segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A REALIDADE

1.2.         Considerações sobre a realidade: do olhar à escrita


Je sais que je tombe dans l’inexplicable, quand j’affirme que la réalité – cette notion si flottante -, la connaissance la plus exacte possible des êtres est notre point de contact, et notre voie d’accés aux choses qui dépassent la réalité.
                                                                                Marguerite Yourcenar 

Esta é uma significativa epígrafe na abertura do Memorial do Convento de José Saramago.
Não caímos todos no inexplicável quando afirmamos que a realidade, essa noção tão flutuante, é o nosso ponto de contacto e a nossa via de acesso às coisas que ultrapassam a realidade?
Cada ser humano relaciona-se com a sua realidade, formada parcialmente pelos modelos mentais apreendidos na dimensão do concreto; esse tal conhecimento procura-se o mais exato possível do vivido.
Mas o Homem também povoa essa realidade com outros modelos criados a partir de um imaginário, associado inevitavelmente à função mnésica, que toma forma e força, passando a existir com a mesma afirmação que os outros modelos do concreto. Os conceitos e todas as outras coisas que não existem no concreto vão fazendo parte da realidade. Passam a ter existência no real. Como a imagética da metáfora.
Toda a realidade faz parte do real; mas nem tudo o que é real faz parte da mesma realidade. O ser humano, além de, por vezes, confundir realidade com a dimensão do concreto, confunde a realidade com a ideia de real. Quando não conhece esse mesmo real, confunde as categorias que nele existe e tenta levar o outro a adotar a sua própria realidade como se fosse real. Sabendo inclusive que o Homem não é substância metafísica que nunca muda.
Paul Ricoeur afirma que “a imaginação social é constitutiva da própria realidade” porque a interpretação e a prática não podem ser dissociadas. O real é construído pela interpretação da prática, segundo este nexo, que deve ser desenvolvido pela reflexão atenta.
A própria natureza do real retém naturalmente uma qualidade mediatizada pela visão poética ou metafórica. Através da capacidade da linguagem de criar e recriar, vamos descobrindo o processo da realidade. Por isso a realidade redescrita pela linguagem que ensina a realidade é em si uma realidade nova gerada pela realidade apreendida. Disse Ricouer, “se tudo não é linguagem, tudo, na experiência, não acede ao sentido a não ser sob condição de ser transportado à linguagem” (Ibidem, 1992: 209). Para ele, o agir humano distingue-se do comportamento animal ao ser transformado em linguagem, a fim de ser significante das experiências com inevitáveis hipóstases (vivência na sociedade, história, psique, liberdade).
Siri Hustvedt, escritora norte-americana de ascendência noruega, defende que temos uma consciência reflexiva que nos permite imaginar como é ser outra pessoa. (in Linving, Thinking, Looking, 2012)
No poema Blanco (OCTÁVIO PAZ, 1994:222), o autor adverte para este permanente e fecundo diálogo entre a realidade e o imaginário: “A irrealidade do visto, Da realidade ao olhar”, remetendo o seu pensamento para a não dissolução sujeito-objeto. Faz a irrealidade caminhar ao lado da realidade humana. É também este escritor mexicano quem procura o diálogo entre a criação poética e a sua produção ensaística política.
A linguagem poética «está afinada por esta dimensão da realidade que está por sua vez por acabar e em construção» (Paul Ricoeur, «Poetry and Possibility», Mannahattan Review, 1981). A nossa experiência individual é conduzida pela relação com o mundo social que induz a um discurso simbolicamente mediatizado porque procuramos aumentar o nosso sentido de real, redescobrindo ou explorando o possível pela metamorfose interpretativa. Disse Einstein:
O intelecto desempenha um papel muito pequeno no caminho para a descoberta. Existe um hiato na consciência, a que poderemos chamar intuição ou outro nome qualquer que queiramos, em que a solução nos chega e não sabemos como nem porquê.
