segunda-feira, 16 de julho de 2012

o cante alentejano


   O dia ainda estava claro e soalheiro, numa temperatura amena de um raro fim de dezembro. Guiava o carro com destino a Évora. A meio do percurso, o retrovisor acenou em tons de laranja o círculo fogoso difuso do horizonte que nos seguia e parecia antecipar uma prematura luz cristalina do crepúsculo primaveril. Um braço de oblíqua claridade intensa irradiava do meu cabelo que vislumbrava mais solto. Gostei e partilhei em breve comentário a qualidade da exposição de artes plásticas da natureza que nos brinda com obras primas instantâneas nesta galeria planetária.

   Chegámos com tempo perto do templo de Diana e aí estacionámos a viatura. Em pleno centro histórico, revisitámos as deslumbrantes colunas e capitéis coríntios deste remoto lugar de veneração romano, abrilhantado esteticamente de luz tenuemente azul índigo.

   Um petisco antes do espetáculo era imperioso, quase augusto. Cante e piano no teatro Garcia de Resende. A curiosidade era muita, mas a fome atrapalhava a degustação. Rumámos em direção à familiar praça do Giraldo. Lindíssima, apesar da contenção natalícia. Rapidamente abraçada pelo escuro da tarde esfriada, o comércio nas arcadas sinalizava o movimento de um dia de trabalho a terminar, alegremente aquecido por uma fogueira no centro do largo cujo alimento eram grossos troncos de lenha e outros desperdícios, junto a uma alta árvore artificial iluminada que não permitia esquecer a beleza do natal, revigorada pelo presépio de figuras de tamanho natural ao fundo à entrada da igreja.

   Já na tasca, um senhor baixote envelhecido abordou-nos com um sorriso húmido de solidão mal acolhida. Deixa os clientes em paz, Eugénio. Era o senhor Eugénio, reformado da construção civil que, disse-nos, fazia anos no dia seguinte, os seus 81 anos. Ainda teve tempo de acrescentar que tinha uma mulher que era um espetáculo e duas cadelinhas amorosas. Deixámos-lhe um copo pago, presumi, de três... Mora de fronte; não ficará o vinho a azedar. Não sabe escrever, mas gosta de ler. Só assina, mas lê primeiro. Enquanto ali esteve, procurou dignidade no olhar das palavras, em jeito de alentejano eborense de gema.

   O carinho do sol ausente deu rijeza ao frio quase brumoso. O interior do teatro, não muito amplo, era surpreendentemente gracioso. No topo de assento de abrir havia uma mantinha bem enroladinha de cor rosa. Sentámo-nos na primeira fila do lado direito para o palco. Entretanto mudámos de lugar a pensar no ângulo de bom espectador que acompanha a execução do pianista. A organização quis o público aconchegado. Que quentinhas as mantas, depois que desenrolámos outras a comprová-lo...

   Foi um belo serão!, nas palavras de José Rodrigues dos Santos, um dos responsáveis dos Cantares de Évora, que é nome deste projeto de cantares alentejanos com dois anos e que fez a sua terceira apresentação pública com o canto da “Ladainha à Virgem Negra”, trabalhado também com um inédito acompanhamento pianíssimo. Valeu! A plateia volatilizou com tais sonoridades típica e engenhosamente vocálicas. Com elegância, mestria e sentimento fomos convidados a cantarolar e a aplaudir. Fiz o que pude… Regressámos cheios de encantamento e orgulho cultural.

   Ano de boa polifonia, compadres.



                                                                            Ano Novo, 02 de janeiro de 2012

                                                                                              Rosa Duarte

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