Da esquerda para a diretia: eu, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão João ao colo e a minha irmã. |
AUTOBIOGRAFIA (PÁGINA
1)
As pessoas morrem e o mundo fica, seja este ou outro, com a forma ou a composição de matéria/energia que tiver, com ou sem existência humana. Parece que, de facto, continuamos, mas isso é outra história para outro projeto...
Seja como for, escrever é uma forma de nos sentirmos vivos. Há outras,
claro. (Aliás, fiz um trabalho de investigação há pouco tempo sobre essa
temática…)
Hoje começo qualquer coisa que se quer parecer com uma
autobiografia. Tenho um ou outro diário escrito antigo, mas esta ideia é uma
nova oportunidade de organizar na minha mente, como a memória consegue atualmente, os momentos que, de outra forma, iria recuperar num esforço de memória com pequenas adaptações próprias da própria seleção memorialística circunscrita no fio do tempo diacrónico e afetivo.
Não sei se são leitores do Jornal de Letras, mas este normalmente ocupa a última página do seu periódico com uma breve autobiografia. À partida, de alguém que se distingue
em alguma área artística ou de conhecimento.
Não sei se alguma vez me distingui em alguma coisa, mas também estou apenas aqui a fazer um exercício que
gosto de ver nos outros autores.
Quando era menina e moça, ninguém me levou cedo da
casa dos meus pais. Ou melhor, até levou, mas na idade própria: saí como tradicionalmente as
raparigas da minha idade deviam sair: para casar. Acho que aconteceu desse modo como podia ter sido de outro qualquer (ou não...).
Querem que comece do princípio? Eu nasci em casa dos meus pais, em
Lisboa.
O clã familiar feminino da parte da minha mãe encarregava-se
de chamar a parteira, já conhecida, dado que a progenitora pariu cinco filhos em
casa. Só o último é que nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, devido à
idade da minha mãe na altura. O caçula foi um bebé que nasceu pouco mais de 9 meses depois do
nascimento do penúltimo. Éramos só duas raparigas e, por isso, estávamos
ansiando que nascesse, para equilibrar, uma menina. Oh que pena! Mas nasceu um belo rapaz, o Alexandre.
Na gravidez em que fui gerada, aconteceu o mesmo (parece que
acontece com frequência): passado pouco tempo de a minha mãe dar à luz a minha
irmã, engravidou e o bebé que nasceu a seguir fui eu.
Claro que não me lembro de ter nascido. Sei que não chorei e
comecei logo a apanhar assim que vim a este mundo.
Fui batizada na igreja de São Pedro em Alcântara, mas as
fotos estragaram-se todas (versão oficial)…
O meu pai passava muito tempo embarcado e devido à
religiosidade da família da minha mãe, os batismos eram simples cerimónias, logo
que possível realizavam-se (não fosse acontecer alguma situação inesperada). Nessa altura, a
taxa de mortalidade infantil era alta, sobretudo de nados do sexo masculino.
A minha mãe estava com défice de cálcio, enquanto eu era feto. Assim, nasci franzina e com algumas fragilidades, que
sempre fui superando com a minha fascinação pela vida. Sentava-me ao lado da
minha mãe quando ela estava a dar de biberão aos meus irmãos mais novos. Eles raramente
bebiam tudo. Às vezes, o resto tocava-me. E como eu gostava do sabor do leite
em pó daquelas latas enormes da Nestlé!
Não sei que idade teria nessa altura, mas creio que andaria
pelos meus três anitos, que é a diferença de idade do meu irmão João.
Também me lembro de estar deitada na cama de grades no quarto
dos meus pais, com um resguardo azul, a ver as sombras que o candeeiro de teto
fazia nas paredes. Gostava daquele efeito. Todos os bebés gostam de olhar as
sombras que mexem. Mas eu nessa altura já me punha a tentar perceber formas
familiares que ora se faziam ora se desfaziam com o movimento do candeeiro
(sempre que alguém se chegava à minha cama, batia ao de leve no abat-jour do
candeeiro antigo em forma de cálice de flor).
A minha mãe punha-me a ouvir um rádio grande que havia na
sala e eu, que mal conseguia dançar, mas não parava. Só acalmava quando o sono
dava forte e eu caía literalmente para trás. Fazia um estrondo no soalho que assustava
toda a gente. Gemia com a dor, mas ficava no chão a dormir, nas tábuas a
cheirarem à madeira da natureza.
Gostava muito de ter irmãos. Eles eram os meus heróis, pois
tinham sempre mais altura e força do que eu. Eu dizia que não gostava de ser
rapaz porque eles eram mais bruscos a brincar e não podiam usar brincos. Vejam
só! Lá em casa, as mulheres eram furadas na orelha logo de muito tenrinhas. A
minha mãe sofria muito com os brincos belos, mas pesados que era pressionada a usar nas orelhas que o meu pai trazia das Ilhas Canárias.
Quando estava calor, íamos para a varanda da sala, virada
para a rua de Alcântara, e púnhamos as pernocas de fora do gradeamento verde
garrafa (mas só na companhia dos irmãos mais velhos). Olhava à direita e via o
cemitério dos prazeres; as árvores pontiagudas faziam-me lembrar os pinheiros
da Vide. Então perguntava a toda a gente quando é que íamos à Vide, visto que
era muito perto…
Também nos entretínhamos com os livros da escola que havia lá
em casa, do meu irmão mais velho, à socapa. Mas o que eu queria era começar a
ter os meus materiais da escola e de poder dizer que também tinha tarefas
diárias escolares. Queria crescer como os mais velhos. E trabalhava muito como
se já tivesse obrigações. Não sabia escrever, mas fazia desenhos. Os meus pais
elogiavam-me os desenhos (à exceção dos momentos do telejornal que eram
sagrados para o meu pai – nada de falas! As poucas vezes que tentei, levei uma
corrida em osso, como se dizia lá em casa). Ainda não existiam tantos canais
informativos!
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