1.2. Considerações sobre a realidade: do olhar à escrita
Je sais que je tombe
dans l’inexplicable, quand j’affirme que la réalité – cette notion si flottante
-, la connaissance la plus exacte possible des êtres est notre point de
contact, et notre voie d’accés aux choses qui dépassent la réalité.
Marguerite
Yourcenar
Esta é uma significativa epígrafe na abertura do Memorial do Convento de José Saramago.
Não caímos todos no inexplicável quando afirmamos que
a realidade, essa noção tão flutuante, é o nosso ponto de contacto e a nossa
via de acesso às coisas que ultrapassam a realidade?
Cada ser humano relaciona-se
com a sua realidade, formada parcialmente pelos modelos mentais apreendidos na
dimensão do concreto; esse tal conhecimento procura-se o mais exato possível do
vivido.
Mas o Homem também
povoa essa realidade com outros modelos criados a partir de um imaginário, associado
inevitavelmente à função mnésica, que toma forma e força, passando a existir
com a mesma afirmação que os outros modelos do concreto. Os conceitos e todas
as outras coisas que não existem no concreto vão fazendo parte da realidade. Passam
a ter existência no real. Como a imagética da metáfora.
Toda a realidade
faz parte do real; mas nem tudo o que é real faz parte da mesma realidade. O
ser humano, além de, por vezes, confundir realidade com a dimensão do concreto,
confunde a realidade com a ideia de real. Quando não conhece esse mesmo real,
confunde as categorias que nele existe e tenta levar o outro a adotar a sua
própria realidade como se fosse real. Sabendo inclusive que o Homem não é
substância metafísica que nunca muda.
Paul Ricoeur afirma que
“a imaginação social é constitutiva da própria realidade” porque a
interpretação e a prática não podem ser dissociadas. O real é construído pela
interpretação da prática, segundo este nexo, que deve ser desenvolvido pela
reflexão atenta.
A própria natureza do
real retém naturalmente uma qualidade mediatizada pela visão poética ou
metafórica. Através da capacidade da linguagem de criar e recriar, vamos
descobrindo o processo da realidade. Por isso a realidade redescrita pela
linguagem que ensina a realidade é em si uma realidade nova gerada pela
realidade apreendida. Disse Ricouer, “se tudo não é linguagem, tudo, na experiência, não acede ao
sentido a não ser sob condição de ser transportado à linguagem” (Ibidem,
1992: 209). Para ele, o agir humano distingue-se do comportamento animal ao ser
transformado em linguagem, a fim de ser significante das experiências com
inevitáveis hipóstases (vivência na sociedade, história, psique, liberdade).
Siri Hustvedt, escritora norte-americana de
ascendência noruega, defende que temos uma consciência reflexiva que nos
permite imaginar como é ser outra pessoa. (in Linving, Thinking, Looking, 2012)
No
poema Blanco (OCTÁVIO PAZ, 1994:222),
o autor adverte para este permanente e fecundo diálogo entre a realidade e o
imaginário: “A irrealidade do visto, Da realidade ao olhar”, remetendo o seu
pensamento para a não dissolução sujeito-objeto. Faz a irrealidade caminhar ao
lado da realidade humana. É também este escritor mexicano quem procura o
diálogo entre a criação poética e a sua produção ensaística política.
A
linguagem poética «está afinada por esta dimensão da realidade que está por sua
vez por acabar e em construção» (Paul Ricoeur, «Poetry and Possibility», Mannahattan Review, 1981). A nossa
experiência individual é conduzida pela relação com o mundo social que induz a
um discurso simbolicamente mediatizado porque procuramos aumentar o nosso
sentido de real, redescobrindo ou explorando o possível pela metamorfose
interpretativa. Disse Einstein:
O intelecto desempenha um papel
muito pequeno no caminho para a descoberta. Existe um hiato na consciência, a
que poderemos chamar intuição ou outro nome qualquer que queiramos, em que a
solução nos chega e não sabemos como nem porquê.
Sabemos
que fatigar a mente dificulta a atenção, essencial para que se “possa ver” com
discernimento. A nível concetual, é a centelha da imaginação que vivifica a
linguagem interpretativa. Que, até certo ponto, se mistura com determinados valores
sociais e temporais do meio.
