1.2. A criatividade
«Lutemos», declara ele [Goethe]
«pela perfeição da obra de arte em si mesma e por si mesma; eles, os
moralistas, preocupam-se com o efeito que ela provoca nas pessoas; mas isso é
coisa com que o verdadeiro artista se preocupa tanto como a natureza quando
produz um leão ou um colibri. (THOMAS MANN, 1979:54)
O
escritor não existe sem a sua liberdade criadora. «Um livro cresce com o
escritor, com a experiência e a depuração íntima de um escritor.” (José Cardoso
Pires em entrevista a João Alves das Neves d’ O Estado de São Paulo, 23/4/1972)
Segundo
Goethe, a criação artística devia ser indiferente a objetivos ou finalidades. (“E
olhe que quando eu levo uma grande porrada é que começo a escrever mais […] Quem
corre atrás dos prémios acaba por levar pedradas, como quem corre atrás do
público.” (José Cardoso Pires em entrevista a Inês Pedrosa no Expresso, 20/12/1997))
Através
da criatividade, o Homem liberta-se da tirania dos factos. E Goethe repelia os
imperativos morais nas artes por serem de origem social. Também Nietzsche considerava
a arte humana a vontade de poder na sua dimensão criadora. A arte encarada como
libertação do homem, num princípio estético ou plástico sem moralidades ou
críticas.
Segundo
António Damásio no seu livro O Erro de
Descartes, a criatividade é uma capacidade humana que consiste em fazer minoritárias
combinações úteis.
“Fusão
da intuição e da razão” defende Jonas Salk a criatividade, o inventor da
primeira vacina anti pólio.
A
arte lida com o subconsciente; por isso, muitas vezes, o escritor se surpreende
com o seu trabalho. Por isso Siri Hustvedt nos seus ensaios afirma que a arte
tem algo de premonição. E que a obra de arte sabe mais do que o seu criador,
porque utiliza mais do que a consciência. Daí que certas obras de arte superem
os seus autores. Como Fiódor Dostoiesvski que era antissemita, mas que chegou a
revelar-se outro. Não será por isso que o Homem escreve, para se tornar outro?
Escrevemos
sempre para um outro eu imaginário.
Leo
Szilard, físico nuclear húngaro, explica: “O cientista criador tem muito em
comum com o artista e o poeta. O pensamento lógico e a capacidade analítica são
atributos necessários a um cientista, mas estão longe de ser suficientes para o
trabalho criativo. Aqueles palpites na ciência que conduziram a grandes avanços
tecnológicos não foram logicamente derivados de conhecimento preexistente: os
processos criativos em que se baseia o progresso da ciência atuam no nível do
subconsciente”. (in Science as a Mode of Being, University
Press of America, 1996).
Se
numa aceção filosófica, a criatividade é um recurso da consciência para se
libertar do quotidiano, então é a chave da capacidade de evolução da humanidade
e cada indivíduo tem um perfil criativo distinto.
Na
atividade criativa reside a memória “RAM” biológica, que é um dos componentes
dos registos da memória. Esta atividade do ponto de vista neurocerebral está ainda
em estudo, pois a sua carga subjetiva é significativa, e está a ser mais perscrutada
pela neurociência.
“Recordar
é um ato criativo”, segundo José Saramago n’ O Homem Duplicado. Logo intrinsecamente subjetivo. Como a realidade
deve ser entendida de acordo com a fenomenologia que pretende reformular o
estatuto da subjetividade e da ipseidade "aquém" da intencionalidade de
Michel Henry, filósofo e novelista francês, criador de um pensamento filosófico
original denominado Fenomenologia da Vida.
Sabe-se
que a função mnésica é imaginativa e que o ato de pensar é individual.
