessoa que narra essa
experiência como paciente, publicado em 1998.
O
texto português é o penúltimo livro escrito pelo autor, que morre a 26 de outubro
do mesmo ano. Segundo o próprio, não é um livro terminal, mas um “espaço branco” no seu percurso. É uma
obra habitualmente classificada como memória, devido ao seu carácter factual,
com um discurso pessoal e subjetivo. O autor aceitou a classificação de livro
de memórias (“uma memória da não memória”), do qual António Lobo Antunes,
escritor seu amigo, num artigo da revista Visão,
salientou a maturidade criativa e humana.
O
livro Monte Sinaí é um dos muitos
livros escritos pelo escritor, humanista e economista José Luis Sampedro que morreu
com 96 anos. É uma narrativa autobiográfica que recorda a sua experiência
hospitalar com realismo, sapiência e arte.
La Ciencia y La Vida
resultou da cúmplice amizade entre o escritor e o médico cardiologista Valetín
Fuster, que se conheceram no hospital em Nova Iorque com esse nome, Monte Sinaí,
em meados de 1995, onde Sampedro esteve entre a vida e a morte, acometido por
um grave episódio de doença cardíaca, que rememora no livro com o mesmo nome.
Longevo,
José Luis Sampedro morreu há quase dois anos. Fez um percurso literário e participativo
socialmente muito ativo, com grande sentido crítico quanto à conjuntura económico-social
europeia. Foi um distinto economista e professor de Estrutura Económica na
Universidade Complutense de Madrid.
Não
obstante as suas fragilidades físicas, sobretudo ao nível cardíaco, Sampedro
manteve-se sempre lúcido e interventivo e afirmava com frequência que, não obstante
as muitas desigualdades no sistema organizacional político-social e cultural
dos povos, o progresso inequívoco imparável a registar na história da
humanidade tem sido a investigação científica.
De
acordo com o tema da escrita individual, optei por focar a minha atenção nestas
obras porque são um testemunho vivo autobiográfico de dois escritores que
puderam e quiseram revelar a sua individualidade literária e intimidade próxima
com a sua finitude física numa experiência narrativa memorialista, ao recuperar
o espaço de escrita para dar o seu próprio testemunho e refletir num tempo de
perplexidade perante o fenómeno social de final de século/milénio. Há a
reconstrução do real no ato da escrita literária e da “viagem” ao interior de eu, numa preocupação de relatar o
fenómeno de limite, onde convergem vários saberes implícitos ou explícitos das
áreas científica e humanística. É uma viagem de escrita autobiográfica que não
perde de vista o apoio médico efetivo durante o período narrado, indispensável
à vida de qualquer utente hospitalizado.
A
temática central é a realidade do eu
acidentado, vivida e narrada de acordo com a experiência do escritor paciente, que
se torna presente pelo ato da escrita. Segundo o próprio autor português, não
foi fácil relatá-la porque exigia cultura científica (que assumiu não ter). No
caso do autor catalão, este começou a tomar as suas primeiras notas fora da UVI
do hospital:
Fue en la otra habitación, ya fuera de la UVI, a la que me trasladaron
tres días más tarde, cuando comencé a usar mi libretita habitual para algunas
anotaciones pour mémoire. Y es ahora,
cada día más próximo a mi normalidad (o a una nueva normalidad, un nuevo
estado, aún no lo sé) cuando empiezo sistemáticamente a narrarme a mí mismo lo
vivido: La ascensión y descenso del sagrado Monte Sinaí em Nueva York. (SAMPEDRO, 1998:12)
Já
La Ciencia y La Vida não se trata de
uma narrativa, mas de três dias de conversa, durante os quais Sampedro pôde interagir
e contar com o parecer científico do seu amigo médico ao longo do encontro, que
foi publicado em livro por sua mulher Olga Lucas, jornalista e escritora,
coautora no livro Escribir es Vivir.