Sabemos que fatigar a mente dificulta a atenção, essencial para que se “possa ver” com discernimento. A nível concetual, é a centelha da imaginação que vivifica a linguagem interpretativa. Que, até certo ponto, se mistura com determinados valores sociais e temporais do meio.
“A certa altura da vida somos capazes de nos perguntar onde e como devemos procurar as respostas que verdadeiramente interessam à condição humana, o que talvez nos leve a um despojamento do próprio saber.” (ALÇADA BAPTISTA, 2003:72).
A linguagem poética irrompe num “nível pré-científico, ante-predicativo, em que as próprias noções de facto, objecto, realidade e verdade, tal como são delimitadas pela epistemologia, são postas em questão.” (P. RICOEUR, 1998:55)
Sabendo que a própria natureza do real retém uma qualidade metafórica, o facto é que não podemos separar o real da nossa interpretação. E a capacidade individual de ser criativo é uma característica intrínseca à realidade humana. Um dos pensamentos de Paul Ricoeur decorrentes da revelação do real na atuação dos seres humanos é a consciência da natureza da verdade que deixa de poder ser encarada como certa e garantida pelo saber instituído.    
O real está sempre a completar-se, porque “o real é tudo o que já existe prefigurado que é também transfigurado” (RICOEUR, 1986:56). O real é inevitavelmente apanhado pelo fluxo do tempo num processo de mudança. A natureza da verdade é posta em questão pelas dimensões temporal e simbólica da realidade humana.
A realidade, para José Luis Sampedro, é multidimensional, contínua, o que reforça a impossibilidade de descrevê-la:
 La realidad, además de multidimensional, es un continuo y eso refuerza la imposibilidad de escribirla: Natura no fecit saltus, como advirtió la sabiduría clásica. Las fronteras, incluso las más obvias, las introducimos nosotros, indispensablemente, con el fin de conocer, clasificando e identificando lo percibido. (SAMPEDRO, 1991:14)
O princípio de realidade é, em Nietzsche, o eterno retorno, ou seja, da realidade repetida ou repetidamente recuperada. Mas quaisquer interpretações do real reagem e respondem umas às outras. Com o Eterno Retorno, Nietzsche questiona a ordem das coisas. Indica um mundo não feito de polos opostos e inconciliáveis, mas complementares de uma mesma realidade múltipla e única, como a vida e a morte, a saúde e a doença, a realidade e a imaginação.
No ato da criação literária, poder-se-á encontrar um nexo entre o pensamento de Fernando Pessoa e o de Nietzsche, ao considerarem a consciência e experiência da ordem complementar o que rege o fenómeno criativo na primeira pessoa, intelectualizado pelo que sente no ato último da expressão artística autêntica.
Segundo Ricoeur, a tarefa é tornar o círculo uma espiral que inclua a dimensão da distância crítica do eu. Sobre tal, escreve Regina Queiroz:
Nietzsche reconhece a “vanidade “ da distinção sujeito/objecto na lógica: a suposição da identidade anula essa diferença, e por isso “eu” posso enquanto sujeito pensar-me imediatamente a mim mesmo como objecto. (REGINA QUEIROZ, 1988:75)
Este trabalho de observação prática e de interpretação do real confronta quem podemos ser com quem entendemos que somos. Tal como o escritor José Luis Sampedro confidencia no seu livro Monte Sinaí:
[…] en muchos trances anteriores de mi vida procuré siempre interpretarlos y comprenderlos, analizando sus efectos en mí para hacerlos míos e integrarme mejor en ellos. En cambio durante aquel extraño viaje, tan súbitamente emprendido, yo mismo me resultaba ajeno y luego, una vez instalado en la UVI, tampoco me dediqué a mis acostumbradas anotaciones, pese a no sufrir dolores ni perdidas de consciencia. Era como si ese otro yo, con quien a veces siento vivir emparejado, el escritor, se hubiese disociado de mi ser enfermo. (SAMPEDRO, 1998:10).
            Sampedro foi um economista com a visão do escritor-filósofo das grandes causas da humanidade e da proteção dos jovens e das franjas sociais.
            Na imprensa espanhola e portuguesa, as ideias do autor de La Sonrisa Etrusca são muito escutadas e consideradas. Alguns jornalistas dedicam muito do seu trabalho a dar visibilidade e credibilidade ao pensamento do economista e humanista que Luis Sampedro foi. Quando relemos artigos portugueses sobre o acontecimento que foi a morte de Sampedro, ainda que, segundo a viúva Olga Lucas ele quisesse “ir” de “forma simples e sem publicidade”, percebe-se o impacto no público ibérico.