No
âmbito do ofício da representação artística, a experiência autoral é movida pela
aspiração à experiência do belo em liberdade. Seja o convencionado belo amoroso
ou o belo horrível. Até para quem escreve para se despedir de tudo na vida,
elege o ato artístico como derradeiro momento a vivenciar. A beleza desse ato é
a visceralidade da comunicação. “El conseguir una obra de arte requiere algo
distinto, algo que, para mí, constituye el secreto de la vida, lo no
transmisible de la vida.” (p.22) Com este enfoque no seu livro Escribir es Vivir, José Luis Sampedro
pretende penetrar mais profundamente na génese da criação literária. Porque ele
sabe que a arte é muito mais do que a técnica; esta ensina-se porque é
racional. O resultado não é apenas a obra que o autor faz; o autor faz-se a si
mesmo, escritor, pela experiência criativa do ato da escrita. “[…]el escritor transforma lo que ve, lo que toca,
lo que piensa, lo que imagina, lo que ha ocurrido; el escritor transforma todo
en carne.”(SAMPEDRO, 2008:27)
“[…] a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade com
eles […]” É a definição que Fernando Pessoa nos dá, pela voz de Bernardo
Soares, no Livro do Desassossego. E a
arte assume diferentes linguagens que dialogam no dia-a-dia. A poesia com a
música. O teatro com o som e a imagem. Os autores numa estação de metro: a
pintura de Vieira da Silva e as palavras de Cesário Verde. “Se eu não morresse,
nunca! E eternamente/Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas.”(in O Livro de Cesário Verde).
A criação artística, como processo comunicativo que sustenta e
questiona os conceitos de criatividade e de arte, tem sido inevitavelmente marcada
pelas diferentes culturas e épocas. A criatividade é, assim, um processo de
representação da realidade humana, ultrapassando-a e alargando-se ao mundo da
imaginação.
A arte consiste em fazer os
outros sentir o que nós sentimos, em libertá-los deles mesmos, propondo-lhes a
nossa personalidade […]. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que
sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, dizer
tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o
que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela
pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas,
o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento
humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
(B.SOARES, 2008).
Não há dúvida de que a prática da escrita literária não é apenas
transpor para o “papel” as ideias em processamento na mente individual. A
escrita interage com o seu autor e com toda a sua vivência, ajuda-o a (re)pensar
cada momento de leitura ou de pausa durante o ato de escrita do texto em
construção e a organizar melhor as ideias já formadas ou em formação. E o
artista, amante do belo, não vive exclusivamente para a estética ou para a antiestética.
Mesmo o poeta mais introvertido procura fazer da sua mensagem artística um ato
transformador, porque é único e inevitavelmente social. O escritor é, por
norma, alguém que não vive apenas para a questão literária ou de redefinição do
belo em arte, mas procura reencontrar-se na sua identidade cultural.
Para Jorge Luís Borges, a maioria das criações e das invenções
humanas é como extensões do nosso corpo. Os livros são “uma extensão da nossa
memória e da nossa imaginação” (BORGES, 1989:166).
A imaginação funciona de duas maneiras diferentes para Ricoeur:
preserva a ordem, num processo de identificação que espelhe essa ordem ou então
tem uma função disruptiva, produzindo algo que atua como uma irrupção. Esta
capacidade levou Ricoeur à investigação sobre aquilo que designou pela «poética
da vontade».
Fernando Pessoa considera que a criação artística implica a
conceção de novas relações significativas, graças à distanciação que se faz da
experiência factual de determinada realidade. O poeta parte dessa realidade,
mas distancia-se, graças à interação entre a razão e a sensibilidade criativa,
para elaborar mentalmente a obra.
