segunda-feira, 11 de março de 2013

uma ilegível memória


CUIDADO, MINHA NETA. ESCREVER É PERIGOSA VAIDADE. DÁ MEDO AOS OUTROS…

Esta é uma das falas do avô Adjiru Kapitamoro, que ensina Mariamar, a neta narradora, a escrever, conduzindo-lhe a mão com a sua enorme, num desenho de letra sobre papel.

É a confissão da leoa de Mia Couto.

O coração a pular do peito. No topo da árvore. Aspirando o perfume das goiabas maduras. Num mundo de homens e de caçadores, onde a palavra foi a primeira arma.

O avô pedia-lhe para ser ela a contar as histórias. Mas era para ganhar tempo e tornar-se o centro do mundo, das atenções dos outros. Então erguia-se portentoso e a palavra vaidosa rodopiava pelo chão e pelo ar. Mas não eram as memórias de caçador que ele perseguia; eram as próprias presas das suas caçadas.

Tudo nasce ali, naquele momento narrado, sem «era uma vez». E dissolvia-se no escuro porque sabia que as suas histórias eram corpos fugindo da sua própria realidade.

Eram as pequenas loucuras que o salvavam da grande loucura. Os outros debandavam; não se deixavam molhar pelas suas férteis chuvas de palavras.

Os livros entregavam vozes como se fossem sombras em pleno deserto. O olhar de Mariamar varria o chão em ansiosa busca.

Quem mora ali, em Kulumani, é o medo. Tudo com cor de poeira. As suas mãos são nuvens que parecem emigrantes do seu corpo. Aqueles que maltratamos, por mais estranhos que sejam, tornam-se nossos parentes para sempre. Os olhos humanos roubam a alma. Quanto mais humano é o olhar, mais se é convertido em bicho.

E a luz dissolve-se entre as nuvens. Uma ilegível memória.

Adjiru aproveita o escuro para exercer a sua outra atividade: a de escultor de máscaras.

O poente é a hora em que Mariamar retorna a casa. O dormir lava-lhe memórias…

Os comedores de gente são um assunto político.

E eu sou mais uma mulher a tentar ler através da chuva o ventre de cacimbo, algures no alpendre deste livro.

Mais uma valiosa dádiva de Mia. Um miar de leão! Obrigado.
 
                                                                                                             Rosa Duarte
 
 
                        

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