O CORTINADO VOADOR
O cortinado quer sair à rua. Tem as suas necessidades. As
suas reivindicações. Distende-se para lá da moldura da janela, e bota um pouco
de pano a esvoaçar. Ouvem-se os carros apressados. Os cantos em chilreio dão ânimo
fora daquele pedaço de cimento feito casa, um pedaço de lar, onde
já não dorme ninguém. E o vento a incitá-lo. Ora avança, ora retorna ao seu
parapeito, meio enfunado, meio desconfiado. Será melhor sair ou é mais seguro ficar?
Procurar melhor vida, pois então. Migrar. Ser um cortinado migrante. Sempre a
tapar e destapar as intimidades dos outros também cansa. E tantas horas de
solidão! Quem pensa em si? Sim, não parece, mas um cortinado também requer cuidados, precisa de um pouco de atenção e carinho. Uma mão caridosa que lhe
dê uma certa importância, algum amor próprio… compor-lhe as pregas, desviá-lo de vez
em quando para a vizinhança se deleitar com as suas habilidades. Não bastam as
florinhas artificiais cor de rosa para ser admirado. Vai lá, vai…Até porque com
a sua idade, pois já não é assim tão jovem, podia ter uma outra escovagem,
digamos, uma limpeza mais regular, sem pontos negros de humidade. Acha que não
é pedir muito. E não é aproveitar-se da conjuntura… Não é protesto panfletário organizado. É a realidade nua e crua desfraldada em cada janela.
E a verdade, verdadinha é que a rotina encardida e triste nunca foi para si. É
um cortinado de estrada, daqueles retalhistas de feira, que andam dum lado para
o outro, onde sempre se veem caras novas, donas de casa a sério que percorrem
quilómetros para encontrar aquele padrão que idealizaram. Com as medidas que
tantas vezes confirmaram nas parcas janelas dos seus quartos, verdadeiras
alcofas de amor medido a calendário. Sim, porque o amor não é para se
banalizar. Não deve ser hasteado a qualquer pretexto, por qualquer barrabotas pinga-amores.
Há que saber economizá-lo, como o euro ao mês. Até os gestos de
simpatia. Verdadeira politiquice. Não, não, não cai nessa. Porque os abusos de
confiança são uma burlice e geram mal-entendidos. Mesmo um cortinado da
sua condição deve saber calar-se e conter a admiração que sente pelo brio das suas
clientes. Ele, senhor cortinado, não é uma reles cortina desbragada que conversa na escada com qualquer vizinha. Nada de tecidos exagerados. Talvez uns sorrisos em arco de 20
graus de inclinação em dobra para os olhos das costuras. Nada mais. Ou quando uma
cliente está um pouco mais triste e indecisa, vá lá, uns 30, 35 graus. Há que racionar emoções. As necessárias para fins comerciais. Contudo, um cortinado que se orgulha da sua fabricação,
também tem seus recalcamentos sociais. Não se nota? Olha, quantas vezes não se
exprime pela luz que cega em nuvens de poeira cintilante e a deixa entrar pela casa fora?
Mas hoje não, hoje sente-se um cenário cinzento. Quer mudar
de vista. Quer partir. Deixaram-no maliciosamente só. Para porem e disporem, a
bel-prazer. Não é para si. É um mero cortinado? Talvez um cortinado mais
evoluído na roda da fortuna. Sem pernas… Mas que importa? Vai na mesma. À
descoberta da liberdade. Afinal, já deve ter qualquer coisa parecida com uma vontade, que não é assim tão inexperiente das
dificuldades da vida.
Não se pode contar logo com a amizade e o amor na esquina mais próxima, ele já sabe. Nem é esse o tipo de atenção que lhe interessa, mas terá com certeza ainda muito para aprender e desfraldar. Há que ter coragem, ora bolas. Dar pano. Um cortinado não serve apenas para velar e ocultar. Enfeitar. Serve também para deslumbrar. Isso! Quer deslumbrar. Ser um cortinado de palco. Porque não?! Ao serviço da arte e do olhar maravilhado do público.
Não se pode contar logo com a amizade e o amor na esquina mais próxima, ele já sabe. Nem é esse o tipo de atenção que lhe interessa, mas terá com certeza ainda muito para aprender e desfraldar. Há que ter coragem, ora bolas. Dar pano. Um cortinado não serve apenas para velar e ocultar. Enfeitar. Serve também para deslumbrar. Isso! Quer deslumbrar. Ser um cortinado de palco. Porque não?! Ao serviço da arte e do olhar maravilhado do público.
Dito e feito.
Veio então uma forte rajada de vento, daquelas que anunciam
as saraivadas. O cortinado puxou e atirou com o velho varão de pinho ao chão. Enrodilhado
sobre o balcão da janela, esgueirou as presilhas, aguardou a próxima boleia e levantou voo, desajeitadamente, pela rajada fora, sobrevoando carros, pessoas, contentores e foi estampar-se no cabo de
eletricidade mais próximo. Ainda bem que era um cortinado curto de dois terços de
altura. Meia cintura. De tecido ligeiro, digamos. Então, enfunado, deleitou-se com aquela voragem de vista sobre
o parque Eduardo VII e o Senhor Marquês. Que imponência! Tomou o norte. Dali ao Maria Matos era um pulinho. E aguardou outro fôlego,
um novo alento de inspiração e ventania e lá foi todo entrapado pelos ares, fazendo aos ziguezagues as
delícias das crianças de breve passo trôpego, apressado, a toque de caixa, mas a toparem-no a léguas. Os adultos, esses, na liderança da correria desenfreada daquelas
rotinas malfadadas, do desastrado grupo dos transeuntes a butes, nem um olhinho se dignaram deitar às caras de diversão, e cabeças inclinadas, dos seus
humanos pequerruchos.
Afinal também era só um tresloucado cortinado, qual sonhador mal
trajado, num céu cinza alfacinha, em exótica planação rumo à plataforma
artística da universal liberdade: o teatro.
Lisboa,
25 de março/13
Rosa Duarte
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