A obra é fruto do projeto sonhado pela mente insatisfeita. “Triste de quem é feliz” (PESSOA, 1995:54) nas suas comodidades preguiçosas e não se sacrifica pelos seus sonhos. É que a aventura humana da vida é grande, porque “Ninguém conhece que alma tem.” (PESSOA, 1995:69) Há ideias que nascem e ainda não as conseguimos batizar…
A obra é fruto do projeto sonhado pela mente insatisfeita. “Triste de quem é feliz” (PESSOA, 1995:54) nas suas comodidades preguiçosas e não se sacrifica pelos seus sonhos. É que a aventura humana da vida é grande, porque “Ninguém conhece que alma tem.” (PESSOA, 1995:69) Há ideias que nascem e ainda não as conseguimos batizar…
Historicamente, o ser humano tem recorrido à criação
artística como ferramenta de comunicação, nomeadamente de protesto, de
intervenção e de descoberta. Mas enquanto uns a têm considerado uma necessidade
de expressão e realização ou de tomada de consciência, outros censuram-na ou
receiam-na, precisamente por isso. No ato criativo, o artista reclama a sua
liberdade. Esta vitalidade é explorada pelo artista, que assume muitas vezes um
papel importante na consciência de um país ou de uma cultura. Até porque,
segundo Maurice Halbwachs, há uma memória coletiva que estrutura a sua missão.
[…] si les images se fondent si étroitement avec les souvenirs, et si elles
paraissent emprunter à ceux-ci leur substance, c'est que notre mémoire n'était
pas comme une table rase, et que nous nous sentions capable, par nos propres
forces, d'y apercevoir, comme dans un miroir troublé, quelques traits et
quelques contours qui nous rendraient l'image du passé. De même qu'il faut introduire
un germe dans un milieu saturé pour qu'il cristallise, de même, dans cet
ensemble de témoignages extérieurs à nous, il faut apporter comme une semence
de remémoration, pour qu'il se prenne en une masse consistante de souvenirs. (HALBWACHS,
1950:7/8)
Mas para elevar o seu trabalho de representação textual sobre uma realidade
factual, qualquer autor aproveita a sua intuição, o seu pensamento espontâneo, se
se quiser, a sua “musa criadora”, e usa-a no tempo real do ato de inspiração. A
inspiração que pode ser entendida como sinónimo de “inalação” de uma ideia, no
caso de uma ideia transportada para a consciência de um obreiro da arte, para
depois entrar no ciclo “respiratório”, oxigenar a mente criadora e fazer a sua
expulsão/exposição no suporte material pretendido.
Daí o conceito de criatividade aparecer associado ao de inovação. Se
considerarmos a criatividade a faísca e a inovação a combustão, a inovação é a
prática da criatividade.
Aqueles
que vão respondendo aos apelos criativos e desenvolvem o seu talento artístico,
que todos temos latente, vão podendo desfrutar do privilégio da observação
interior de si a partir de cada experiência inédita, como sendo o artista um
útero da fecundação de ideias. Milan Kundera ousa afirmar: “Tenho demasiado medo dos professores para quem a arte não passa
de um derivado de correntes filosóficas e teóricas” (KUNDERA, 1986:47). E ensinar, segundo José Luis Sampedro em Escribir es Vivir, resume-se a duas
palavras: amor e provocação. Provocar quem se ensina para pensar por sua conta.
Com autenticidade. Num ato, que me atrevo a dizer, de amor fati a que se refere o eterno retorno de Nietzsche, que requer
uma aceitação serena do pathos que é
a vontade de poder, ou seja, a lei originária da própria essência de toda a
realidade na economia do sistema existencial.
Apesar
do silêncio de Paul Ricoeur relativamente à reflexão sobre a prática criativa no
texto literário, o centro da preocupação na sua obra, segundo o próprio, é o
fenómeno da criatividade.
Apesar
das aparências, o meu único problema desde que dei início às minhas reflexões
tem sido a criatividade. Considerei-a do ponto de vista da psicologia
individual nos meus primeiros trabalhos sobre a vontade, e depois, ao nível
cultural, com o estudo dos simbolismos. (RICOEUR, 1986:52)
Edward
de Bono, em Serious Creativity, explica
que a nossa mente se organiza por sequências de padrões e não por pensamentos
criativos. “Unfortunately,
natural creativity is not very powerful. Creativity is an
unnatural process[…]” (DE BONO, 1995:13). Afirma este escritor e psicólogo da
Universidade de Oxford que a criatividade, que constitui modificações na perceção
e nos conceitos, é um fenómeno que acontece ao invés do processo natural da
mente humana de seguir padrões. “What
I have written here may seem theoretical, but it is a necessary base for the
understanding of creativity (changes in perceptions and concepts)” Segundo ele,
a primeira dificuldade para o ato criativo é conseguir tempo e espaço para o
pensamento criativo. Por isso, há quem pense que a
criatividade é apenas para mentes especiais em momentos únicos e, de forma particular,
em sessões de brain storming. Mas a
lógica da perceção exige a capacidade de pensar criativamente e, deste modo,
qualquer um ao desenvolver pensamentos próprios pode e deve desenvolver esta
capacidade.
