3.1. A memória ao serviço da narrativa
Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a
morte – disse o contador de estórias à sua filha Ritinha. (in Dinossauro Excelentíssimo, José Cardoso Pires)
Sendo o Homem um ser inacabado, está sempre em potencial possibilidade de se completar e ir cumprindo o seu não-acabamento. Esta é uma formulação reflexiva do tipo da que Octávio Paz em Signos em Rotação (1996) faz, que revela a sua própria vivência experimentada e testemunho consciente na escrita.
A
expressão idiomática «memória de elefante» não é, no linguajar quotidiano, associável
ao ser humano em geral. Mas à sua escala, “cobaias” do terceiro milénio, a
memória é uma reconhecida ferramenta imprescindível de sobrevivência, para o Homem
se reconhecer ao espelho, fazer um simples feedback
para lançar a mão às chaves do carro ou de casa, ou desanuviar de um dia de
trabalho com uma imagem mental de companhia.
No
prefácio ao livro O Contador de Retratos,
Guilherme de Oliveira Martins afirma que “[…]é a memória que projecta para além
do efémero” (ANTÓNIO SANTOS, 2013:15).
A
memória é a história, a identidade individual e coletiva. Construímo-nos a
registar e a reler esses registos. E a cada recordação, mesmo sem querer,
fazemos involuntárias reformulações. Contudo, quem acha que não faz sentido ser
fiel aos factos, dificilmente será fiel a si mesmo. A vida é aventura do
conhecimento.
E
apesar do gosto humano por estas viagens memorialísticas, o que recordamos do
que sentimos nunca são as sensações rigorosamente reais. Nunca relemos ou
recordamos de forma fidedigna um acontecimento, nem mesmo com excessiva atenção
ou por força decalcada. Quando analisamos o que sentimos, o que estamos a fazer
são juízos de valor sobre o que pensamos que estamos a sentir. E a
individualidade das nossas experiências é o que a ciência mais lentamente
consegue explicar.
No
catálogo da sua Exposição Antológica de Pintura/Desenho, o professor da
Sociedade Nacional de Belas-Artes Jaime Silva afirma o seguinte: “[…]acredito
na continuidade da memória como fundamento da identidade pessoal. E utilizo as
memórias, interiorizo conteúdos; sonho, e a interrogação no sonho, não poucas
vezes, obtém respostas fulgurantes. (JAIME SILVA, 2013)
Cada
um de nós habita um cérebro único, que a ele estamos ligados pelo humor dos
desejos pessoais, momentâneos, moldados nos nossos neurónios. E o eu engloba em
si o micro e o macro, cuja hierarquização é fraca e instável. O material
nemésico para pensar o eu não é teorizável. Para além de que essa função
nemésica é também imaginativa.
A
realidade é mais dura quando é memorialística, porque constitui um fluxo
contínuo de relações que não se restringem ao indivíduo.
Tanto
a ciência como a arte lidam ambas com factos. Marcel Proust dizia: “A sensação
é para o escritor o que a experimentação é para o cientista.” (in LEHRER,
Jonah, Proust era um Neurocientista,
2007) Mas até agora só o artista consegue amplamente descrever, ainda que só
por palavras, a realidade subjetiva.
O
filósofo Henri Bergson, Nobel da literatura em 1927, citado por Jonah Lehrer, afirmava
que a realidade da autoconsciência não pode ser reduzida ou dissecada
experimentalmente. Acreditava que só nos podemos compreender através da
intuição, um processo que exige muita introspeção e contemplação. Proust, seu
primo por afinidade, foi um dos primeiros artistas a interiorizar esta
filosofia. Filosofia tão em voga no ocidente dos nossos dias.
A
tal ponto que considerou a literatura realista, a que se limitava a descrever
coisas, a mais afastada da realidade. Como insistia Bergson, a realidade é
melhor compreendida subjetivamente quando acedemos às verdades intuitivamente.
A
neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel Herz, uma psicóloga em
Brown, demonstrou, no ensaio científico Testing
the Proustian Hypothesis, que os nossos sentidos do olfato e do paladar são
os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória
de longo prazo do cérebro.
António
Damásio no seu Livro da Consciência
avisa que: “O eu é, garantidamente, uma festa móvel.” (p.215) O “eu” é o ele
originário e originante. É nada menos que a substância de toda a obra de
Fernando Pessoa ao procurar-se (OCTÁVIO PAZ,1992:12).
A
ficção de Marcel Proust, que é principalmente a não ficção, explora a forma
como o tempo muda a memória.
