sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Dá-me para escrever, o que é que eu hei-de fazer? E para pintar? Nem falar! Para cantar? Nem que seja só para mim.


1.2.         A criatividade  


«Lutemos», declara ele [Goethe] «pela perfeição da obra de arte em si mesma e por si mesma; eles, os moralistas, preocupam-se com o efeito que ela provoca nas pessoas; mas isso é coisa com que o verdadeiro artista se preocupa tanto como a natureza quando produz um leão ou um colibri. (THOMAS MANN, 1979:54)
O escritor não existe sem a sua liberdade criadora. «Um livro cresce com o escritor, com a experiência e a depuração íntima de um escritor.” (José Cardoso Pires em entrevista a João Alves das Neves d’ O Estado de São Paulo, 23/4/1972)
Segundo Goethe, a criação artística devia ser indiferente a objetivos ou finalidades. (“E olhe que quando eu levo uma grande porrada é que começo a escrever mais […] Quem corre atrás dos prémios acaba por levar pedradas, como quem corre atrás do público.” (José Cardoso Pires em entrevista a Inês Pedrosa no Expresso, 20/12/1997))
Através da criatividade, o Homem liberta-se da tirania dos factos. E Goethe repelia os imperativos morais nas artes por serem de origem social. Também Nietzsche considerava a arte humana a vontade de poder na sua dimensão criadora. A arte encarada como libertação do homem, num princípio estético ou plástico sem moralidades ou críticas.
Segundo António Damásio no seu livro O Erro de Descartes, a criatividade é uma capacidade humana que consiste em fazer minoritárias combinações úteis.
“Fusão da intuição e da razão” defende Jonas Salk a criatividade, o inventor da primeira vacina anti pólio.
A arte lida com o subconsciente; por isso, muitas vezes, o escritor se surpreende com o seu trabalho. Por isso Siri Hustvedt nos seus ensaios afirma que a arte tem algo de premonição. E que a obra de arte sabe mais do que o seu criador, porque utiliza mais do que a consciência. Daí que certas obras de arte superem os seus autores. Como Fiódor Dostoiesvski que era antissemita, mas que chegou a revelar-se outro. Não será por isso que o Homem escreve, para se tornar outro?
Escrevemos sempre para um outro eu imaginário.
Leo Szilard, físico nuclear húngaro, explica: “O cientista criador tem muito em comum com o artista e o poeta. O pensamento lógico e a capacidade analítica são atributos necessários a um cientista, mas estão longe de ser suficientes para o trabalho criativo. Aqueles palpites na ciência que conduziram a grandes avanços tecnológicos não foram logicamente derivados de conhecimento preexistente: os processos criativos em que se baseia o progresso da ciência atuam no nível do subconsciente”. (in Science as a Mode of Being, University Press of America, 1996).
Se numa aceção filosófica, a criatividade é um recurso da consciência para se libertar do quotidiano, então é a chave da capacidade de evolução da humanidade e cada indivíduo tem um perfil criativo distinto.
Na atividade criativa reside a memória “RAM” biológica, que é um dos componentes dos registos da memória. Esta atividade do ponto de vista neurocerebral está ainda em estudo, pois a sua carga subjetiva é significativa, e está a ser mais perscrutada pela neurociência.
“Recordar é um ato criativo”, segundo José Saramago n’ O Homem Duplicado. Logo intrinsecamente subjetivo. Como a realidade deve ser entendida de acordo com a fenomenologia que pretende reformular o estatuto da subjetividade e da ipseidade "aquém" da intencionalidade de Michel Henry, filósofo e novelista francês, criador de um pensamento filosófico original denominado Fenomenologia da Vida.
Sabe-se que a função mnésica é imaginativa e que o ato de pensar é individual.
No âmbito do ofício da representação artística, a experiência autoral é movida pela aspiração à experiência do belo em liberdade. Seja o convencionado belo amoroso ou o belo horrível. Até para quem escreve para se despedir de tudo na vida, elege o ato artístico como derradeiro momento a vivenciar. A beleza desse ato é a visceralidade da comunicação. “El conseguir una obra de arte requiere algo distinto, algo que, para mí, constituye el secreto de la vida, lo no transmisible de la vida.” (p.22) Com este enfoque no seu livro Escribir es Vivir, José Luis Sampedro pretende penetrar mais profundamente na génese da criação literária. Porque ele sabe que a arte é muito mais do que a técnica; esta ensina-se porque é racional. O resultado não é apenas a obra que o autor faz; o autor faz-se a si mesmo, escritor, pela experiência criativa do ato da escrita. “[…]el escritor transforma lo que ve, lo que toca, lo que piensa, lo que imagina, lo que ha ocurrido; el escritor transforma todo en carne.”(SAMPEDRO, 2008:27)
“[…] a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade com eles […]” É a definição que Fernando Pessoa nos dá, pela voz de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego. E a arte assume diferentes linguagens que dialogam no dia-a-dia. A poesia com a música. O teatro com o som e a imagem. Os autores numa estação de metro: a pintura de Vieira da Silva e as palavras de Cesário Verde. “Se eu não morresse, nunca! E eternamente/Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas.”(in O Livro de Cesário Verde).
