Olá gente bonita. Eu sou mal-cheiroso. Já não sei há quanto tempo não tomo banho. Falo à toa. Ando sempre a esmolar. Tenho mau aspeto e ainda por cima não gosto de perder o meu lugar no vão de escada onde me costumo encostar com um papelão.
Eu sei que têm (quase) todas as razões para não gostarem de mim. Mas, se calhar, foi por isso que vim parar à mendicidade. Se calhar porque perdi o amor por mim próprio. Já nem me lembro. Para mim isso foi já há muito tempo.
Eu acho que ainda não sou velho. Não sei que idade tenho, mas acho que não devo ter ainda 50 anos. Mas sou um excluído sem idade.
Tenho nome. Chamam-me Miguel e vivo num recanto perto da praça da Liberdade, em Almada. Ando sujo, mas sou português. Sou magro, como quase todos os mendigos. Acho que sou esquizofrénico porque falo e grito com gente que não está presente. Vivo zangado com a vida. Não admira!
Há pessoas que se compadecem de mim. Algumas até me tentam ajudar, mas sei se sou um caso complicado. Quando chegamos ao estado a que eu cheguei, a recuperação é muito difícil. Embora haja quem pense que é possível. Eu não penso nada, porque o álcool já me domina a quase todas as horas do dia.
Há uma coisa que eu gosto de fazer: gosto de ir ao McDonald's comprar um gelado. Primeiro tenho que pedir uma moeda a um cliente. Tenho que dizer que é para um gelado. Quando chego ao balcão, os funcionários dizem-me para ir lavar as mãos. Estas estão habitualmente tão escuras, principalmente nas pontas dos dedos, que é difícil remover a sujidade. Eu bem esfrego, mas é quase inglório. Volto ao balcão e lá me vendem o gelado. Então saio da loja e vou pela rua a comê-lo. Besunto-me todo.
O meu aspeto é tal que, mesmo as pessoas que me dão uma moedinha, acho que têm nojo de me encarar de frente. Tenho pena, mas não tenho ânimo de mudar, nem sei bem se é verdade o que penso e o que sinto sobre mim.
Há dias, andava nas ruas da cidade um pouco mais limpo e penteado. Algumas pessoas olhavam-me, com meio sorriso. Foi alguém que me ajudou, com certeza.
Nem sei o que me aconteceu na vida. Nem sei se tenho família. Digo que sou português, porque é o que sinto, mas nem tenho a certeza. Sei que incomodo. Sobretudo à noite quando me ponho a discutir com gente invisível. As pessoas do prédio devem ter uma paciência ilimitada para mim.
Mas os sem-abrigo habituam-se a ter o céu como teto. É a única coisa boa da sua condição: a não-clausura em quatro paredes. Com um bocadinho de solidariedade, tenho sobrevivido. Vamos ver até quando...
Não fiquem triste por não gostarem de mim. Eu próprio não sei se gosto. Se passarem por Almada e virem o mendigo, devo ser eu. Deem-me uma moeda para um gelado, por favor.
Adeus. Sem abraços, sem beijinhos, nem proximidade física. Só uma moedinha com disfarçado afeto.
Sem comentários:
Enviar um comentário