Moldamos
a memória à nossa narrativa pessoal. Marcel Proust previne-nos que a realidade
das nossas memórias deve ser tratada com cuidado e ceticismo.
Hoje
curiosamente a ciência está a descobrir a verdade molecular subjacente a estas
teorias proustianas. A consciência é cada vez maior sobre a imperfeição das
nossas lembranças de factos passados. Porque ao Homem não é feito de substância
física e metafísica que nunca muda.
A
“desonestidade” da memória foi primeiramente documentada por Freud, por acaso,
quando se apercebeu que as suas pacientes, no decurso do seu estudo, acabaram
por acreditar na sinceridade das memórias que relatavam de abusos sexuais.
Contudo,
a ciência diz-nos que os neurónios não se tocam. Formam memórias por alterações
subtis na resistência das sinapses. Então o momento de tempo é introduzido no
espaço vazio da arquitetura do cérebro.
Para
Marcel Proust, as memórias eram como as suas frases, que nunca parava de as
modificar. Ele tornou-se um incansável revisor dos seus textos.
Era
um escritor que acreditava no ato da escrita como um processo criativo
espontâneo. Nunca começava por delinear as suas histórias. Achava que o
romance, tal como a inverdade das memórias que descrevia, devia discorrer
naturalmente (in LEHRER, Proust was a Neurocientist,
2007).
A
plasticidade da narrativa era um dos elementos mais realistas em Marcel Proust.
Até na última noite da sua vida, queria modificar uma parte do romance que
descrevia a morte lenta de uma personagem, porque entretanto tinha um pouco
mais a experiência do que era estar moribundo.
Também
Paul Ricoeur em Vivo até à Morte fez
questão de testemunhar na última parte do livro, com letra moribunda, o
sentimento de proximidade do fim, já no último mês da sua vida.
Marcel
Proust estava intensamente consciente da sua própria fraude. Como ele próprio
disse: “O único paraíso é o paraíso perdido” (LEHRER, 2007). Não há maneira de
descrever o passado sem mentir. As nossas memórias não se parecem com a ficção.
São a própria ficção. Neste sentido, qualquer diário ou texto autobiográfico é
autoficcionado.
O
romance e a vida, o cronista e o ficcionista são, na realidade, indistintos. A
recordação de uma determinada imagem não passa da nostalgia de um determinado
momento.
Marcel
Proust sabia intuitivamente que as nossas memórias exigiam este processo
transformador. O segredo deste escritor, que era filho de um célebre professor
de medicina, foi a consciência da distorção da memória de algo para o podermos
recordar.
Mas
os modelos conservadores científicos não conseguiram explicar a aleatoriedade e
a estranheza da memória.
Atualmente
começam-se a revelar pormenores moleculares que presidem ao modo como as nossas
memórias subsistem, as “marcas sinápticas” de que nos fala o Nobel Eric Kandel,
neurocientista austríaco, mesmo depois de nos termos esquecido delas.
As
memórias, como insistia Marcel Proust, não se limitam a perdurar, mas também a
mudar invariavelmente. Sempre que evocamos os nossos passados, as nossas
reminiscências ficam maleáveis de novo.
O
jovem autor Jonah Lehrer, no livro Proust
era um Neurocientista, explica que embora os priões que marcam as nossas
memórias sejam praticamente imortais, os pormenores dendríticos são
constantemente alterados, viajando entre os polos da lembrança e do
esquecimento. O passado é ao mesmo tempo perpétuo e efémero.
Não
é ingenuamente que no Viver para Contá-la,
Gabriel García Márquez inicia o livro autobiográfico com a frase: “A vida
não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.”
Outro escalpelizador da memória da vida e que a foi perdendo drasticamente.
E
estaria tudo no bom caminho da descoberta do ser, não fora o Livro das Previsões citado por outro
Nobel da literatura, José Saramago, n’ As
Intermitências da Morte pressagiar que: “Saberemos cada vez menos o que é
um ser humano”.
Numa perspetiva neurocientífica, segundo
António Damásio, a memória não está localizada numa estrutura isolada no
cérebro: “o cérebro na realidade regista as múltiplas consequências das
interacções do organismo com [determinada] entidade” (DAMÁSIO, 2010:170). A
memória é um fenómeno biológico e psicológico envolvendo atividades sensoriais
e motoras relacionadas com a interação.
A memória é uma faculdade
cognitiva extremamente importante porque ela forma a base para a aprendizagem.
