CUIDADO, MINHA NETA. ESCREVER É
PERIGOSA VAIDADE. DÁ MEDO AOS OUTROS…
Esta é uma das falas do avô
Adjiru Kapitamoro, que ensina Mariamar, a neta narradora, a escrever,
conduzindo-lhe a mão com a sua enorme, num desenho de letra sobre papel.
É a confissão da leoa de Mia Couto.
O coração a pular do peito. No
topo da árvore. Aspirando o perfume das goiabas maduras. Num mundo de homens e
de caçadores, onde a palavra foi a primeira arma.
O avô pedia-lhe para ser ela a contar
as histórias. Mas era para ganhar tempo e tornar-se o centro do mundo, das
atenções dos outros. Então erguia-se portentoso e a palavra vaidosa rodopiava
pelo chão e pelo ar. Mas não eram as memórias de caçador que ele perseguia;
eram as próprias presas das suas caçadas.
Tudo nasce ali, naquele momento
narrado, sem «era uma vez». E dissolvia-se no escuro porque sabia que as suas
histórias eram corpos fugindo da sua própria realidade.
Eram as pequenas loucuras que o
salvavam da grande loucura. Os outros debandavam; não se deixavam molhar pelas
suas férteis chuvas de palavras.
Os livros entregavam vozes como
se fossem sombras em pleno deserto. O olhar de Mariamar varria o chão em
ansiosa busca.
Quem mora ali, em Kulumani, é o
medo. Tudo com cor de poeira. As suas mãos são nuvens que parecem emigrantes do
seu corpo. Aqueles que maltratamos, por
mais estranhos que sejam, tornam-se nossos parentes para sempre. Os olhos
humanos roubam a alma. Quanto mais humano é o olhar, mais se é convertido em
bicho.
E a luz dissolve-se entre as
nuvens. Uma ilegível memória.
Adjiru aproveita o escuro para
exercer a sua outra atividade: a de escultor de máscaras.
O poente é a hora em que Mariamar
retorna a casa. O dormir lava-lhe memórias…
Os comedores de gente são um
assunto político.
E eu sou mais uma mulher a tentar
ler através da chuva o ventre de cacimbo, algures no alpendre deste livro.
Mais uma valiosa dádiva de Mia.
Um miar de leão! Obrigado.
Rosa Duarte
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