Há
vinte seis anos atrás, De Bono já tinha escrito um livro intitulado The Mechanism of Mind (1969) no qual descreveu
como as redes nervosas do cérebro permitem que as informações recebidas se
organizem em sequências de padrões.
Mais
recentemente no seu Serious Creativity,
De Bono demonstra que a criatividade não é um processo natural e que requer
confiança e prática. O truque é pensar devagar, com tempo. E a nossa
experiência é o mote para a criação.
With judgment, we look at an idea and compare it to
our experience. If the idea does not fit our experience, we reject it. With
movement, we use the idea for its movement value to go forward to a new idea. (DE
BONO, 1995:17).
A
prática da reflexão sobre o ato criativo leva o escritor catalão Carlos Ruiz
Zafón a pôr na boca das suas personagens afirmações pragmáticas sobre a sua
própria experiência do processo criativo: “A inspiração surge quando colamos os
cotovelos à mesa e o cu à cadeira e começamos a suar. Escolhe um assunto, uma
ideia, e espreme o cérebro até te doer. A isso chama-se inspiração.” (ZAFÓN,
2008:254)
Também
Eça ironizava a escrita do outro quando alguém se sentava a uma mesa e não conseguia
ter ideias. Como se a mente fosse um limão e, por vezes, não vertesse um pingo
de suco. O que reforça a opinião recorrente e consensual da ideia de que a
prática da escrita estimula a criatividade literária, enriquecida pelas
vivências e experiências do próprio. O que não explica suficientemente o fenómeno
repentino do ato criativo. De tal modo que é possível encontrar visões em
correntes da Psicologia moderna que admitem que a criatividade humana, que é
considerada espontânea, pode sofrer processos de cristalização ou estagnação
com o crescimento humano e experiências sociais até à idade adulta.
Inúmeras
vezes, a génese do trabalho do artista é precisamente a tentativa de compreensão
do fenómeno da inspiração criativa. Richard Zenith, na abertura do prólogo na
sua edição do Livro do Desassossego,
discorre sobre este fenómeno:
A
inspiração chega de formas imprevisíveis. Uma imagem entrevista, uma frase
entreouvida, um cheiro que desperta uma lembrança, uma conversação, uma notícia
no jornal, uma repentina ideia surgida na cabeça, coisas tão simples podem dar
origem a um poema, um quadro, uma sinfonia, ou até a um complexo sistema
filosófico.
A
nossa criatividade revolve os desertos de sentido e liberta o Homem da tirania
dos factos. E com novos exercícios da consciência, visualizando o sentido da palavra,
extrapola a simbologia do seu grafismo ou os sentimentos na imagem por exemplo,
em vez de ver apenas um grafismo no papel; nota o som articulado em vez de apenas
ruído, e chega a sentir a música, que o ouvido desfruta.
E a memória
participa no ato criativo ao mobilizar situações que comprovam ou invalidam as
experiências individuais.
A criatividade
permite à consciência atingir um patamar superior à coordenação das atividades
fisiológicas.
E
a expressão poética é o tecido simbólico por excelência que desenha o mapa da mente
humana.
Através
das formas de arte, diz o psicólogo
William James, é possível encontrar as
respostas emocionais envolvidas na
perceção humana do mundo.