A
ideia de compreender melhor a temática do ser criativo, que por excelência se
revela em situação de risco, surgiu-me durante os seminários do curso de doutoramento
em Línguas, Culturas e Literaturas, nos quais se conversou sobre o novo
paradigma. Este conceito foi criado pelo historiador da ciência Thomas S. Kuhn,
que questionou o modelo clássico de conceber o conhecimento e a realidade, e
propôs uma nova atitude epistemológica para compreender os fundamentos
essenciais da realidade, tais como a natureza intrínseca do homem e a sua
relação com o mundo, numa confluência de várias disciplinas das ciências e
humanidades, que são observáveis na obra de José Cardoso Pires: a literatura, a
música, a medicina, o jornalismo, o teatro e a psicologia.
Nos
diálogos entre José Luis Sampedro e o seu médico há uma intencional
multidisciplinaridade, em torno da ciência e da cultura. O conhecimento passa a
ser entendido como interconhecimento, porque a sua incompletude requer o
diálogo entre os diferentes saberes. O próprio escritor catalão, após a sua
experiência no Monte Sinaí, é convidado a dar entrevistas sobre a experiência
vivida. Os médicos receberam o seu testemunho literário com entusiasmo para o
seu trabalho clínico. Tal como aconteceu com José Cardoso Pires e com o seu
médico assistente João Lobo Antunes. O prefácio deste médico é, na íntegra, uma
carta pessoal que ele escreve a José Cardoso e acaba publicada no De Profundis, Valsa Lenta (ver anexo 3).
As
doenças cardíacas e os acidentes vasculares cerebrais são causas de morte de
uma percentagem muito elevada de indivíduos. Estes tipos de acidente são tão
perigosos quanto silenciosos e mortais. José Cardoso Pires e José Luis Sampedro
puderam desafiar esse silêncio, partilhando as suas experiências pessoais
ocorridas, curiosamente ambas em 1995, num discurso engenhoso, sóbrio e
acessível, despojado de sentimentalismo afetado. Contudo, ao contrário de
Sampedro, José Cardoso Pires foi definitivamente apanhado pela morte branca aos
73 anos, às primeiras horas do dia 26 de outubro de 1998, após um coma de
quatro meses no hospital de Santa Maria, consequência do último AVC que sofreu.
José Luis Sampedro nasceu mais cedo e morreu mais tarde, a 8 de abril de 2013.
Neste
trabalho não podemos deixar de partilhar a convicção de que o decorrer da
história da humanidade, que sabemos não ser linear e ascensional, mas feita por
períodos de sucessão e confronto, está a cumprir mais um importante ciclo de
exigência da compreensão da vida consciente no mundo infinitamente grande e no
mundo infinitamente pequeno (serão realmente distintos?). O Homem vai conhecendo
mais e melhor o seu corpo, a sua mente, o macro e o microrganismo que o integra
e rodeia, à medida que desenvolve o seu pluralismo epistemológico com vista à
compreensão do princípio da criação e o rumo da evolução do homem e do cosmos,
não obstante os inúmeros avanços científicos e tecnológicos anteriormente alcançados
com valiosos contributos como o evolucionismo, a relatividade e a mecânica
quântica. Contudo, José Luis Sampedro recorda que a evolução do conhecimento do
eu tem sido mais lenta do que o
progresso tecnológico, o que vai comprometendo a saúde física e mental da
humanidade.
O
contributo filosófico da literatura ao longo dos tempos para a aprendizagem
vivencial do Homem tem sido grande, na qual se destaca a poesia de Fernando
Pessoa. “Afinal a melhor maneira de viajar é sentir” é a proposta do heterónimo
Álvaro de Campos, ao se lançar na viagem da sua própria escrita.
No
livro De Profundis, Valsa Lenta, o narrador
autodiegético retrata uma realidade no curso final da sua existência, que
constitui um elemento perturbador para o conhecimento do eu e para a narrativa pessoal: “Sem memória esvai-se o presente que
simultaneamente já é passado morto” (p. 25). É interessante verificar que
narrativa e ciência aqui se fundem de tal modo na tessitura deste testemunho
que o escritor faz da ciência a sua inspiração e o médico prefaciador faz da
imaginação o seu ofício. É uma narrativa que procura o equilíbrio no mundo
natural das emoções. Segundo José Cardoso Pires, há mais imaginação na ciência
do que na literatura e explica exemplificando com a obra de Júlio Verne que
descreve a Lua para o leitor, enquanto a imaginação da ciência levou o homem a
pisar a Lua.
