Era uma vez um sapato de cristal que andava à procura da sua futura princesa.
Ele era muito cavalheiro e paciente. Deixou-se calçar por muitos pezinhos de meninas: grandes, pequenos, gordinhos, delgadinhos, com joanetes, pé de atleta, pele seca, unhas pintadas, unhas de gel, perfumados, mal cheirosos...uma enorme variedade.
Mas não havia meio de encontrar o pé da sua vida.
Um dia, viu uma menina muito bonita a dançar, descalça, ao pé de sua casa. Morena, rosto gracioso, cabelo luzidio escuro ondulado, muito elegante, solta e divertida.
- Olá menina. - perguntou o sapato de cristal. - Como te chamas?
A donzela olhou-o, sorridente, sem receio. Nem questionou o facto de ser um sapato, ainda que tão brilhante, a falar consigo.
- Me chamo Gabriela.- respondeu.
- Cheiras tão bem!
- Cheiro a cravo e a canela. Cheiro sempre a cravo e a canela.
- És uma menina tão simples e tão bela. Gostava que experimentasses calçar-me, por favor.
- Senhô, eu não gosto di sapato. Mi perdoa, tá? A moça qui ali vai é pobrizinha. Deve querer...
O sapato de cristal olhou em volta. Viu ao longe uma mocinha de cabelo de ouro entrançado, uma tampa nas mãos de prata, cinta de fina escarlate e uma saia de pregas. Tinha umas mãos e os pés tão brancos e singelos que lembravam a candura da neve.
O pobre coração do sapatinho bateu veloz. Sapato que não sente não é sapato de boa linhagem. O que se estaria a passar no interior da sua cristal matéria?
Agradeceu à menina Gabriela, com um gesto de profunda gratidão, e foi aos saltinhos até à fonte de água abundante onde se encontrava Lianor, descalça, a encher a sua bilha em barro com água da fonte.
A rapariga cantarolava. Havia uma leve tristeza no seu rosto de brandura. Nem deu pela chegada do distinto sapato. Os seus pés tinham uma pele sedosa, apesar das caminhadas diárias que faziam supor por aqueles campos verdes e agrestes.
- Senhorita Lianor. - chamou.
A rapariguita sobressaltou-se.
- Desculpe, aqui atrás. Não faço mal. Eu sou um sapato solitário à procura do pé da sua vida. - e nisto tombou de comoção.
A moça olhou-o demoradamente, compadeceu-se e acarinhou-o:
- Querido sapatinho. És lindo de morrer! Farás qualquer pé de menina feliz. Pareces muito eficiente e confortável, mas eu sou uma simples moça do campo que ama tudo o que é genuíno. Luís de Camões, o meu poeta, já me ofereceu dois lindos pares de sandálias de couro, que gosto muito. Ainda não os calcei porque gosto de ser livre. O pé da tua vida é sobrehumano porque tu és de cristal. Nasceste somente para uma patinha especial de gata.
- De uma gata? - indignou-se.
- Quer dizer, não de uma gata qualquer: da Gata Borralheira, que é um ser humano excecional criado pelo imaginário do seu autor.
- Quer dizer que ela não existe?
- Claro que existe! Se tu existes, ela estará aí algures à espera que tu a encontres. Não desanimes. Boa sorte, simpático sapato. E não esperes pelo natal e pela história da chaminé, porque senão é uma enorme confusão.
E o sapatinho, elegante e paciente, despediu-se com uma vénia e continuou a demanda do seu amor platónico ao pé à sua medida.
Estamos certos que um dia o encontrará.
O amor do mundo tornou-o um pouco mais real, pela sua real e romântica fantasia sapateiresca.
Rosa Maria Duarte
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