In listening to poetry, drama, or heroic narrative we
are often surprised at the cutaneous shiver which like a sudden wave flows over
us, and at the heart-swelling and the lachrymal effusion that unexpectedly
catch us at intervals. In listening to music the same is even more strikingly
true. (JAMES,
1950: 457)
As
formas de arte, como a literatura,
dão ao Homem um acesso único à multiplicidade subtil de sentimentos e
à capacidade de compreendê-las. Apesar das diferenças individuais em termos de resposta emocional aos eventos artísticos, cada um deve ser capaz
de compreender as emoções dos outros, através da sua própria experiência de contacto com a arte na sua
mente e no seu corpo.
Sobre
o poema «Autopsicografia» de Fernando Pessoa, António José Saraiva afirmou:
“Este poema está construído na terceira pessoa como a lei de Newton, ou
qualquer outro enunciado científico, para significar que é a inteligência, como
um ser autónomo, que explica o processo de criação poética.” A teoria do
fingimento poético foi elaborada na Arte
Poética de Horácio a partir do verbo «fingir» e Fernando Pessoa, por via da
introspeção, verificou o processo em si próprio. Constitui a distância
necessária para qualquer «eu» se olhar e se ver.
A
autorreferencialidade é um dos elementos recorrentes do discurso autobiográfico
reflexivo que implica um distanciamento crítico do autor. No livro Conversas de Mário Ventura, José
Saramago confidencia a sua experiência do ato de escrita ao seu amigo:
O trabalho de torturado, digamos,
de espremer a frase, virá-la, emendá-la, cobrir a página de emendas, eu não
tenho. De facto eu não sou esse, eu não sou o chamado torturado da forma. Não
sou aquele que, tendo escrito, escreve, reescreve e torna a escrever, emenda e
sucessivamente vai emendando, mas também não sou esse fenómeno que mete o papel
à máquina e vai tudo por aí fora. Pode acontecer que em certos momentos, porque
estou ligado ao assunto, ou porque aqueci, entro numa espécie – não quero
chamar-lhe estado segundo, eu não saberia também definir o que está antes do
segundo -, mas entro numa espécie de excitação, uma espécie de compulsividade em
que verifico que me podem sair duas ou três páginas que têm muito que ver com
esse jacto.
Outros
autores têm procurado entender e explicar a criatividade. António Lobo Antunes
publicou trabalhos sobre D. Duarte (o Leal
Conselheiro), Bocage, Antero de Quental, Ângelo de Lima e Lewis Carrol, em
revistas da sua especialidade profissional, a Psiquiatria, numa tentativa de
compreensão psicológica das raízes da criação artística. Na sua longa carreira
literária, o ato criativo pode ser entendido como uma celebração da existência
pela consciência da vida elevada, sobretudo face à dor e à finitude humana.
Como nos Sôbolos Rios Que Vão.
Até
diferentes estágios têm sido delineados na descrição do processo criativo,
respetivamente ligados à perceção, teorização, visão (insight), concretização…
No
âmbito do meu propósito de recolher testemunhos presenciais sobre este fenómeno
da criatividade literária, no dia 12 de junho de 2013, tive o privilégio de entrevistar,
na sua casa na rua Tomás Ribeiro, o conceituado Professor e escritor Urbano
Tavares Rodrigues (gravação áudio que incluí em anexo). Segundo a longa
experiência de vida de escritor, este afirma que faz todo sentido falar de
inspiração, da qual boa parte do ato criativo resulta, aliada à vontade de
criar e ao trabalho de execução, do ato em si. O mesmo é dizer que a inspiração
é despertada dentro do eu, ora espontaneamente, ora por autoindução, muitas
vezes a partir de motivos externos ao seu autor. Nesta fase da sua existência
vê-se frequentemente confrontado com o limite da vida que o inspirou a escrever
um dos seus mais recentes livros A Imensa
Boca dessa Angústia. É um livro cujo discurso autobiográfico testemunha o
sofrimento físico causado pelos espasmos de angústia, sufocações, dores no
peito de origem cardiovascular. É um testemunho nietzschiano, a avaliar por
palavras do próprio filósofo: “Sientes que debe llegar la hora de la despedida […].