José
Luis Sampedro em Monte Sinaí
confidencia que só recupera a clareza do seu pensamento escrevendo segundo o
impulso da necessidade, para se descobrir a si mesmo. Já nota que a sua memória
grava cada vez menos o presente.
Alguns
estudiosos do fenómeno literário, como Milan Kundera, consideram que tornar uma
personagem viva é desvendar a fundo a sua problemática existencial.
Em
La Ciencia y La Vida, José Luis
Sampedro menciona o seu livro publicado em 1998 onde descreve e analisa a sua
experiência limite, passando em revista a longa vida até então, no já citado Monte Sinaí, que integra o corpus do trabalho.
Y a mí, vivir cerca del cuerpo me parece importantísimo, teniendo en
cuenta que al hablar del cuerpo incluyo a la mente, porque no nos damos cuenta,
pero el ser humano vive en realidad en dos mundos distintos, pero simultáneos e
implicados el uno en el otro. (SAMPEDRO,
2008:37)
No
prefácio do neurocirurgião João Lobo Antunes ao livro de Cardoso Pires, este
afirma que é reduzida a produção literária deste tipo de testemunhos, que é
óbvio porque, como metaforicamente explica: “A razão é simples: é que ela [a
doença limite] seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio onde
ele se escoa […]”. Por interesse
profissional, Lobo Antunes já tinha tentado recolher outros registos idênticos
de doentes igualmente vítimas de AVC, em especial ligados à atividade criativa,
mas sem sucesso. No caso de José Cardoso Pires, para além do fator sorte que o
médico admite no seu caso, não deixa de adiantar uma explicação mais
fundamentada, relacionada com a área cerebral que servia o escritor na sua arte
e que seria mais “musculada” porque mais exercitada comparativamente com a
generalidade dos seres humanos. Em entrevista dada a Maria Teresa Horta (in D.N., 1997), José Cardoso Pires
confidenciou “[…] conversas que tive com o professor Lobo Antunes ele disse-me:
"Você contou-me coisas que valia a pena que as relatasse”[…] E eu resolvi
seguir o conselho.”
Este
prefácio é um atestado assinado pelo neurologista João Lobo Antunes, que
reforça os pormenores do acidente vascular cerebral de José Cardoso Pires. O
instante da lesão provocou o desligamento dos sentidos e o apagamento de muitas
referências estáveis no acidentado. E a falha cerebral é contada a partir um
homem duplicado que testemunha o ocorrido a José Cardoso Pires, repentinamente
alheio ao que se passa.
João
Lobo Antunes relaciona o génio deste escritor com um outro, da música, Wolfgang
Amadeus Mozart, que tinha a área auditiva do córtex cerebral hipertrofiada.
Mozart, para além de outras fraquezas físicas, sofria do Sindroma Schönlein-Henoch que lhe aumentou a tensão arterial e lhe
causou um derrame, paralisando-o de um dos lados do seu corpo. Cerca de duas
horas antes da sua morte, Wolfgang teve convulsões e entrou em estado comatoso;
uma hora depois ele acordou, olhou em volta e virou o rosto para a parede.
Então sofreu paralisia do nervo facial, também consequência do derrame.
De Profundis
é título de um tema musical religioso famoso de autoria de Mozart, integrado
nas quinze missas muito apreciadas do século dezoito, a época clássica
austríaca. Apesar das diferentes interpretações musicais conhecidas com o mesmo
título em diferentes épocas, a expressão latina De Profundis pertence ao Salmo cento e trinta da Bíblia, no qual o
salmista, em sofrimento, implora a Deus misericórdia que, ao ser concedida,
permite uma compreensão mais profunda da divindade. É um salmo penitencial
usado principalmente na liturgia dos mortos. Uma outra menção exemplificativa é
no soneto «Esfinge» do Livro de Soror
Saudade de Florbela Espanca quando esta alude à noite na charneca erma e
selvagem, e aí ouviria da boca do luar “O De
Profundis triste da saudade…”(v.11).