Embora, segundo o mesmo
especialista, a memória inteiramente fidedigna seja um mito, apreendemos o
mundo por interação e por isso recordamos contextos e não objetos isolados. Se
não houvesse uma forma de armazenamento mental de representações do passado,
não teríamos uma solução para tirar proveito da experiência. Assim, a memória envolve um
complexo mecanismo que abrange o arquivo e a recuperação de experiências, que
está intimamente associada à aprendizagem, que é a habilidade de mudarmos o
nosso comportamento através das experiências que foram armazenadas na memória. A
aprendizagem é a aquisição de novos conhecimentos e a memória é a retenção
daqueles conhecimentos aprendidos.
“Só as lesões nos
córtices sensoriais iniciais criadores de mente e em seu redor impedem a
recordação da informação que em tempos foi processada por esses córtices e
registada na sua proximidade.” (DAMÁSIO, 2010:177) As alterações celulares decorrentes da
aprendizagem e da memória dependem da eficiência das sinapses e podem aumentar
a transmissão de impulsos nervosos, modulando o comportamento. A experiência
pode ocorrer a partir de uma aprendizagem ativa ou pelo contacto com espaços de
interação humana, cores, música, sons, livros, cheiros, etc.
Com o avançar na
idade, o cérebro humano também perde acuidade e a memória pode apresentar
alterações. “O cérebro é como um músculo; se não for exercitado, perde-se”,
segundo o espanhol Santiago Ramón y Cajal, Prémio Nobel da Medicina em 1906 e o
primeiro investigador moderno a estudar os neurónios.
A
ideia de estudar a obra literária para compreender melhor o papel da memória no
ato criativo e no conhecimento do eu sublinha a importância de uma nova atitude
que a gnosiologia e a ontologia apontam com base nos fundamentos essenciais da
realidade, como as ciências e as humanidades.
Segundo Émile Durkheim, existem duas consciências distintas em cada
indivíduo: uma que se confunde com o todo da sociedade e a ajuda a formar; a
outra é a de cada indivíduo e que o faz um indivíduo diferente dos demais,
apesar de fazer parte do todo. (in Regras
do Método Sociológico, 1895) Nessa conceção, fica claro que numa sociedade
o todo não é apenas o resultado da soma de cada uma de suas partes,
mas algo distinto delas. O indivíduo é único e tem mecanismos de autonomia, mas
é educado segundo regras sociais e culturais exteriores a si, que já existiam
antes, que o vão moldando e submetendo.
Ao
estudar o sonho, Maurice Halbwachs mostrou que o passado não é guardado na
memória verdadeiramente individual. Nesta restam apenas impressões, fragmentos
e imagens que não são memórias completas. As representações coletivas são as
memórias reais. Segundo ele, memórias pessoais autossuficientes não existem,
porque o indivíduo realmente não se lembra bem do passado, e por isso ele não
pode revivê-lo como tal, mas reconstruído a partir das necessidades do
presente. A reflexão sobre a evocação de memórias não é possível sem o trabalho
de consciência. E os quadros sociais da memória são precisamente
"instrumentos" para o indivíduo consciente reconstruir uma imagem do
passado consistente e de acordo com as necessidades do seu presente, a sua
existência como um ser social, de harmonia com o equilíbrio existencial de sua
personalidade, da sua identidade.
La conscience collective est une
réalité spirituelle, et le résultat de la science nouvelle fut de la révéler
peu à peu beaucoup plus riche et profonde que toutes les autres, puisque
celles-ci en dépendaient et s'y alimentaient. Son action, ses prolongements se suivent en effet dans toutes les régions
de la conscience de chaque homme ; son influence sur l'âme se mesure à
celle que les facultés supérieures, qui sont les modes de la pensée sociale,
exercent sur la vie sensitive. (Halbwachs,
1952:410).
Reportando
o tópico para o corpus do trabalho,
cronisticamente as recordações apresentadas por José Cardoso Pires em De Profundis, Valsa Lenta obedecem, de
forma espontânea por vontade do escritor, à sequência narrativa dos
acontecimentos, procurando fundamentar e clarificar o conhecimento que foi
ganhando de si, num determinado contexto.