A criação artística, como processo comunicativo que sustenta e questiona os conceitos de criatividade e de arte, tem sido inevitavelmente marcada pelas diferentes culturas e épocas. A criatividade é, assim, um processo de representação da realidade humana, ultrapassando-a e alargando-se ao mundo da imaginação.
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em libertá-los deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade […]. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. (B.SOARES, 2008).
Não há dúvida de que a prática da escrita literária não é apenas transpor para o “papel” as ideias em processamento na mente individual. A escrita interage com o seu autor e com toda a sua vivência, ajuda-o a (re)pensar cada momento de leitura ou de pausa durante o ato de escrita do texto em construção e a organizar melhor as ideias já formadas ou em formação. E o artista, amante do belo, não vive exclusivamente para a estética ou para a antiestética. Mesmo o poeta mais introvertido procura fazer da sua mensagem artística um ato transformador, porque é único e inevitavelmente social. O escritor é, por norma, alguém que não vive apenas para a questão literária ou de redefinição do belo em arte, mas procura reencontrar-se na sua identidade cultural.
Para Jorge Luís Borges, a maioria das criações e das invenções humanas é como extensões do nosso corpo. Os livros são “uma extensão da nossa memória e da nossa imaginação” (BORGES, 1989:166).
A imaginação funciona de duas maneiras diferentes para Ricoeur: preserva a ordem, num processo de identificação que espelhe essa ordem ou então tem uma função disruptiva, produzindo algo que atua como uma irrupção. Esta capacidade levou Ricoeur à investigação sobre aquilo que designou pela «poética da vontade».
Fernando Pessoa considera que a criação artística implica a conceção de novas relações significativas, graças à distanciação que se faz da experiência factual de determinada realidade. O poeta parte dessa realidade, mas distancia-se, graças à interação entre a razão e a sensibilidade criativa, para elaborar mentalmente a obra.
A obra é fruto do projeto sonhado pela mente insatisfeita. “Triste de quem é feliz” (PESSOA, 1995:54) nas suas comodidades preguiçosas e não se sacrifica pelos seus sonhos. É que a aventura humana da vida é grande, porque “Ninguém conhece que alma tem.” (PESSOA, 1995:69) Há ideias que nascem e ainda não as conseguimos batizar…
Historicamente, o ser humano tem recorrido à criação artística como ferramenta de comunicação, nomeadamente de protesto, de intervenção e de descoberta. Mas enquanto uns a têm considerado uma necessidade de expressão e realização ou de tomada de consciência, outros censuram-na ou receiam-na, precisamente por isso. No ato criativo, o artista reclama a sua liberdade. Esta vitalidade é explorada pelo artista, que assume muitas vezes um papel importante na consciência de um país ou de uma cultura. Até porque, segundo Maurice Halbwachs, há uma memória coletiva que estrutura a sua missão.
[…] si les images se fondent si étroitement avec les souvenirs, et si elles paraissent emprunter à ceux-ci leur substance, c'est que notre mémoire n'était pas comme une table rase, et que nous nous sentions capable, par nos propres forces, d'y apercevoir, comme dans un miroir troublé, quelques traits et quelques contours qui nous rendraient l'image du passé. De même qu'il faut introduire un germe dans un milieu saturé pour qu'il cristallise, de même, dans cet ensemble de témoignages extérieurs à nous, il faut apporter comme une semence de remémoration, pour qu'il se prenne en une masse consistante de souvenirs. (HALBWACHS, 1950:7/8)
Mas para elevar o seu trabalho de representação textual sobre uma realidade factual, qualquer autor aproveita a sua intuição, o seu pensamento espontâneo, se se quiser, a sua “musa criadora”, e usa-a no tempo real do ato de inspiração. A inspiração que pode ser entendida como sinónimo de “inalação” de uma ideia, no caso de uma ideia transportada para a consciência de um obreiro da arte, para depois entrar no ciclo “respiratório”, oxigenar a mente criadora e fazer a sua expulsão/exposição no suporte material pretendido.