“A
certa altura da vida somos capazes de nos perguntar onde e como devemos
procurar as respostas que verdadeiramente interessam à condição humana, o que
talvez nos leve a um despojamento do próprio saber.” (ALÇADA BAPTISTA, 2003:72).
A
linguagem poética irrompe num “nível pré-científico, ante-predicativo, em que
as próprias noções de facto, objecto, realidade e verdade, tal como são
delimitadas pela epistemologia, são postas em questão.” (P. RICOEUR, 1998:55)
Sabendo
que a própria natureza do real retém uma qualidade metafórica, o facto é que
não podemos separar o real da nossa interpretação. E a capacidade individual de
ser criativo é uma característica intrínseca à realidade humana. Um dos
pensamentos de Paul Ricoeur decorrentes da revelação do real na atuação dos
seres humanos é a consciência da natureza da verdade que deixa de poder ser
encarada como certa e garantida pelo saber instituído.
O
real está sempre a completar-se, porque “o real é tudo o que já existe
prefigurado que é também transfigurado” (RICOEUR, 1986:56). O real é inevitavelmente
apanhado pelo fluxo do tempo num processo de mudança. A natureza da verdade é
posta em questão pelas dimensões temporal e simbólica da realidade humana.
A realidade, para José Luis Sampedro, é
multidimensional, contínua, o que reforça a impossibilidade de descrevê-la:
La realidad,
además de multidimensional, es un continuo y eso refuerza la imposibilidad de
escribirla: Natura no fecit saltus,
como advirtió la sabiduría clásica. Las fronteras, incluso las más obvias, las
introducimos nosotros, indispensablemente, con el fin de conocer, clasificando
e identificando lo percibido. (SAMPEDRO, 1991:14)
O princípio de realidade é, em Nietzsche, o eterno
retorno, ou seja, da realidade repetida ou repetidamente
recuperada. Mas quaisquer interpretações do real reagem e respondem umas às
outras. Com o Eterno Retorno, Nietzsche questiona a ordem das coisas. Indica um mundo não
feito de polos opostos e inconciliáveis, mas complementares de uma mesma
realidade múltipla e única, como a vida e a morte, a saúde e a doença, a
realidade e a imaginação.
No
ato da criação literária, poder-se-á encontrar um nexo entre o pensamento de
Fernando Pessoa e o de Nietzsche, ao considerarem a consciência e experiência
da ordem complementar o que rege o fenómeno criativo na primeira pessoa, intelectualizado
pelo que sente no ato último da expressão artística autêntica.
Segundo Ricoeur,
a tarefa é tornar o círculo uma espiral que inclua a dimensão da distância
crítica do eu. Sobre tal, escreve Regina Queiroz:
Nietzsche
reconhece a “vanidade “ da distinção sujeito/objecto na lógica: a suposição da
identidade anula essa diferença, e por isso “eu” posso enquanto sujeito pensar-me
imediatamente a mim mesmo como objecto. (REGINA QUEIROZ, 1988:75)
Este
trabalho de observação prática e de interpretação do real confronta quem
podemos ser com quem entendemos que somos. Tal como o escritor José Luis
Sampedro confidencia no seu livro Monte
Sinaí:
[…] en muchos trances anteriores de mi vida procuré
siempre interpretarlos y comprenderlos, analizando sus efectos en mí para
hacerlos míos e integrarme mejor en ellos. En cambio durante aquel extraño
viaje, tan súbitamente emprendido, yo mismo me resultaba ajeno y luego, una vez
instalado en la UVI, tampoco me dediqué a mis acostumbradas anotaciones, pese a
no sufrir dolores ni perdidas de consciencia. Era como si ese otro yo, con
quien a veces siento vivir emparejado, el escritor, se hubiese disociado de mi
ser enfermo. (SAMPEDRO, 1998:10).
Sampedro
foi um economista com a visão do escritor-filósofo das grandes causas da
humanidade e da proteção dos jovens e das franjas sociais.
Na imprensa espanhola e portuguesa,
as ideias do autor de La Sonrisa Etrusca
são muito escutadas e consideradas. Alguns jornalistas dedicam muito do seu
trabalho a dar visibilidade e credibilidade ao pensamento do economista e
humanista que Luis Sampedro foi. Quando relemos artigos portugueses sobre o
acontecimento que foi a morte de Sampedro, ainda que, segundo a viúva Olga
Lucas ele quisesse “ir” de “forma simples e sem publicidade”, percebe-se o
impacto no público ibérico.
