O ALGARVE
Estamos a caminho da Senhora do Verde, já no Algarve, embora a calmaria seja
ainda alentejana, abafada e distendida pelas planícies. Uma leve aragem menos desértica
anima o barro pulsante da terra, com um discreto sinal de humidade, num céu desenhado
de pequenas nuvens esponjosas e soltas.
A serra distante prolonga-se quase até à estrada, perseguida pelo olhar
saudoso.
É mais uma viagem em família, sentidas sempre como valiosas, com relatos
de: experiências juvenis, ocasiões musicais e estilos, ocupações radicais,
novas descobertas e troca de afetos. As novidades da escrita detêm-se nas encantadoras
“croniquetas” de António Lobo Antunes e nas de José Luís Peixoto. Deste, lembrei-me
daquela em que se recorda dos seus doze anos quando o pai adormeceu para
sempre, escrita no dia em que o filho fazia doze anos, como ele outrora. O seu
filho é mais afortunado. Se calhar, como confidencia António Lobo Antunes, um
homem só o é verdadeiramente quando é confrontado com a morte do pai. É um
momento que estremece ferozmente a consciência humana sobre a sua existência.
Vergílio Ferreira testemunha na Aparição
o seu “despertar” ao confrontar-se com a sua imagem que o surpreendeu no
espelho, após a morte de seu pai. Quem é este que aqui está?
Eu despedi-me do meu pai no último Dezembro, mas o sentimento de perda
foi-se instalando desde o diagnóstico da sua doença, há sete anos. O desaparecimento
definitivo, talvez compreendido, cavou fundo a profundidade da consciência da
morte. Passa a ser nossa, também. Está conscientemente dentro de nós. Quase somos
impelidos a iniciar gradualmente algumas despedidas, especialmente das
banalidades, ou que para nós nos chegam como banalidades.
O meu pai continua muito presente na cabeça e na casa da minha mãe. Há serenidade
familiar, mas a minha mãe continua a falar-lhe e a falar dele e, quando não
está em casa, a aguardá-lo à janela. Está lúcida. Estável organicamente. Mas
continua a precisar do meu pai para lhe preencher a solidão diária.
Hoje dei um salto à casa da minha mãe para lhe resolver uma questão do
telefone e antes que tocasse à campainha, ela abriu-me a porta. Deu jeito;
levava dois sacos de uvas que apanhei da latada da casa do Alentejo.
- O teu pai agora não está em casa. Estava a ver se o via passar.
Não te vou censurar nem desculpar, mãe. Cada um vive a sua realidade. Nem
todos podem falar abertamente da sua. Tu podes falar-me da tua. Dá saudades ao
pai, mãe.
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