Daí o conceito de criatividade aparecer associado ao de inovação. Se considerarmos a criatividade a faísca e a inovação a combustão, a inovação é a prática da criatividade.
Aqueles que vão respondendo aos apelos criativos e desenvolvem o seu talento artístico, que todos temos latente, vão podendo desfrutar do privilégio da observação interior de si a partir de cada experiência inédita, como sendo o artista um útero da fecundação de ideias. Milan Kundera ousa afirmar:Tenho demasiado medo dos professores para quem a arte não passa de um derivado de correntes filosóficas e teóricas (KUNDERA, 1986:47). E ensinar, segundo José Luis Sampedro em Escribir es Vivir, resume-se a duas palavras: amor e provocação. Provocar quem se ensina para pensar por sua conta. Com autenticidade. Num ato, que me atrevo a dizer, de amor fati a que se refere o eterno retorno de Nietzsche, que requer uma aceitação serena do pathos que é a vontade de poder, ou seja, a lei originária da própria essência de toda a realidade na economia do sistema existencial.
Apesar do silêncio de Paul Ricoeur relativamente à reflexão sobre a prática criativa no texto literário, o centro da preocupação na sua obra, segundo o próprio, é o fenómeno da criatividade.
 Apesar das aparências, o meu único problema desde que dei início às minhas reflexões tem sido a criatividade. Considerei-a do ponto de vista da psicologia individual nos meus primeiros trabalhos sobre a vontade, e depois, ao nível cultural, com o estudo dos simbolismos. (RICOEUR, 1986:52)
Edward de Bono, em Serious Creativity, explica que a nossa mente se organiza por sequências de padrões e não por pensamentos criativos. “Unfortunately, natural creativity is not very powerful. Creativity is an unnatural process[…]” (DE BONO, 1995:13). Afirma este escritor e psicólogo da Universidade de Oxford que a criatividade, que constitui modificações na perceção e nos conceitos, é um fenómeno que acontece ao invés do processo natural da mente humana de seguir padrões. “What I have written here may seem theoretical, but it is a necessary base for the understanding of creativity (changes in perceptions and concepts)” Segundo ele, a primeira dificuldade para o ato criativo é conseguir tempo e espaço para o pensamento criativo. Por isso, há quem pense que a criatividade é apenas para mentes especiais em momentos únicos e, de forma particular, em sessões de brain storming. Mas a lógica da perceção exige a capacidade de pensar criativamente e, deste modo, qualquer um ao desenvolver pensamentos próprios pode e deve desenvolver esta capacidade.
Há vinte seis anos atrás, De Bono já tinha escrito um livro intitulado The Mechanism of Mind (1969) no qual descreveu como as redes nervosas do cérebro permitem que as informações recebidas se organizem em sequências de padrões.
Mais recentemente no seu Serious Creativity, De Bono demonstra que a criatividade não é um processo natural e que requer confiança e prática. O truque é pensar devagar, com tempo. E a nossa experiência é o mote para a criação.
With judgment, we look at an idea and compare it to our experience. If the idea does not fit our experience, we reject it. With movement, we use the idea for its movement value to go forward to a new idea. (DE BONO, 1995:17).
A prática da reflexão sobre o ato criativo leva o escritor catalão Carlos Ruiz Zafón a pôr na boca das suas personagens afirmações pragmáticas sobre a sua própria experiência do processo criativo: “A inspiração surge quando colamos os cotovelos à mesa e o cu à cadeira e começamos a suar. Escolhe um assunto, uma ideia, e espreme o cérebro até te doer. A isso chama-se inspiração.” (ZAFÓN, 2008:254)
Também Eça ironizava a escrita do outro quando alguém se sentava a uma mesa e não conseguia ter ideias. Como se a mente fosse um limão e, por vezes, não vertesse um pingo de suco. O que reforça a opinião recorrente e consensual da ideia de que a prática da escrita estimula a criatividade literária, enriquecida pelas vivências e experiências do próprio. O que não explica suficientemente o fenómeno repentino do ato criativo. De tal modo que é possível encontrar visões em correntes da Psicologia moderna que admitem que a criatividade humana, que é considerada espontânea, pode sofrer processos de cristalização ou estagnação com o crescimento humano e experiências sociais até à idade adulta.
Inúmeras vezes, a génese do trabalho do artista é precisamente a tentativa de compreensão do fenómeno da inspiração criativa. Richard Zenith, na abertura do prólogo na sua edição do Livro do Desassossego, discorre sobre este fenómeno:
 A inspiração chega de formas imprevisíveis. Uma imagem entrevista, uma frase entreouvida, um cheiro que desperta uma lembrança, uma conversação, uma notícia no jornal, uma repentina ideia surgida na cabeça, coisas tão simples podem dar origem a um poema, um quadro, uma sinfonia, ou até a um complexo sistema filosófico.