Curiosamente
o significado implícito ao título Monte
Sinaí serve ao escritor catalão o intuito de reafirmar a sua gratidão em
tom consonante e descomprometidamente religioso à equipa do hospital que o
assistiu com desvelo e preocupação, apesar do seu estado calmo e alheio, de
distanciamento do estado consciente, motivado pela sonolência febril e indolor:
Ahora, veinte días después de mi ingreso en la Unidad de Vigilancia
Intensiva de Cardiología del neoyorquino hospital Mount Sinaí recuerdo con
claridad y extrañeza mi despreocupación ante lo que pudiera sucederme. Asombro
y curiosidad sí, pero ninguna inquietud, como si el seriamente enfermo no fuese
yo. Y eso a pesar de que previamente mi recorrido hospitalario en la silla de
ruedas que me recogió del taxi había sido un laberíntico recorrido a lo largo
de sucesivos corredores […]. Mi enfermo corazón, cuyas arritmias, soplos y
desaforadas distonías habían alarmado a nuestro médico de cabecera hasta el
punto de apresurar mi hospitalización. (SAMPEDRO,
1998:8/9)
É
com um sentimento de gratidão que José Cardoso Pires conta a sua saída do
hospital e, por isso, resolve, nesse momento da narrativa, encenar um clima
musical imaginário, evitando, contudo, o dramatismo: “Regressava a casa […].
Ponho-lhe música de fundo, uma música burlesca, se possível, como o «Quarteto
das Dissonâncias» de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a
música é um privilégio abençoado […]”. (p. 62)
José
Cardoso Pires também não foi um homem de convicções religiosas, mas sobretudo
de preocupações politicosociais e culturais, à semelhança de José Luis Sampedro,
tão notórias nos livros destes autores.
Embora
nos testemunhos autobiográficos haja uma componente inédita, ou seja, o
encontro com a morte na primeira pessoa, é recorrente nestas obras dos dois
autores uma compreensão séria da vida através da experiência da reflexão, que
frequentemente os transporta para a dimensão sociológica e, no caso de José Cardoso
Pires também para a artística numa vertente musical, que surge de forma
expansiva e estruturante, visível numa estética literária polifónica, híbrida,
fragmentada e mesmo metaficcionada: “Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou
eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel,
redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao
volante” (p. 61).
A
conhecida experiência de colaborador da Gazeta
Musical e de todas as Artes foi-lhe ferramenta útil para as suas elevações
poéticas e incursões narrativas contagiado pelo mundo das sinfonias magistrais
e pelas geometrias verbais. De resto, De
Profundis é um texto com notações soltas regidas pela valsa lenta de
distanciamento da consciência, que desperta para contar um fragmento da vida
com reconstruídos sentimentos, bela e breve, sentida e embalada, consoante o
talento e um leque de possibilidades interpretativas. “O ambiente, sim,
lembro-me dele. A recordação que tenho é de uma brancura iluminada, as pessoas
eram vultos muito brancos.[…] O que me ficou foi a brancura morna e bastante
iluminada.”(in D.N., 1997)
A perda da consciência
de si e dos outros num passado clínico recente é vivida por José Cardoso Pires como
uma espécie de dança memorialista requintada pela visitação da morte branca,
num mundo «afísico», que é experiência conhecida porque é rememorada pelo ser
humano entretanto reconduzido à lucidez da imaginação. A imaginação que o autor
indissocia da memória como ingrediente literário indispensável, é alimentada pelo
vivido nas leituras possíveis, que sabemos nunca serem puramente objetivas, mas
captadas e retidas segundo a claridade e cognição de experiências entretanto
filtradas pelo próprio. “O ambiente, sim, lembro-me dele. A recordação que
tenho é de uma brancura iluminada, as pessoas eram vultos muito brancos.[…] O
que me ficou foi a brancura morna e bastante iluminada.”(in D.N., 1997)
José Luis Sampedro salienta
a importância da reflexão sobre as emoções para, por exemplo, melhorar a vida
social do ser humano. Segundo o diretor do Instituto Cardiovascular do hospital
Monte Sinai, Valentín Fuster, a educação emocional é um dos fatores
fundamentais para o trabalho clínico. Sampedro dá exemplo do seu caso quando
foi internado, que assim que viu o doutor Fuster junto da sua cama, no hospital
num sábado à noite, sentiu de imediato algum alívio no mal-estar de que padecia.
