quinta-feira, 7 de março de 2013

penso, logo pinto


A arte sacra
 

O que leva um artista a representar figuras e situações relacionadas com determinada religião?

A resposta é quase óbvia: é a sua fé. Então significa que a preferência pelos temas de determinada religião vincula o autor a determinada doutrina?

Eu não sou escritora ou pintora, nem tão pouco especialista na história das religiões e respetiva arte sacra, mas do pouco que vou aprendendo, e do muito que sinto, apraz-me pensar que o artista é um ser que se distingue pelo seu inequívoco apreço à liberdade criativa, como, por exemplo, o poeta, que interpreta a vida com o seu interior, que a vê com o seu discernimento e a quer partilhar. O artista pode ser olhado como um ser excêntrico por alguns, porque não o compreendem muito bem. Ou simplesmente não o compreendem. Ou apetece não compreender.

Eu não sou artista, pelo menos não ouso considerar-me como tal, e sinto, por vezes, certos olhares. Como cresci num ambiente familiar numeroso, aprendi, por exemplo, a criar o meu próprio espaço entre mim e mim mesma no meio dos outros. Eu sou capaz de ler num ambiente ruidoso, sem grande dificuldade, porque me entrego de alma àquela tarefa. Sou leitora por vocação. Assim como sou professora por vocação. Já declarava estas vontades na escola primária (a nº6 da Tapada, em Alcântara), quando escrevia aquelas composições rudimentares sentidas e comovidas pelas pequenas coisas que me encantavam no dia a dia.

Eu leio numa sala de professores cheia de gente a conversar. Sem sentir o mais leve constrangimento. Quase que as vozes me servem de encenação a uma ou outra cena. Ainda hoje. Estava a ler o livro Aquário numa gaiola da Júlia Nery que esteve ontem no auditório da nossa escola. Foi divertido. Claro que senti, mais uma vez, um ou outro olhar de estranheza à minha volta. Que não me incomodam. Não me importo nada de interromper a leitura e conversar, quando metem conversa comigo. E naturalmente retomo a leitura. E lá me surgem de novo as vozes reais a fazerem parte da conversa do Gonçalo e da Inês do livro que discutem o novo look da Inês, que tanto a sacrificou por um amor mal correspondido… uma história adequada à realidade dos nossos alunos.

Excentricidade ou simplesmente sensibilidade distinta não é sinónimo de loucura. Bem, refiro-me àquela que tira a razão e o tino. Porque de génios e de loucos, todos temos um pouco, não é assim?!

O medo é o grande inimigo do homem. Mais do que qualquer desconhecimento ou ignorância. E o medo tem privado o homem das suas melhores virtudes. Nomeadamente da sua entrega à arte. Os artistas são uns loucos... Gostam-se de ouvir, de se exibir, de friccionar o ego, de sorrir a desconhecidos. Gostam de apreciar o brilho a cada tola alegria.

Valeram-nos os nossos marinheiros aventurosos que partiram à conquista do desconhecido. Hoje, até os mais instruídos olham suspeitosos para a sua sombra. Quem é este que está aqui ao meu lado a ler? Uma peça de teatro? O que é que isto quer dizer? Qual é a mensagem subliminar? (tem que haver)

A fraternidade assusta. Mais do que em qualquer outro tempo. Parece-me. Porque é que havemos de nos compreender? O que é que se ganha com isso?

Ninguém é melhor do que ninguém. Apenas somos únicos. Todos diferentes, todos iguais. E estamos sempre a mudar. E aprender uns com os outros. É o dom do ser humano. Uns gostam mais de aprender com livros, outros com viagens, outros simplesmente a conversar ou a ver tv… e todos, no fundo, gostamos de tudo isso. Só que a vida facilita mais umas coisas a uns, e mais outras a outros… Não considero que a arte e o saber sejam atividades egocêntricas, mesmo que para isso seja necessário o recolhimento, mesmo que só seja possível no meio da multidão. Não há solidão quando podemos desfrutar de um ato criativo, nosso ou de outrem. E eu gosto de tudo, como costumo dizer. Tirei um curso de Letras porque foi aquele que se impôs no meu percurso escolar. Mas gosto de pintura. Gosto de música. Gosto de arquitetura. Gosto de filosofia. Gosto de teatro. Gosto de investigação. Gosto de ciência. Astronomia. Etnografia. Estudo das religiões…

Embora eu tenha as minhas convicções religiosas, que não se confinam a uma doutrina dogmática, sinto que muito ainda temos que aprender com o mundo que não é comprovado pelos olhos do nosso rosto. Com a doutrina do coração. E todos os temas que religam o homem à sua origem e à sua essência mais intrínseca interessam ao humano que responde ao apelo do ato criativo. Eu tento estar alerta. Mesmo sem grande visão periférica…

Não tenham medo dos artistas. São boa gente. Cada um à sua maneira. Mesmo que sentados a ler numa sala cheia de gente. Não é petulância nem soberba. Tão pouco um ego exacerbado. Simplesmente um encontro diferente num momento menos visto. Simplesmente a partilhar algumas folhas de papel. Ou de melodia. Ou de breves palavras de reencontro com cada um dos mundos dos outros. As galáxias humanas em expansão dadivosa. Não nos queiramos evadir. Somos vizinhos e coabitamos o mesmo território: o encantamento.

Eis a minha partilha de hoje.

                                                                            Corroios, 7 de março de 2013

                                                                          Rosa Duarte (texto e desenhos)
 

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