A nossa criatividade revolve os desertos de sentido e liberta o Homem da tirania dos factos. E com novos exercícios da consciência, visualizando o sentido da palavra, extrapola a simbologia do seu grafismo ou os sentimentos na imagem por exemplo, em vez de ver apenas um grafismo no papel; nota o som articulado em vez de apenas ruído, e chega a sentir a música, que o ouvido desfruta.
E a memória participa no ato criativo ao mobilizar situações que comprovam ou invalidam as experiências individuais.
A criatividade permite à consciência atingir um patamar superior à coordenação das atividades fisiológicas.
E a expressão poética é o tecido simbólico por excelência que desenha o mapa da mente humana.
Através das formas de arte, diz o psicólogo William James, é possível encontrar as respostas emocionais envolvidas na perceção humana do mundo.

In listening to poetry, drama, or heroic narrative we are often surprised at the cutaneous shiver which like a sudden wave flows over us, and at the heart-swelling and the lachrymal effusion that unexpectedly catch us at intervals. In listening to music the same is even more strikingly true. (JAMES, 1950: 457)
As formas de arte, como a literatura, dão ao Homem um acesso único à multiplicidade subtil de sentimentos e à capacidade de compreendê-las. Apesar das diferenças individuais em termos de resposta emocional aos eventos artísticos, cada um deve ser capaz de compreender as emoções dos outros, através da sua própria experiência de contacto com a arte na sua mente e no seu corpo.
Sobre o poema «Autopsicografia» de Fernando Pessoa, António José Saraiva afirmou: “Este poema está construído na terceira pessoa como a lei de Newton, ou qualquer outro enunciado científico, para significar que é a inteligência, como um ser autónomo, que explica o processo de criação poética.” A teoria do fingimento poético foi elaborada na Arte Poética de Horácio a partir do verbo «fingir» e Fernando Pessoa, por via da introspeção, verificou o processo em si próprio. Constitui a distância necessária para qualquer «eu» se olhar e se ver.
A autorreferencialidade é um dos elementos recorrentes do discurso autobiográfico reflexivo que implica um distanciamento crítico do autor. No livro Conversas de Mário Ventura, José Saramago confidencia a sua experiência do ato de escrita ao seu amigo:
O trabalho de torturado, digamos, de espremer a frase, virá-la, emendá-la, cobrir a página de emendas, eu não tenho. De facto eu não sou esse, eu não sou o chamado torturado da forma. Não sou aquele que, tendo escrito, escreve, reescreve e torna a escrever, emenda e sucessivamente vai emendando, mas também não sou esse fenómeno que mete o papel à máquina e vai tudo por aí fora. Pode acontecer que em certos momentos, porque estou ligado ao assunto, ou porque aqueci, entro numa espécie – não quero chamar-lhe estado segundo, eu não saberia também definir o que está antes do segundo -, mas entro numa espécie de excitação, uma espécie de compulsividade em que verifico que me podem sair duas ou três páginas que têm muito que ver com esse jacto.
Outros autores têm procurado entender e explicar a criatividade. António Lobo Antunes publicou trabalhos sobre D. Duarte (o Leal Conselheiro), Bocage, Antero de Quental, Ângelo de Lima e Lewis Carrol, em revistas da sua especialidade profissional, a Psiquiatria, numa tentativa de compreensão psicológica das raízes da criação artística. Na sua longa carreira literária, o ato criativo pode ser entendido como uma celebração da existência pela consciência da vida elevada, sobretudo face à dor e à finitude humana. Como nos Sôbolos Rios Que Vão.