Fuster aproveita
para falar dos benefícios dos placebos, favoráveis à predisposição para a ideia
de tratamento das dores, que começa no momento prévio do contacto humano no
consultório.
O caso de José Cardoso
Pires foi considerado um caso intrigante a nível anatómico-funcional pelo facto
de a memória não “viver” propriamente na zona lesada do cérebro do escritor,
segundo a opinião do seu médico, embora, mais à frente no prefácio, este afirme
que não existem centros individualizados, mas redes neuronais sincronizadas de
funções complexas como a consciência e a memória.
Estudos recentes
como os do neurocientista António Damásio reafirmam os ainda inúmeros mistérios
do cérebro, revelando também algumas descobertas nomeadamente da importância do
tronco encefálico para a chave da consciência, que é a parte mais interna do
córtex cerebral.
Segundo a
professora de Cambridge de neurociência Paula Tallal, a medula espinal faz parte
do cérebro e a repetição de atividades como a memorização e o reconhecimento de
padrões gera novas células nervosas na medula e no cérebro (Quero Saber, edição um, 2010).
Cardoso
Pires e Sampedro cumpriram a missão difícil de retornar logo que possível ao
ato da escrita, reconstruindo e comunicando um incidente de quase limite da sua
vida em que eles, ao se autobiografarem, não perderam o domínio do relato como
narradores omniscientes. Escreviam por necessidade, como um ato involuntário,
embora com límpida consciência do mesmo.
Fernando
Pessoa, que foi um filósofo da palavra, explica o pensamento, anterior ao ato
implícito, como por exemplo no poema «Não sei ser triste a valer»: “Se a flor
flore sem querer/Sem querer a gente pensa./O que nela é florescer/Em nós é ter
consciência.”
O
ato da escrita é solitário, mas não é puramente individual, porque quem escreve
tem experiências enquanto ser social. E há momentos em que os outros reconhecem
o esforço do escritor e querem participar do seu trabalho. Como o projeto de La Ciencia y La Vida que constituiu uma
homenagem a Sampedro pelos seus noventa anos, por iniciativa do Círculo de
Leitores de Madrid.
José
Cardoso Pires e José Luis Sampedro, ao recordarem os seus acidentes clínicos,
vão selecionar factos e sentimentos, conscientes de que o eu, quando se observa
mentalmente, se torna outro, num fenómeno de polifonia.
José Cardoso Pires narra
o incidente acontecido em Janeiro de 1995, numa quinta-feira à hora do
pequeno-almoço, com dados precisos. Ao longo da narrativa, não menciona a
duração deste internamento, mas a gravidade do seu estado de isquemia, como foi
diagnosticado, embora de recuperação lenta e incompleta; foi superado com o seu
despertar inesperado, o que antecipou a alta hospitalar.
Segundo os registos
das páginas 35 e 36, de doze a vinte de Janeiro, esteve sujeito a testes de
escrita e fala enquanto eram reunidos dados para o seu historial clínico.
“Incrível, a memória tinha reaparecido, o coágulo de sangue, esse selo que me
estrangulara o cérebro, diluíra-se no segredo do corpo e eis-me livre,
renascido […]” (p. 47). Nesta
transcrição, as palavras «livre» e «renascido» constituem uma atitude
consciente de alegria que foi anunciada no início da frase pelo adjetivo
«incrível», diferente dos sorrisos que José Cardoso Pires, tranquilamente,
oferecia a toda a gente durante o seu internamento: “Ah, não! Andei
perfeitamente tranquilo, a sorrir para toda a gente. Eu, que não sou
sorridente, como sabe, acho que nunca fui tão simpático.” (in D.N., 1997)
A sua narrativa não
quer dar espaço à conjetura (e mesmo os testemunhos alheios, exteriores, são
usados com muita escassez e prudência), não obstante a importância do olhar do
outro na construção da sua identidade. Por isso se detém no limiar em que
começa a perda da memória, da identidade própria e da linguagem (e, com esta, é
a possibilidade de identificação do mundo que se perde) e prossegue a partir do
momento em que tudo é apenas fragmentos. O que emerge desta passagem é a ideia
de que a experiência é sempre uma interpretação, que é a construção de um real.