Até
que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a crepitarem à minha
volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo
vivo […]. Sinto-me tomado de gratidão. Isto de alguém se recomeçar assim depois
de nulo é algo que deslumbra e ultrapassa. (PIRES, 1998:46)
José
Luis Sampedro, no seu livro Monte Sinaí,
também relembra, num discurso temporalmente ordenado, o sucedido em Nova
Iorque, já em casa dos seus filhos e neto:
Y empiezo ahora mismo, ya
instalado hogareñamente en la casa de mis hijos y nieto, porque mi memoria cada
vez graba menos lo reciente aunque siga recordando tenaz lo muy pasado. Como
solo cuento con dispersas notas de los últimos días en el Sinaí, desciendo ya
su ladera, he de recuperar lo no escrito con la evocación cuanto antes de
aquellas horas, adentrándome por mis galerías en busca de quien soy ahora y de
la nueva región en donde estoy desembocando tras pasar la frontera. (SAMPEDRO,
1998:11)
No livro La
Ciencia y La Vida, é com o lema de abertura “Para dialogar, parar”, que
Sampedro questiona o Homem e a sociedade de hoje: “[…] es un mundo súper
acelerado en el que no hay tiempo para la reflexión […]”(p.27)
Um
contemporâneo e amigo de José Cardoso Pires, António Alçada Baptista, que como
ele refletia muito sobre a vida, no livro já citado A Cor dos Dias, memórias e
peregrinações, confessa-se “[…] a
fazer de psicanalisado sem psicanalista, a tentar destrinçar a meada das
herdadas construções do mundo que sinto enoveladas por dentro de mim”. Neste livro
é possível ler uma crónica intitulada «A Alice» que conta que uma amiga comum
encontrou José Cardoso Pires dias antes de este ser internado para morrer e que
o próprio se despediu, com tranquilidade, dizendo-lhe que seria a última vez
que a veria neste mundo.
No
De Profundis, Valsa Lenta, este doente
apenas se queixou de mal-estar físico durante o momento do acidente vascular
cerebral propriamente dito. Descreve que fixou o olhar, sentiu-se mal como
nunca antes por momentos e pouco depois falou com sua mulher para lhe perguntar
o nome. Revela que manteve uma “fria tranquilidade”.
O
breve diálogo que reconstituiu na primeira pessoa com Edite, sua esposa,
decorre brando, como toda a narrativa, sem peripécias de ansiedade exaltada,
algumas vezes num tom distante, de observação omnisciente: “[…] ele ao
princípio sabia-se doente”, mas era “[…] uma impossibilidade com a qual
convivia numa aceitação natural.” Convertida a experiência em recordação, narra
então na terceira pessoa os dias de estranheza no mundo dos sentidos e dos
sentimentos “[…] a desmemória não só o isolou da realidade objectiva como o
destituiu, pode dizer-se, de sentimentos […]”(p. 38), narra o isolamento mental (i.e.,
a mente sem o conhecimento de si) e a consequente ausência de cada nome dos
outros e dos lugares: «Eu tenho filhos, não tenho? […] Como é que eles se
chamam?». José Cardoso Pires procura identificar-se através do reconhecimento
daqueles que participam na sua vida. Sem nomes, sem memória, o autor sente-se
fragmentado, usando indicadores de alteridade, de polifonia. ”O universo para
onde desertou esse Outro que eu acompanhei com as esvaídas recordações que
trouxe dele ou com os relatos da minha mulher e dos amigos que me visitaram era
assim.” (p.27)
José
Cardoso Pires entende a sua realidade dependente da mitologia do real que o
liga ao mundo à sua volta. E cita Ernest Hemingway, que ele considera o
viajante das mortes, em The Garden of
Eden: «os nomes penetram-nos até aos ossos».
De Profundis
que significa das profundezas,
recitado nas cerimónias fúnebres e no ofício dos mortos, é também título escolhido
por Óscar Wilde em 1897, sob a forma de uma longa e emocional epístola, escrita
na prisão onde o escritor irlandês cumpria pena, que foi mais tarde corrigida e
inserida no livro de cartas intitulado The
Letters of Óscar Wilde. Autor que Cardoso Pires conheceu bem, porque o
traduziu.
Nota-se
que José Cardoso Pires também se sentiu submetido a uma “prisão”, quando
afirmou: “ […] fui desapossado das minhas
relações com o mundo e comigo próprio.” (p. 23) Esta prisão “implacável e
irreversível”, vedou-lhe o acesso ao eu. Na manhã em que a claridade lhe trouxe
de volta a consciência de si, o sofrimento (e também a compreensão desse
sofrimento) foi experimentado graças à memória, a posteriori, num processo de reconstrução mental a partir do seu
presente e sobretudo dos testemunhos de um passado recente vivido e observado
por outros.
O
narrador depara-se com a questão da identidade para a representação humana
durante a construção do seu texto, quando narra, por exemplo, os diálogos
jocosos dos seus companheiros de internamento a desafiarem o próprio medo da
morte. Mas enquanto José Cardoso Pires foi personagem acidentada, a sua mente
não pôde recorrer a quaisquer registos mentais, quer de natureza ontogenética
quer filogenética.