Até diferentes estágios têm sido delineados na descrição do processo criativo, respetivamente ligados à perceção, teorização, visão (insight), concretização…
No âmbito do meu propósito de recolher testemunhos presenciais sobre este fenómeno da criatividade literária, no dia 12 de junho de 2013, tive o privilégio de entrevistar, na sua casa na rua Tomás Ribeiro, o conceituado Professor e escritor Urbano Tavares Rodrigues (gravação áudio que incluí em anexo). Segundo a longa experiência de vida de escritor, este afirma que faz todo sentido falar de inspiração, da qual boa parte do ato criativo resulta, aliada à vontade de criar e ao trabalho de execução, do ato em si. O mesmo é dizer que a inspiração é despertada dentro do eu, ora espontaneamente, ora por autoindução, muitas vezes a partir de motivos externos ao seu autor. Nesta fase da sua existência vê-se frequentemente confrontado com o limite da vida que o inspirou a escrever um dos seus mais recentes livros A Imensa Boca dessa Angústia. É um livro cujo discurso autobiográfico testemunha o sofrimento físico causado pelos espasmos de angústia, sufocações, dores no peito de origem cardiovascular. É um testemunho nietzschiano, a avaliar por palavras do próprio filósofo: “Sientes que debe llegar la hora de la despedida […]. Pero no olvidas que lo perecedero entona sin cesar su canción y que al oír la primera estrofa casi se muere de nostalgia ante la idea de que todo pudiera pasar para siempre.” (NIETZSCHE, 1932:13)
Urbano questionado sobre o que é a consciência humana, respondeu que é o conhecimento que o homem tem de si próprio na sua relação com o mundo e do conceito culturalmente inevitável de Deus, embora se tenha mantido desvinculado de quaisquer confissões religiosas. Contudo, da mãe ganhou uma cultura religiosa que chegou a praticar em criança quando frequentou a catequese católica. Considerava-se agnóstico, mas com uma relação afetiva especial com a figura de Jesus, porque O via como um homem generoso, que sabia acarinhar uma prostituta. Urbano, firme nas suas convicções comunistas, respeitava os credos religiosos de qualquer pessoa. Acreditava, como homem de esquerda, nos princípios do marxismo e na justiça social.
Para Octávio Paz, a literatura é capaz de retratar as mudanças e “as prepara e profetiza… encarrega-se de representar em muitos casos nossos desejos e paixões.” (PAZ, 1994:123).
A criatividade é assunto de reflexão de alguns cientistas e escritores como também Vygotsky, Dostoievski, António Damásio, Leo Szilard e Jonas Salk. Na sua obra Criação e imaginação, Vygotsky afirma que é a atividade criadora que faz o homem ser alguém voltado para a construção do futuro, com capacidade para modificar o seu presente.
 “A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda.” (B.SOARES, 2008)
O cientista criador tem muito em comum com o artista e o poeta. O pensamento lógico e a capacidade analítica são atributos necessários a um cientista, mas estão longe de ser suficientes para o trabalho criativo. Aqueles palpites na ciência que conduziram a grandes avanços tecnológicos não foram logicamente derivados de conhecimento preexistente: os processos criativos em que se baseia o progresso da ciência atuam no nível do subconsciente.
Por sua vez, Jonas Salk defendia que a ideia de criatividade assenta numa ”fusão da intuição e da razão”.
E Damásio explicita o apoio a afirmações feitas pelo físico nuclear húngaro Leó Szilárd e pelo médico Jonas Salk.
Um exercício crítico interessante é aquele sobre a complexidade do sentido de autoria, conferindo à obra um estatuto não de criação artística, mas de simulacro criativo da realidade. O objetivo crítico deste tipo de momento discursivo prende-se com o paradoxo de reflexividade introduzido por Nietzsche e trabalhado por artistas pós-modernistas de que não há originalidade, nem certezas, mas apenas o simulacro revelado textualmente.
Dir-se-ia, na verdade, conforme a palavra de Zaratustra, que as coisas vêm por si até nós, desejosas de converter-se em símbolos […]. Eis a minha experiência de inspiração; e não duvido de que se teria de recuar milhares de anos para encontrar alguém com o direito de dizer: «é também a minha». (NIETZSCHE, 1997:104)
A inspiração nietzschiana chega pela verdade da existência contida na palavra. Uma inspiração sem proprietários.
A atenção depositada sobre esta temática neste trabalho incidirá sobre um corpus ibérico de dois testemunhos de dois prosadores literários, que foram “almas atentas” do ato criativo.
José Luis Sampedro, em Escribir es Vivir, dá a conhecer ao leitor um livro coletivo com testemunhos pessoais sobre o ato criativo, em que o próprio foi colaborador: Escritores ante el espejo.
        A literatura é, mais uma vez, o laboratório do testemunho autoral e pretende dar pistas à ciência que pouco sabe sobre a forma como o cérebro reage às obras de arte. Alguns psicólogos tentam descobrir leis estéticas, mas os resultados ainda são dececionantes. Se um dia a estética experimental produzir informações úteis e concludentes sobre, por exemplo, porque uma pessoa gosta de fado e outra não, tanto melhor. Até agora, ainda pouco se adiantou.


          Rosa Maria Duarte, in O Canto do Cisne no Retorno do Eu ao Ato da Escrita, 2015.









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