E uma experiência que não se produz, só é possível interpretar a posteriori.
O mesmo acontece
com José Luis Sampedro em Monte Sinaí
e, mais tarde, em diálogo com Valentín Fuster, em que refletem sobre estas
situações que fazem recordar o sentimento de perda do autodomínio e do
distanciamento da consciência.
José Cardoso Pires,
no momento de desfrutar da manhã luminosa do exterior em pleno mês de Janeiro,
pôde fugir da “[…] pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora
estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de
alguém suspenso entre a terra e o céu” (p. 62)
Esta simples, mas
expressiva imagem (qual genial cena que recorda o Frankenstein de Shelley) de um especialista arrojado que decide
desbravar os caminhos do desconhecido e do incerto no mundo encefálico e
sacrifica alguém, indefeso, em prol da experiência neurocientífica, é mais um
curto cenário construído pela linguagem metafórica do autor, com inspiração
numa imagem fantástica conhecida de encontro iminente com a morte, pelo temor
da supremacia desta sobre os avanços da ciência.
Segundo
Paul Ricoeur (Teoria da Interpretação,
1976), a metáfora de tensão não é traduzível e cria o seu próprio sentido.
Alguém suspenso entre o céu e a terra, que não é um trapezista, nem um
paraquedista, mas um doente em perigo de vida, é metáfora viva, pois acrescenta
algo de novo à realidade narrada. Assim, o sujeito vai construindo a sua
identidade também nestes episódios da sua narrativa.
O
texto literário tem um efeito no seu real porque é fundamental para a sua
identidade. “[…] uma metáfora é no sentido forte da palavra, um evento de
discurso. O resultado é que uma metáfora, ao ser acolhida e aceite por uma
comunidade linguística, tende a confundir-se com uma extensão da polissemia das
palavras.” (pp.75/6)
De Profundis, Valsa Lenta
é uma narrativa com sete pequenos capítulos não numerados, nos quais o escritor
inicia cada um supracitando colegas das letras, cuja epígrafe escolhida alude,
naturalmente, ao tópico em desenvolvimento, como aquela de Mark Twain «A notícia da minha morte foi um exagero»
em telegrama à Associated Press. O passado recordado, como a noite branca,
fizeram José Cardoso Pires temer ainda alguma fragilidade no seu cérebro,
adiando as amadas aventuras pelas experiências da palavra escrita e lida, algum
tempo após o resgate entretanto acometido da “ilha dos náufragos” (p.57).
“Bem sei, a morte branca não existe, eu
estive lá. Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia aos outros, não me
tocava. Era um glaciar, a morte branca. A memória congelada.” (pp.65-66) Esta
citação é retirada das «Entrelinhas duma Memória», na parte final do livro, que
pressupõe uma narração de outrem subjacente ao texto antes da sua construção
(ele próprio declara na entrevista já citada ao D.N. que não imaginou nada).
Esta
parte final do livro constitui também um momento oportuno para o autor
partilhar dados de algum modo ligados, por exemplo, ao desastre de automóvel de
que foi vítima três meses antes do AVC que o obrigou a dar entrada nos cuidados
intensivos do Hospital de Santa Maria com três costelas cravadas na pleura e do
qual a sua memória se alienou. Ainda nesta revela que esta narrativa se trata
de um apontamento pessoal, com possíveis erros e imprecisões que podem revelar
um comportamento em crise e complexos de interioridade, que se confirmam ao
longo do livro, sugerido com as palavras que escolhe de Samuel Beckett «Já não
sou eu, mas outro que mal acaba de começar» (p. 27).
