O TEMPO AINDA CRIANÇA
Está tudo bom, tia. A tia faz sempre comida com fartos
legumes. E discorria na mesa a circular com o olhar os nabos cobiçosos.
Esperemos que amanhã não chova. Ao palácio de Monserrate? O avô todos os finais
de verão nos levava a Sintra. Piquenicávamos por lá. No tempo ainda criança. Em
que tudo era com tempo. O passado recém-nascido na memória. Oito tugas armados em turistas enfiados num Ford Record
azul pró claro. Já nessa altura meio antigo. Os velhos apetrechados de tachos e
pratos de loiça para almoçarmos no parque de nenúfares. De Alcântara, seguíamos
pela marginal, olhávamos demoradamente o mar, as nossas familiares praias e
inaugurávamos as paragens na Boca do Inferno. À procura das rochas infernais
sulcadas por ecos do além que se espumavam pelas grutas bem bebidas de sal e
algas. Não comes mais? Olha a salada... A falada temível Boca do Inferno. E fotografávamos perspetivas quase arriscadas.
Com a mesma música oceânica uivada de fundo. Quase um sonido nostálgico
pianíssimo que me lembraria agora Bernardo Sassetti…
Éramos tantos. Nesse tempo ainda sem memória éramos mais. Com
o nosso pai. Uma mãe sem tempos marcados. Sem nostalgias. Acompanhados do Alex guitarrista de
serviço. A aprimorar. E eu a vomitar nas curvas. Daquela vez depois do Guincho.
Parámos e a ventania levou-nos até aos banhos. À boa fila. Numa batalha aquosa picada de
espuma. Os jovens mais velhos a arrear disparos a jato à chavalada. Pazadas a braços persistentes
e ao chutapé. Mal sabíamos o que era aquele frio. Neblina matinal perfumada. Bute
com os mergulhos. E os sapatos a navegar na subida da maré.
Molhados e mal sacudidos comíamos ao ritmo pausado do motor do carro. Umas
sandochas de ovo mexido. Num estômago bem remexido. Ares da serra a toque de
cólicas e um fado corridinho. Risos fartos e algum vomitado. Nos sacos preventivos, pois.
A praia? A nossa eleita era a das Maças. Com árvores, escorregas e balancés.
Com bandeira amarela era um pau pelo
olho. Uns baldes e pudins de areia, castelos para arruinar e o concurso de corpos
soterrados. Olhávamos o horizonte e avistámos na mente aventureira a praia
Grande, depois dos sinuosos atalhos pelas rochas sobre o mar.
Então e Janas? Paragem obrigatória. Colónia de férias Rogério Cardoso. Antes animado
com fogos de campo. Eu venho da
Califórnia tocando o meu pucarinho vou contar a minha história mais o meu
cavalo amiguinho… Espetáculos de diversões perdidos no rápido do tempo. Equipas,
miudagem e monitores. Caminhadas e cançonetistas. Capela, senhora e outras
vozes. Narrávamos o inenarrável. A alegria das coisas belas. Mesmo sentados no
chão rodeados de abelhas a provarem a nossa jardineira. No tempo em que eu
ainda comia a carne dos meus anónimos amigos animais. Aquelas frangas promovidas
a póneis. E me gravavam as unhas das enrugadas patas nas minhas pernas pequenas rechonchudinhas.
A cheirarem a pó da terra e a penas. A suave cacarejar com os mimos e a fecharem os olhitos.
Claro que revisitávamos as Azenhas do Mar. Tanto mar. Era o clímax no alinhamento do passeio
dos alegres. Na piscina de água salgada. À borla. Um miradouro azul a perder de vista.
Comíamos as sobras das sogras e das demais sanduíches. Às vezes rematava-se com
um geladinho. E rumávamos por Caneças fora. No instante do ovo novo aberto em
casa. Flashes e ideias do dia.
Ah, não esquecíamos as queijadas de Sintra. Se não, o motor
do motorista aquecia e ainda havia zangas e apendicites.
Ao jantar por fim em casa, sopinha de feijão encarnado com
hortaliça e pataniscas. Com música de farinha e tudo.
Os mouros, a Pena e o palácio da Vila eram visitas
clandestinas no intervalo das grandes sestas. O velhote gostava da boa soneca arejada
e rumorejada pelas folhas dos altos ramos. E delirava com a poesia da vida. Os
putos, nós, fazíamos explorações manhosas e recolhas selecionadas de insetos e outros viventes.
Quanto não valia uma boa soneca estival antes da silenciosa
e deliciosa viagem de regresso.
Bora lá?
2 de abril de 2013
Rosa
Duarte
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