terça-feira, 2 de abril de 2013

um tempo sem memória


O TEMPO AINDA CRIANÇA

Está tudo bom, tia. A tia faz sempre comida com fartos legumes. E discorria na mesa a circular com o olhar os nabos cobiçosos. Esperemos que amanhã não chova. Ao palácio de Monserrate? O avô todos os finais de verão nos levava a Sintra. Piquenicávamos por lá. No tempo ainda criança. Em que tudo era com tempo. O passado recém-nascido na memória. Oito tugas armados em turistas enfiados num Ford Record azul pró claro. Já nessa altura meio antigo. Os velhos apetrechados de tachos e pratos de loiça para almoçarmos no parque de nenúfares. De Alcântara, seguíamos pela marginal, olhávamos demoradamente o mar, as nossas familiares praias e inaugurávamos as paragens na Boca do Inferno. À procura das rochas infernais sulcadas por ecos do além que se espumavam pelas grutas bem bebidas de sal e algas. Não comes mais? Olha a salada... A falada temível Boca do Inferno. E fotografávamos perspetivas quase arriscadas. Com a mesma música oceânica uivada de fundo. Quase um sonido nostálgico pianíssimo que me lembraria agora Bernardo Sassetti…

Éramos tantos. Nesse tempo ainda sem memória éramos mais. Com o nosso pai. Uma mãe sem tempos marcados. Sem nostalgias. Acompanhados do Alex guitarrista de serviço. A aprimorar. E eu a vomitar nas curvas. Daquela vez depois do Guincho. Parámos e a ventania levou-nos até aos banhos. À boa fila. Numa batalha aquosa picada de espuma. Os jovens mais velhos a arrear disparos a jato à chavalada. Pazadas a braços persistentes e ao chutapé. Mal sabíamos o que era aquele frio. Neblina matinal perfumada. Bute com os mergulhos. E os sapatos a navegar na subida da maré.

Molhados e mal sacudidos comíamos ao ritmo pausado do motor do carro. Umas sandochas de ovo mexido. Num estômago bem remexido. Ares da serra a toque de cólicas e um fado corridinho. Risos fartos e algum vomitado. Nos sacos preventivos, pois.

A praia? A nossa eleita era a das Maças. Com árvores, escorregas e balancés. Com bandeira amarela era um pau pelo olho. Uns baldes e pudins de areia, castelos para arruinar e o concurso de corpos soterrados. Olhávamos o horizonte e avistámos na mente aventureira a praia Grande, depois dos sinuosos atalhos pelas rochas sobre o mar.  

Então e Janas? Paragem obrigatória. Colónia de férias Rogério Cardoso. Antes animado com fogos de campo. Eu venho da Califórnia tocando o meu pucarinho vou contar a minha história mais o meu cavalo amiguinho… Espetáculos de diversões perdidos no rápido do tempo. Equipas, miudagem e monitores. Caminhadas e cançonetistas. Capela, senhora e outras vozes. Narrávamos o inenarrável. A alegria das coisas belas. Mesmo sentados no chão rodeados de abelhas a provarem a nossa jardineira. No tempo em que eu ainda comia a carne dos meus anónimos amigos animais. Aquelas frangas promovidas a póneis. E me gravavam as unhas das enrugadas patas nas minhas pernas pequenas rechonchudinhas. A cheirarem a pó da terra e a penas. A suave cacarejar com os mimos e a fecharem os olhitos.

Claro que revisitávamos as Azenhas do Mar. Tanto mar. Era o clímax no alinhamento do passeio dos alegres. Na piscina de água salgada. À borla. Um miradouro azul a perder de vista. Comíamos as sobras das sogras e das demais sanduíches. Às vezes rematava-se com um geladinho. E rumávamos por Caneças fora. No instante do ovo novo aberto em casa. Flashes e ideias do dia.

Ah, não esquecíamos as queijadas de Sintra. Se não, o motor do motorista aquecia e ainda havia zangas e apendicites.

Ao jantar por fim em casa, sopinha de feijão encarnado com hortaliça e pataniscas. Com música de farinha e tudo.

Os mouros, a Pena e o palácio da Vila eram visitas clandestinas no intervalo das grandes sestas. O velhote gostava da boa soneca arejada e rumorejada pelas folhas dos altos ramos. E delirava com a poesia da vida. Os putos, nós, fazíamos explorações manhosas e recolhas selecionadas de insetos e outros viventes.

Quanto não valia uma boa soneca estival antes da silenciosa e deliciosa viagem de regresso.

Bora lá? 

                                                                                    2 de abril de 2013
                                                                                 Rosa Duarte  




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