Simónides
de Kéos, o poeta grego da Antiguidade clássica, para quem a memória era um
instrumento fundamental para a poesia, constitui a epígrafe de abertura da
narrativa propriamente dita: «Quando perdeste o sonho e a certeza tornaste-te
desordem e fizeste-te nuvem» (Epitáfio nas Termópilas). O cultor da mimesis refere-se à existência humana
que é construtora da essência. Não se pode ficar num mundo que não se
representa, onde deve o sonho comanda(r)
a vida.
Sete,
número com uma simbologia bíblica forte, são as epígrafes que abrem os sete
capítulos da obra citada de José Cardoso Pires, de acordo com o conteúdo da
situação narrada em cada, desde o momento do seu acidente em casa até ao seu regresso,
dos autores a saber respetivamente: de Simónides de Kéos, de Carlos Drummond de
Andrade, de Samuel Beckett, de Álvaro de Campos, de Mark Twain, de Ana
Akhmatova e de Herberto Helder. O sentido comum é a ideia de liberdade urgente.
Segundo
o filósofo britânico David Hume, sem memória não há consciência. Contudo, há
uma ordem implicada que a ciência observa no universo e no homem como um ser
não fragmentado, ligado, não separado da ordem (David Bohm, 1988), ainda que
possa descrever-se segundo uma ordem explicada, mais mecanicista, pela interação
das suas partes constitutivas. “O homem e o mundo encontram-se ligados como o
caracol com a sua casa” (Milan Kundera, p.51)
Uma
construção poética assemelha-se a uma peça de música pela sua disposição afetiva
e símbolos articulados. A presença latente da poesia, segundo o propósito de José
Cardoso Pires neste livro, é também denunciada pelas suas afinidades com o
texto musical que abre, enriquece e encerra esta narrativa, aparentemente num
tom dolorido, mas que é um Requiem de
acentuada gratidão e de lucidez pela visão unificadora da Literatura e das
Ciências quando, por exemplo, cita nomes destas áreas como Carlos Drummond de
Andrade, Mark Twain, Álvaro de Campos, Leo Szilard (um dos génios da física), e
o próprio João Lobos Antunes: “Os cientistas deste e do próximo século sabem
que a tarefa é «thinking into the human brain», pois continuamos todos sem
saber porque é que o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo»” (p.
18). Esta visão humanista focaliza a atenção nas diferentes atividades e resultados
concertados da realidade humana.
A
capa das primeiras edições desta obra foi expressivamente ilustrada com um
desenho de Mário Eloy (A Morte na Gaiola),
que é uma metáfora à morte ocorrida em clausura, cuja ideia é transposta, neste
livro, para uma espécie de reclusão dos doentes hospitalizados, segundo o
tópico em reflexão pelo autor, nomeadamente num propósito de intertextualidade;
como aquele do pensamento de Herberto Helder que impele o seu interlocutor a
sair depressa (no caso de José Cardoso Pires do hospital) porque aí a noite não
salva os ecos.
Ou a ideia da morte que está no desenho da “mariposa–caveira”, uma espécie
de borboleta cujo corpo é um esqueleto humano. Segundo o seu autor, que os
mexicanos adotaram como figurante de procissões de carnaval.
O hibridismo da figura na imagem a seguir apresentada convoca o estranho e
representa o fantasma da morte (situada no final do penúltimo capítulo do
livro, p.55, a propósito do humor negro dos companheiros de quarto de José
Cardoso Pires, no hospital).
Ou ainda a outra ilustração seguinte que é um desenho de Gunther Grass (na
p.31) e que representa o sintoma de medo perante a castração do escritor. A
ideia da impossibilidade de voltar a escrever, simbolizada no sapo monstruoso
que tem diante da pata dianteira uma caneta-tinteiro, caída e inútil. O título
do desenho – “Maus presságios” – também é sugestivo do medo dessa incapacidade
de escrita.