Pero no olvidas que lo perecedero
entona sin cesar su canción y que al oír la primera estrofa casi se muere de
nostalgia ante la idea de que todo pudiera pasar para siempre.” (NIETZSCHE,
1932:13)
Urbano
questionado sobre o que é a consciência humana, respondeu que é o conhecimento
que o homem tem de si próprio na sua relação com o mundo e do conceito culturalmente
inevitável de Deus, embora se tenha mantido desvinculado de quaisquer confissões
religiosas. Contudo, da mãe ganhou uma cultura religiosa que chegou a praticar
em criança quando frequentou a catequese católica. Considerava-se agnóstico, mas
com uma relação afetiva especial com a figura de Jesus, porque O via como um
homem generoso, que sabia acarinhar uma prostituta. Urbano, firme nas suas
convicções comunistas, respeitava os credos religiosos de qualquer pessoa.
Acreditava, como homem de esquerda, nos princípios do marxismo e na justiça
social.
Para
Octávio Paz, a literatura é capaz de retratar as mudanças e “as prepara e
profetiza… encarrega-se de representar em muitos casos nossos desejos e
paixões.” (PAZ, 1994:123).
A
criatividade é assunto de reflexão de alguns cientistas e escritores como
também Vygotsky, Dostoievski, António Damásio, Leo Szilard e Jonas Salk. Na sua
obra Criação e imaginação, Vygotsky
afirma que é a atividade criadora que faz o homem ser alguém voltado para a
construção do futuro, com capacidade para modificar o seu presente.
“A arte mente porque é social. E há só duas
grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que
se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda.” (B.SOARES,
2008)
O
cientista criador tem muito em comum com o artista e o poeta. O pensamento
lógico e a capacidade analítica são atributos necessários a um cientista, mas
estão longe de ser suficientes para o trabalho criativo. Aqueles palpites na
ciência que conduziram a grandes avanços tecnológicos não foram logicamente
derivados de conhecimento preexistente: os processos criativos em que se baseia
o progresso da ciência atuam no nível do subconsciente.
Por
sua vez, Jonas Salk defendia que a ideia de criatividade assenta numa ”fusão da
intuição e da razão”.
E
Damásio explicita o apoio a afirmações feitas pelo físico nuclear húngaro Leó
Szilárd e pelo médico Jonas Salk.
Um
exercício crítico interessante é aquele sobre a complexidade do sentido de
autoria, conferindo à obra um estatuto não de criação artística, mas de
simulacro criativo da realidade. O objetivo crítico deste tipo de momento
discursivo prende-se com o paradoxo de reflexividade introduzido por Nietzsche
e trabalhado por artistas pós-modernistas de que não há originalidade, nem
certezas, mas apenas o simulacro revelado textualmente.
Dir-se-ia, na verdade, conforme a
palavra de Zaratustra, que as coisas vêm por si até nós, desejosas de
converter-se em símbolos […]. Eis a minha experiência de inspiração; e não duvido
de que se teria de recuar milhares de anos para encontrar alguém com o direito
de dizer: «é também a minha». (NIETZSCHE, 1997:104)
A
inspiração nietzschiana chega pela verdade da existência contida na palavra.
Uma inspiração sem proprietários.
A
atenção depositada sobre esta temática neste trabalho incidirá sobre um corpus ibérico de dois testemunhos de
dois prosadores literários, que foram “almas atentas” do ato criativo.
José
Luis Sampedro, em Escribir es Vivir, dá
a conhecer ao leitor um livro coletivo com testemunhos pessoais sobre o ato
criativo, em que o próprio foi colaborador: Escritores
ante el espejo.
A literatura é, mais uma vez, o
laboratório do testemunho autoral e pretende dar pistas à ciência que pouco
sabe sobre a forma como o cérebro reage às obras de arte. Alguns psicólogos
tentam descobrir leis estéticas, mas os resultados ainda são dececionantes. Se
um dia a estética experimental produzir informações úteis e concludentes sobre,
por exemplo, porque uma pessoa gosta de fado e outra não, tanto melhor. Até
agora, ainda pouco se adiantou.
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