OLHÓ PASSARINHO
A figura castiça dos fotógrafos de rua e a sua poesia da imobilidade despertavam-me
sempre uma contida curiosidade pelas expressões dos figurantes e pela sua
câmara escura por onde desaparecia e voltava de olhos piscos, a sorrir à criançada
e aos casalinhos. Nessa altura eu era uma petiza franzina que fazia das altas
pernas do meu pai um habitual forte de abrigo. Só então daí lhe enviava um
sorrisito tímido, à distância, depois de confirmar a expressão consentida do meu
protetor. Ainda hoje me lembro de uma foto de família tirada na praça da
Figueira pelo natal no limiar dos anos sessenta, inesquecível pela pose teatral
e o meu rosto minúsculo oculto pelo recorte de um pombo a esvoaçar. Quando lá havia
espaço e ainda era possível, claro está, lançar milho aos pombos…
O meu pai, viajante de profissão, primava por trazer engenhocas inovadoras
de que se enamorava durante as suas estadas no norte de África, nas ilhas
Canárias, na Grã-Bretanha, enfim, de onde o barco da altura aportava. Um dia
trouxe uma Kodak, modelo que me lembrava o Maio/68, de pendurar ao peito, caixa
paralelipédica na vertical, com obturador a meio na sua fachada e visor coberto
no topo do aparelho. O enquadramento dos fotografados era captado baixando a
cabeça para o quadrado mágico. Nós, os mais novos, dávamos cabeçadas uns aos
outros para aí vislumbrar o processo artístico, porque ainda não nos era
autorizado um contacto mais próximo com o progresso…
Tirar uma fotografia era uma espécie de ritual familiar um tanto sacrificial.
Sobretudo tirada pelo meu pai que a queria na perfeição. Não sendo um
daguerreótipo, porque senão seríamos condenados a estátuas uma boa meia hora para
ninguém tremer, juntinhos como num canto alentejano, mesmo assim o tempo de
espera rondava uns longos quinze minutos, que para a canalha era uma eternidade.
Éramos oito. O meu pai centrava, reposicionava-se, mandava pôr alguns de
cócoras, centrava de novo, decidia escolher outro cenário de fundo, repetiam-se
os passos anteriores…no meio de risotas e protestos, alguns exasperavam-se e
afastavam-se ruminando pareceres anti-progresso. Mas quando ele dizia: - Olhó passarinho!, todos sem exceção se
colocavam a jeito, os dissidentes regressavam em flecha com um sorriso de
revista e a película, melhor ou pior, registava a nossa imagem, que só víamos,
dias mais tarde, a preto e branco. Então, lamentávamos o estilo da nossa roupa,
o cabelo meio despenteado, os gestos não previstos, os olhos semicerrados, os
dedos indicador e mindinho esticados por cima de alguma cabeça, a minha mãe com
ar conformado com tanto por fazer…
Por vezes, o momento era tão raro, que o meu pai sugeria a repetição da
operação, que iria agora ser comandada pelo meu irmão mais velho para que o
chefe da família pudesse constar nos anais da história… e os olhos chegavam-se-nos
a humedecer!
As melhoras fotografias de família foram tiradas na serra da Estrela, na
tapada da Ajuda, na Boca do Inferno, nas Azenhas do Mar, em Belém, nas vinhas
dos meus tios perto do Fundão.
Quando constitui a minha própria família, fizemos protocolarmente muitas
reportagens fotográficas aos bebés, nas festas de anos, nas primeiras
comunhões, nos torneios desportivos, nas promessas de escuteiros, mais tarde,
nas viagens de Erasmus…
Nos meus álbuns constam também fotos de muitos colegas, nos bailes de
finalistas, de alunos, em visitas de estudo, muitos dos meus queridos amigos da
Moinho de Maré, nos nossos jantares, dos educadores para a paz, dos alunos de
artes, dos currículos alternativos, de alguns alunos da minha escola atual.
A palestra sobre Fotografia Digital a que assisti há dias foi um convite
ao meu passado. Também aprendi coisas novas ou reaprendi as já arquivadas na
memória. O primeiro computador que gastava uma brutalidade de energia. A codificação
da imagem digital. O sistema binário. Os nossos números originários do hindu,
trazidos pelos árabes. Um bom fotógrafo com olhar de pintor…
Afinal, a fotografia não é um parente pobre da Arte. Porque a sua alma é
única e arrebata com a mesma intensidade que uma tela, uma peça de teatro ou um
fado da Amália. É mesmo um ente querido inevitável de qualquer forma de arte, quer
num poster de um espetáculo ou no princípio do cinema.
Aprendi que o mundo do fotógrafo é também a
íris de uma criança ou a de um fotogénico periquito. - Estão a ver-me naquele olhar?
Sem dúvida, era mesmo o senhor fotógrafo a brilhar no lago imenso de um
olhar pueril, comovido e retraído à espera que o senhor Vasco Ribeiro
cantarolasse: - Olhó passarinho! e
nós olhássemos para a gaiola de plástico com um passarinho, também de plástico,
pendurado no baloiço que, com as aquelas coreografias todas, diligentes, se
agitava e chilreava.
Obrigado, alunos do profissional de Fotografia, profs e CRE da RLG.
Rosa Duarte
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