Humanista
e economista, Sampedro defendeu uma economia "mais humana, mais solidária,
capaz de contribuir para desenvolver a dignidade dos povos" e em 2010 foi
reconhecido com a Ordem das Artes e Letras de Espanha pela sua "destacada
trajetória literária e pelo seu pensamento comprometido com os problemas
do seu tempo". Sampedro "conseguiu saltar as barreiras
geracionais", como escreve hoje o "El Pais", e
proclamou-se nos últimos anos "em estandarte do desencanto juvenil em
Espanha". "O intelectual manifestou o seu desejo de morrer como tinha
vivido, sem estridências, sem ruído, pelo que não se celebrará nenhum ato de
homenagem", (jornal EXPRESSO, 9 de abril de 2013:12)
José Luis
Sampedro foi galardoado em 2011 com o Prémio Nacional de Letras, outorgado pelo
Ministério da Cultura espanhol, em reconhecimento ao seu percurso literário,
prémio que é considerado o mais prestigiado das letras espanholas depois do de Cervantes.
O seu
olhar sobre a realidade é intensa e sempre indignado com as atrocidades da
guerra que ele vivenciou, como descreve em La
Sombra de los Días, escrito em 1945 e só publicado no ano 2000. Em 1936,
então a trabalhar em Santander, foi mobilizado pelo exército republicano para a
Guerra Civil, acabando por desertar para se juntar ao "bando
nacional" que também abandonou, desiludido, mas que lhe serviu de matéria
de escrita.
O olhar de
José Cardoso Pires, na escrita, foi beber em muito à sua prática jornalística,
numa realidade que tanto o escandalizou como fascinou. (Qual narrativa fílmica
que regista as cenas vivenciadas por si próprio a partir do olhar, procurando
uma linguagem branca, seca e limpa, por vezes polifónica.)
Na
entrevista que deu a Inês Pedrosa, no jornal Expresso, contou que aos dezassete anos, como o seu pai não quis
fazê-lo, foi-se apresentar ao concunhado daquele, chamado Joaquim Manso, que
era o fundador do Diário de Lisboa. O
senhor disse-lhe que o jornalismo não passava de uma troca de favores. Disse ao
rapaz que era José Cardoso Pires para não se meter nisso. O que Cardoso Pires
veio a perceber mais tarde que, de facto, era absolutamente verdade na então sociedade
fascista. “Com raríssimas excepções, o jornalismo era péssimo. O jornalismo de
hoje é incomparavelmente mais culto.” (EXPRESSO, 20/12/1997)
Mas o
balanço foi positivo porque a sua experiência jornalística foi uma escola para
a escrita cardosiana.
No
jornalismo, além de encontros, como estes, de plano pessoal, a grande
experiência foi a descoberta do outro saber da escrita que é feita à pressão do
sempre-em-dia com a vida corrente. Considero essa prática importantíssima. Aí é
que o jornalismo desaristocratiza a linguagem literária como parte dela mesma,
e digo ‘como parte’ porque a separação académica jornalismo-literatura só
convém aos jornalistas que escrevem mal. (PEDROSA, 1999:25)
José
Cardoso Pires faz questão de lembrar que existiu sempre uma interação entre o
livro e o jornal. Tanto o passado do livro como o do jornal foi assombrado pela
Inquisição. Enquanto os livros eram lançados à fogueira, a bula Ea Est cortava a mão pecadora dos
jornalistas insubmissos. Mais tarde foi a censura salazarista… E lembra, embora
saiba que não é novidade, que é a partir do Romantismo que os jornais foram os grandes
divulgadores da poesia e do romance. Tivemos e continuamos a ter muitos
escritores jornalistas: Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós,
Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Marcel Proust, Henry Fielding, Ernest Hemingway,
Gabriel García Márquez. “García Márquez, mesmo depois do Nobel, continuou a
escrever regularmente para El País.”
(Entrevista de Artur Portela, Cardoso
Pires por Cardoso Pires, Publicações Dom Quixote, 1991)
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