De notar que Gunther Grass foi um intelectual, romancista, dramaturgo,
poeta e artista plástico alemão que recebeu o prémio Nobel da Literatura em
1999. Infelizmente, José Cardoso Pires já não teve oportunidade de sentir um
pouco a alegria do colega. Na perspetiva de Cardoso Pires, os prémios não eram
só do premiado. Ao receber o prémio Pessoa, ele próprio telefonou ao amigo
Júlio Pomar e disse-lhe: “Olha, é para te dar os parabéns porque ganhei o
Prémio Pessoa.” (PEDROSA, 1999:113)
Segue-se a imagem referida:
São
os ecos metáfora do passado recordado, como os da noite branca, que fizeram José
Cardoso Pires temer ainda alguma fragilidade no seu cérebro, adiando as amadas
aventuras pelas insondáveis experiências da palavra escrita e lida, algum tempo
após o resgate entretanto euforicamente acometido da “ilha dos náufragos” (p.57), ao contrário de Sampedro que as iniciou
ainda dentro do espaço hospitalar. Salvaguarde-se aqui a ideia de euforia que
se associa mais aos familiares do acidentado do que ao próprio, não obstante a
sua percetível vontade de “fugir” daquela situação.
O
testemunho escrito de José Cardoso Pires transmite uma mensagem de descoberta
por parte do autor do bem precioso que é a memória, que considera acima da
inteligência, porque permite o sentimento de gratidão inestimável à ciência, à
dimensão humana do seu trabalho e aos seus profissionais que a têm posto ao
serviço de outro e da civilização.
A
inteligência é um processo mental que envolve a memória mas que sem ela não
consegue construir qualquer projeto identitário.
Monte Sinaí
é uma narrativa com 84 páginas, sem capítulos, que tem como epígrafe de
abertura o agradecimento ao doutor Miguel Sáez que o levou ao hospital e aos
doutores Valentín Fuster e Jill Kalman que lá o salvaram. De tom poético,
vagamente melancólico, é uma obra de vocabulário vivo e subtil, que nos permite
conhecer o percurso vital do autor e refletir sobre a fragilidade da vida
humana.
La Ciencia y La Vida
é um livro composto por seis capítulos, com seis tópicos diferentes, que termina
com um testemunho breve de Fuster sobre o estado clínico grave em que se encontrava
Sampedro quando o conheceu, o qual, logo que se viu um pouco melhor,
prematuramente retomou a sua escrita na cama do hospital, sem autorização
médica. O epílogo serve para partilhar o pensamento de que muito ficou por
dizer, mas mais ainda por aprender. “El futuro es manejable, La Vida es
imparable.” (SAMPEDRO, 2008:252)
José
Luis Sampedro sempre considerou, até aos seus últimos dias, a ciência o
pensamento saudável das sociedades modernas ocidentais em crise. Quando se
encontrava na Unidade de Vigilância Intensiva de Cardiologia do hospital
nova-iorquino, sentiu-se contudo estranhamente confiante, como se o doente
fosse outro.
Ahora, veinte días después de mi ingresso en la Unidad de Vigilancia
Intensiva de Cardiología del neoyorquino hospital Mount Sinaï recuerdo con claridad y extrañeza mi despreocupación
ante lo que pudiera sucederme. Asombro y curiosidad sí, pero ninguna inquietud,
como si el seriamente enfermo no fuese yo. (SAMPEDRO, 1995:10).
O
ato da escrita de Sampedro deste testemunho foi possível num espaço de tempo
mais curto do que no caso de Cardoso Pires. O internamento de urgência do
escritor catalão pareceu-lhe uma viagem estranha, alheia e afastada de si. Apesar
de não sofrer a perda de consciência, nem ter dores, não se dedicou às suas
habituais anotações porque o escritor, com quem Sampedro se sentia a coabitar,
se dissociou do eu enfermo.
A
sua prazenteira estadia em Nova Iorque com os seus filhos, transformou-se “en
una estancia hospitalaria”. A doutora Vane leu a nota que fora enviada do
laboratório e que dizia que havia una infeção no sangue, logo que era
necessário averiguar o agente da contaminação. Entretanto o coração ficou
controlado e a identificação do agente infeccioso ficou em boas mãos.
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