O CORPO VÊ O QUE A ALMA ALCANÇA
- Diz-me, mestre, somos todos
almas velhas?
- Seremos almas envelhecidas um
dia instaladas no alpendre do casario à espera de alguém para nos trazer um
calendário mágico que nos indique qual vai ser o momento mais importante da
nossa vida. Ou à espera de uma daquelas bolas de cristal que pretendem ser
autênticas telas vivas do nosso futuro e que adivinham o pensamento quando queremos
sorrir para o gesto do outro e somos avisados do momento provável. Ou ainda daqueles
espelhos brilhantes que dão vida ao nosso reflexo e se convertem no nosso
confidente e conselheiro, velado amigo para as horas suspensas do dia e da
aridez humana.
A maturidade do nosso ser levar-nos-á ao desinteresse pela estéril rotina
e pela vulgaridade da conversa redundante, mas ainda será questionável perante
as fatiotas previsíveis ou os frutos envernizados. O nosso material humano atrai-nos
aos lugares de clausura e aos néctares adulterados. Corremos o risco de não
sabermos envelhecer, curvados sobre um copo de cerveja, a divagar em círculos
numa chávena de café, a fantasiar com amigos no caos de rodopio humano,
sorvendo incompletos cigarros. A nossa alma respira, mas vai mirrando, em
lanhos de tempo ressequidos, desidratados de sonhos naturais, com caudais de
peixes retidos nos rochedos tão próximos dos morros além fronteiras. Crescemos
cegos, de tacto apressado, vendo cada dia um pouco mais para dentro. Os nossos
olhos estão colados pela seiva sacrificada em cada machadada à vida. O esforço
e a vontade devolvem alguns vultos à nossa escuridão. Queremos lamber as nossas
feridas como verdadeiros cachorros. Lamuriosamente. Mas a dor cerra ainda mais
a noite. Tentamos aquietar a fera. Como verdadeiros centauros, trotamos em direção
à grandiosidade acidentada da vida para sentir o cheiro do céu e refrescarmos a
dianteira na água negra da noite.
A pouco e pouco, será o fresco nos devolverá a calma e os nossos olhos
ficarão macios de madrugada e de dom, pelo gradual desvendamento do mundo. Sacudiremos
o dorso de pelo curto e fechado, entreabriremos as pálpebras em movimentos firmes
e expeliremos um frémito de gratidão à grande mãe, serra senhora vestida de
fetos e fragas desenhadas pelo clima seco e agreste, amante de urzes rasteiras,
madressilvas, amoras silvestres debruçadas nas ribanceiras, folhagem e caruma
secas adensadas pelos passos clandestinos dos solitários contemplativos e
românticos.
O nosso corpo vê o que a alma alcança. Um respirar distante irá
suspender o pulsar do nosso coração ao desvendar o ar rasgado pelo sonho da fénix
bravia de olhar sem fim. Com um breve olhar de chispa penetrante, a nossa ave
interna um dia baterá asas e renovar-nos-á.
Alguns tornar-se-ão frágeis árvores com medo de ser, mesmo à mercê da brisa
cálida dos dias de verão, luminosos, de poucas nuvens. Os braços serão ramos
parados à beira rio, com impulsos contidos de abraçar a sinfonia uivante do
entardecer.
Só seremos verdadeiras almas velhas quando estivermos preparados para
sentir a aragem da vida como uma música, que exprimirá a suprema alegria numa linguagem não reconhecida pela mente. Saberemos
então ouvi-la, senti-la e deixá-la voar.
Laranjeiro, 7 de outubro de 2011 Rosa Duarte
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