Humanista e economista, Sampedro defendeu uma economia "mais humana, mais solidária, capaz de contribuir para desenvolver a dignidade dos povos" e em 2010 foi reconhecido com a Ordem das Artes e Letras de Espanha pela sua "destacada trajetória literária e pelo seu pensamento comprometido com os problemas do seu tempo". Sampedro "conseguiu saltar as barreiras geracionais", como escreve hoje o  "El Pais", e proclamou-se nos últimos anos "em estandarte do desencanto juvenil em Espanha". "O intelectual manifestou o seu desejo de morrer como tinha vivido, sem estridências, sem ruído, pelo que não se celebrará nenhum ato de homenagem", (jornal EXPRESSO, 9 de abril de 2013:12)
            José Luis Sampedro foi galardoado em 2011 com o Prémio Nacional de Letras, outorgado pelo Ministério da Cultura espanhol, em reconhecimento ao seu percurso literário, prémio que é considerado o mais prestigiado das letras espanholas depois do de Cervantes.
            O seu olhar sobre a realidade é intensa e sempre indignado com as atrocidades da guerra que ele vivenciou, como descreve em La Sombra de los Días, escrito em 1945 e só publicado no ano 2000. Em 1936, então a trabalhar em Santander, foi mobilizado pelo exército republicano para a Guerra Civil, acabando por desertar para se juntar ao "bando nacional" que também abandonou, desiludido, mas que lhe serviu de matéria de escrita.
            O olhar de José Cardoso Pires, na escrita, foi beber em muito à sua prática jornalística, numa realidade que tanto o escandalizou como fascinou. (Qual narrativa fílmica que regista as cenas vivenciadas por si próprio a partir do olhar, procurando uma linguagem branca, seca e limpa, por vezes polifónica.)
            Na entrevista que deu a Inês Pedrosa, no jornal Expresso, contou que aos dezassete anos, como o seu pai não quis fazê-lo, foi-se apresentar ao concunhado daquele, chamado Joaquim Manso, que era o fundador do Diário de Lisboa. O senhor disse-lhe que o jornalismo não passava de uma troca de favores. Disse ao rapaz que era José Cardoso Pires para não se meter nisso. O que Cardoso Pires veio a perceber mais tarde que, de facto, era absolutamente verdade na então sociedade fascista. “Com raríssimas excepções, o jornalismo era péssimo. O jornalismo de hoje é incomparavelmente mais culto.” (EXPRESSO, 20/12/1997)
            Mas o balanço foi positivo porque a sua experiência jornalística foi uma escola para a escrita cardosiana.
No jornalismo, além de encontros, como estes, de plano pessoal, a grande experiência foi a descoberta do outro saber da escrita que é feita à pressão do sempre-em-dia com a vida corrente. Considero essa prática importantíssima. Aí é que o jornalismo desaristocratiza a linguagem literária como parte dela mesma, e digo ‘como parte’ porque a separação académica jornalismo-literatura só convém aos jornalistas que escrevem mal. (PEDROSA, 1999:25)
            José Cardoso Pires faz questão de lembrar que existiu sempre uma interação entre o livro e o jornal. Tanto o passado do livro como o do jornal foi assombrado pela Inquisição. Enquanto os livros eram lançados à fogueira, a bula Ea Est cortava a mão pecadora dos jornalistas insubmissos. Mais tarde foi a censura salazarista… E lembra, embora saiba que não é novidade, que é a partir do Romantismo que os jornais foram os grandes divulgadores da poesia e do romance. Tivemos e continuamos a ter muitos escritores jornalistas: Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Marcel Proust, Henry Fielding, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez. “García Márquez, mesmo depois do Nobel, continuou a escrever regularmente para El País.” (Entrevista de Artur Portela, Cardoso Pires por Cardoso Pires, Publicações Dom Quixote, 1991)

                     
                 Rosa Maria Duarte in O Canto do Cisne no Retorno do Eu ao Ato da Escrita, 2015










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