quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Autobiografia (página 19)


Quando eu era pequenina, os passeios que ladeavam a rua de Alcântara eram muitos estreitinhos, sobretudo junto ao largo. Então, sempre que se ouvia uma travagem brusca ou uma sirene de ambulância, a minha mãe estremecia toda. 
Um dia um carro fez marcha atrás e deitou-me ao chão. Fiquei com a sola do sapato preso num dos pneus do carro. Foi um belo de um susto!
As crianças que vivem nas grandes cidades requerem uma proteção maior. Sobretudo nas zonas onde as vias pedonais não são uma prioridade. Então é o dilema entre a vigilância e a autonomia.
A nossa autonomia resumia-se aos nossos trajetos muito essenciais.
O nosso pai passava muito tempo em viagem e a minha mãe não podia ir à escola acompanhar a nossa vida escolar. Os projetos de integração das famílias nas escolas também não eram o que são hoje...
Mas nós sentíamos um pouco de pena de não podermos mostrar à nossa mãe certos trabalhos que fazíamos e não podiam sair da escola.
Todavia, os irmãos mais velhos tentavam fazer esse papel... Eu também tentei, quando passei a ser das mais crescidas. Eu até gostava de cuidar dos irmãos mais novos. 
Mas o que nós gostávamos mais, mesmo, era de brincar na rua. Havia sempre muita criançada a fazer jogos na rua. 
- Mãe, podemos ir para a rua?
- Vocês já não têm idade para brincar. Parece mal.
Tínhamos que crescer depressa. Tínhamos que ajudar, fazer recados. Fazer os deveres.
Íamos então fazer os recados. Ainda que empurrássemos essa tarefa uns para os outros. E quem ia, às vezes, ficava com o troco para comprar guloseimas. Era uma boa motivação.
Então comecei a ir também à praça da fruta e do peixe que era na avenida de Ceuta. Comprava bom peixe fresquinho. O chão era de cimento, mal amanhado, todo irregular e fazia poças de água a cheirar a peixe. Faziam-se autênticas gincanas e mesmo assim, de verão, com sandálias, molhávamos e perfumávamos os pés com aquela água turva.
E foi assim que eu fui conhecendo os diferentes tipos de peixe. Os preços. As varinas. As bancadas.
Um dia, a caminho da praça, a minha mãe encontrou a minha avó que morava ali muito perto, no beco do Sabugueiro. Era uma senhora que bebia muito café de saco.
Nesse dia estavam a conversar, penso que com mais alguém, e de repente, a minha avó materno tombou para o lado. Seguraram-na. Veio a saber-se que foi um AVC. Dizia-se uma trombose. Nunca mais foi a mesma: deixou de ser a mulher enérgica, trabalhadora e interventiva. Ficou paralisada do lado direito. Ainda viveu mais alguns anos depois desse episódio. Ainda fazia muita companhia ao meu avó.







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