O dia ainda estava
claro e soalheiro, numa temperatura amena de um raro fim de dezembro. Guiava o
carro com destino a Évora. A meio do percurso, o retrovisor acenou em tons de
laranja o círculo fogoso difuso do horizonte que nos seguia e parecia antecipar
uma prematura luz cristalina do crepúsculo primaveril. Um braço de oblíqua
claridade intensa irradiava do meu cabelo que vislumbrava mais solto. Gostei e
partilhei em breve comentário a qualidade da exposição de artes plásticas da natureza
que nos brinda com obras primas instantâneas nesta galeria planetária.
Chegámos com tempo
perto do templo de Diana e aí estacionámos a viatura. Em pleno centro
histórico, revisitámos as deslumbrantes colunas e capitéis coríntios deste
remoto lugar de veneração romano, abrilhantado esteticamente de luz tenuemente
azul índigo.
Um petisco antes do
espetáculo era imperioso, quase augusto. Cante e piano no teatro Garcia de
Resende. A curiosidade era muita, mas a fome atrapalhava a degustação. Rumámos
em direção à familiar praça do Giraldo. Lindíssima, apesar da contenção
natalícia. Rapidamente abraçada pelo escuro da tarde esfriada, o comércio nas
arcadas sinalizava o movimento de um dia de trabalho a terminar, alegremente
aquecido por uma fogueira no centro do largo cujo alimento eram grossos troncos
de lenha e outros desperdícios, junto a uma alta árvore artificial iluminada
que não permitia esquecer a beleza do natal, revigorada pelo presépio de
figuras de tamanho natural ao fundo à entrada da igreja.
Já na tasca, um
senhor baixote envelhecido abordou-nos com um sorriso húmido de solidão mal
acolhida. Deixa os clientes em paz, Eugénio.
Era o senhor Eugénio, reformado da construção civil que, disse-nos, fazia anos
no dia seguinte, os seus 81 anos. Ainda teve tempo de acrescentar que tinha uma
mulher que era um espetáculo e duas cadelinhas amorosas. Deixámos-lhe um copo
pago, presumi, de três... Mora de fronte; não ficará o vinho a azedar. Não sabe
escrever, mas gosta de ler. Só assina, mas lê primeiro. Enquanto ali esteve,
procurou dignidade no olhar das palavras, em jeito de alentejano eborense de
gema.
O carinho do sol
ausente deu rijeza ao frio quase brumoso. O interior do teatro, não muito
amplo, era surpreendentemente gracioso. No topo de assento de abrir havia uma mantinha
bem enroladinha de cor rosa. Sentámo-nos na primeira fila do lado direito para
o palco. Entretanto mudámos de lugar a pensar no ângulo de bom espectador que
acompanha a execução do pianista. A organização quis o público aconchegado. Que
quentinhas as mantas, depois que desenrolámos outras a comprová-lo...
Foi um belo serão!, nas palavras de José Rodrigues dos Santos, um
dos responsáveis dos Cantares de Évora,
que é nome deste projeto de cantares alentejanos com dois anos e que fez a sua
terceira apresentação pública com o canto da “Ladainha à Virgem Negra”, trabalhado
também com um inédito acompanhamento pianíssimo. Valeu! A plateia volatilizou
com tais sonoridades típica e engenhosamente vocálicas. Com elegância, mestria
e sentimento fomos convidados a cantarolar e a aplaudir. Fiz o que pude…
Regressámos cheios de encantamento e orgulho cultural.
Ano de boa polifonia,
compadres.
Ano Novo, 02 de janeiro de 2012
Rosa Duarte
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