No
momento do ato da escrita, o narrador recorda a ausência de sentido no período
pré e durante o internamento hospitalar: “Por cima duma porta não sei onde
havia um letreiro que me obrigava a um soletrar intrigado […].”(p. 44) Logo que
recupera a consciência de si, sente ativar a sua costumada cumplicidade com a
arte da captação da imagem e do diálogo pela observação “Agora que eu tinha
despertado o mundo recomeçava a partir de dois companheiros de hospital que
iria deixar em breve e que até lá eram os meus personagens de cada dia.” (p.
59) Depois, em pleno ato narrativo, dá conta do excesso de sentido que não
consegue esgotar na sua ficção, oferecendo ao leitor uma representação daquela
realidade (“Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para
sempre a minha viagem à desmemória […]” p. 63). Naturalmente, ficaram alguns
significantes ausentes no texto… “Esta absoluta economia de meios […] concentra
a acção em três metros quadrados de sofrimento; não existe nada mais perigoso
para um escritor do que abolir as sombras.” (António Lobo Antunes, Visão, 1997).
De
lembrar a fértil intertextualidade neste livro, qual organismo vivo textual que
engendra o eu com outros na dimensão da palavra percepcionada num deslizar
suave, sem densidade, “numa galeria sem história”, no período em que as
palavras chegavam “cegas” e “[…] o Outro que andava por lá o Outro que
afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim […]” (pp. 40-41).
De Profundis, Valsa Lenta,
Monte Sinaí e La Ciencia y La Vida são testemunhos escritos que transportam
consigo uma mensagem de humildade e de atenção necessárias perante a
fragilidade da condição humana, particularmente em situação potencialmente fatal,
que é pelos autores experienciada e cuja atitude redobrada acontece
naturalmente quando se é um sobrevivente com consciência dela.
A
perda da memória e/ou da autonomia, que os levou ao internamento, ao
afastamento temporário da atividade literária e à desmarcação de compromissos,
trouxe-lhes uma claridade própria, o silêncio, a ausência de ambições e de desapego
aos projetos. Mas a memória desencadeou um projeto maior: o conhecimento de si.
A compreensão da vida passou a ser o projeto literário, de que são testemunhos
os textos em estudo.
No
livro Monte Sinaí de José Luis Sampedro,
não há diagnóstico de perda de memória, mas de um caso agudo cardíaco de grande
risco, em que este recorda o seu médico “[…] como un arcángel […] como alguien
que vino a proporcionarme la seguridad en el sentido de que se estaba haciendo
lo que se debía hacer.”(p.246)
Nove
anos depois, no livro Escribir es Vivir
(2007), que reúne conferências de José Luis Sampedro, o autor comprova a sua
boa memória retrospetivando a sua vida e autoapelida-se de emigrante no tempo
porque considera que a sua vida longa já não pertence ao mundo de hoje.
No pertenezco al mundo de hoy. Estoy aquí de polizón. Eso sí, no he
venido en patera y tengo mis papeles en regla, pero no soy de aquí. Los artefactos
no me interesan. No me gusta el teléfono. […] el mundo de mi infancia, sigue
siendo mi mundo. Afortunadamente, sigo siendo el niño que vive allí y no quiero
ser otra cosa. (pp.44
e 55)
Dando
o seu testemunho de escritor, de acordo com o tema das conferências, revela que
ainda não escreveu a sua autobiografia porque a sua experiência de vida está
nas novelas que nascem como uma “[…] prehistoria, a veces muy larga desde que
la idea empieza a cuajar como una nebulosa en la mente del autor” (p.270) e depois
os primeiros parágrafos vão servindo de ecografia literária que mostra a
singularidade e a apaixonada gestação de cada livro.
O
modo discursivo, nos livros citados, é tendencialmente substantivo, o que no
caso de De Profundis, Valsa Lenta de
José Cardoso Pires foi fruto de uma terceira versão do texto. Estão impregnados
de franqueza e de sinceridade perante a fragilidade e a criatividade humanas que
é tónica dominante, em particular a força da vida sobre a doença, cujo ser se mostra
consciente da sua finitude, usando um tom confessional e lúcido sobre a
importância da memória para os sentimentos (de gratidão à ciência e seus
discípulos) e a atenção ao mundo circundante.
Rosa Maria Duarte, O Canto do Cisne no Retorno do Eu ao Ato da Escrita, 2015.
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