segunda-feira, 25 de março de 2013

um voo de liberdade


O CORTINADO VOADOR

O cortinado quer sair à rua. Tem as suas necessidades. As suas reivindicações. Distende-se para lá da moldura da janela, e bota um pouco de pano a esvoaçar. Ouvem-se os carros apressados. Os cantos em chilreio dão ânimo fora daquele pedaço de cimento feito casa, um pedaço de lar, onde já não dorme ninguém. E o vento a incitá-lo. Ora avança, ora retorna ao seu parapeito, meio enfunado, meio desconfiado. Será melhor sair ou é mais seguro ficar? Procurar melhor vida, pois então. Migrar. Ser um cortinado migrante. Sempre a tapar e destapar as intimidades dos outros também cansa. E tantas horas de solidão! Quem pensa em si? Sim, não parece, mas um cortinado também requer cuidados, precisa de um pouco de atenção e carinho. Uma mão caridosa que lhe dê uma certa importância, algum amor próprio… compor-lhe as pregas, desviá-lo de vez em quando para a vizinhança se deleitar com as suas habilidades. Não bastam as florinhas artificiais cor de rosa para ser admirado. Vai lá, vai…Até porque com a sua idade, pois já não é assim tão jovem, podia ter uma outra escovagem, digamos, uma limpeza mais regular, sem pontos negros de humidade. Acha que não é pedir muito. E não é aproveitar-se da conjuntura… Não é protesto panfletário organizado. É a realidade nua e crua desfraldada em cada janela.

E a verdade, verdadinha é que a rotina encardida e triste nunca foi para si. É um cortinado de estrada, daqueles retalhistas de feira, que andam dum lado para o outro, onde sempre se veem caras novas, donas de casa a sério que percorrem quilómetros para encontrar aquele padrão que idealizaram. Com as medidas que tantas vezes confirmaram nas parcas janelas dos seus quartos, verdadeiras alcofas de amor medido a calendário. Sim, porque o amor não é para se banalizar. Não deve ser hasteado a qualquer pretexto, por qualquer barrabotas pinga-amores. Há que saber economizá-lo, como o euro ao mês. Até os gestos de simpatia. Verdadeira politiquice. Não, não, não cai nessa. Porque os abusos de confiança são uma burlice e geram mal-entendidos. Mesmo um cortinado da sua condição deve saber calar-se e conter a admiração que sente pelo brio das suas clientes. Ele, senhor cortinado, não é uma reles cortina desbragada que conversa na escada com  qualquer vizinha. Nada de tecidos exagerados. Talvez uns sorrisos em arco de 20 graus de inclinação em dobra para os olhos das costuras. Nada mais. Ou quando uma cliente está um pouco mais triste e indecisa, vá lá, uns 30, 35 graus. Há que racionar emoções. As necessárias para fins comerciais. Contudo, um cortinado que se orgulha da sua fabricação, também tem seus recalcamentos sociais. Não se nota? Olha, quantas vezes não se exprime pela luz que cega em nuvens de poeira cintilante e a deixa entrar pela casa fora?

Mas hoje não, hoje sente-se um cenário cinzento. Quer mudar de vista. Quer partir. Deixaram-no maliciosamente só. Para porem e disporem, a bel-prazer. Não é para si. É um mero cortinado? Talvez um cortinado mais evoluído na roda da fortuna. Sem pernas… Mas que importa? Vai na mesma. À descoberta da liberdade. Afinal, já deve ter qualquer coisa parecida com uma vontade, que não é assim tão inexperiente das dificuldades da vida.

Não se pode contar logo com a amizade e o amor na esquina mais próxima, ele já sabe. Nem é esse o tipo de atenção que lhe interessa, mas terá com certeza ainda muito para aprender e desfraldar. Há que ter coragem, ora bolas. Dar pano. Um cortinado não serve apenas para velar e ocultar. Enfeitar. Serve também para deslumbrar. Isso! Quer deslumbrar. Ser um cortinado de palco. Porque não?! Ao serviço da arte e do olhar maravilhado do público.

Dito e feito.

Veio então uma forte rajada de vento, daquelas que anunciam as saraivadas. O cortinado puxou e atirou com o velho varão de pinho ao chão. Enrodilhado sobre o balcão da janela, esgueirou as presilhas, aguardou a próxima boleia e levantou voo, desajeitadamente, pela rajada fora, sobrevoando carros, pessoas, contentores e foi estampar-se no cabo de eletricidade mais próximo. Ainda bem que era um cortinado curto de dois terços de altura. Meia cintura. De tecido ligeiro, digamos. Então, enfunado, deleitou-se com aquela voragem de vista sobre o parque Eduardo VII e o Senhor Marquês. Que imponência! Tomou o norte. Dali ao Maria Matos era um pulinho. E aguardou outro fôlego, um novo alento de inspiração e ventania e lá foi todo entrapado pelos ares, fazendo aos ziguezagues as delícias das crianças de breve passo trôpego, apressado, a toque de caixa, mas a toparem-no a léguas. Os adultos, esses, na liderança da correria desenfreada daquelas rotinas malfadadas, do desastrado grupo dos transeuntes a butes, nem um olhinho se dignaram deitar às caras de diversão, e cabeças inclinadas, dos seus humanos pequerruchos.

Afinal também era só um tresloucado cortinado, qual sonhador mal trajado, num céu cinza alfacinha, em exótica planação rumo à plataforma artística da universal liberdade: o teatro.                              

                                                                                Lisboa, 25 de março/13  

                                                                                          Rosa Duarte

 

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