sábado, 28 de julho de 2012

curvados sobre um copo de cerveja


CURVADOS SOBRE UM COPO DE CERVEJA

    Somos almas velhas sentadas no alpendre do barracão à espera de alguém para nos trazer um calendário mágico que nos indique qual vai ser o próximo momento mais intenso da nossa vida. Ou uma daquelas bolas de cristal que são autênticas telas vivas do nosso futuro e que adivinham o pensamento quando queremos sorrir para o gesto do outro e ficamos avisados do momento provável. Ou ainda daqueles espelhos brilhantes que dão vida ao nosso reflexo e se convertem no nosso confidente e conselheiro, velado amigo para as horas suspensas do dia e da aridez humana.

   A maturidade do nosso ser desprende-se da estéril rotina e da vulgaridade da conversa redundante, mas ainda se mostra questionável quando se detém nas fatiotas previsíveis ou nos frutos envernizados. O nosso material humano atrai-nos aos lugares de clausura e aos néctares adulterados. Somos velhos que não sabemos envelhecer, curvados sobre um copo de cerveja, a divagar em círculos numa chávena de café, a fantasiar com amigos no caos de rodopio humano, sorvendo incompletos cigarros. A nossa alma respira, mas vai mirrando, em lanhos de tempo ressequidos, desidratados de sonhos naturais, caudais de peixes retidos nos rochedos tão próximos dos morros além fronteiras.

   Crescemos cegos, de tacto apressado, vendo cada dia um pouco mais para dentro. Os nossos olhos estão colados pela seiva sacrificada em cada machadada à vida. O esforço e a vontade devolvem alguns vultos à escuridão. Queremos lamber as nossas feridas como verdadeiros cachorros. Lamuriosamente. Mas a dor cerra ainda mais a noite. Tentamos aquietar a fera. Como verdadeiros centauros, trotamos em direção à imensidão acidentada para sentir o cheiro do céu e refrescarmos a dianteira na água negra da noite.

   A pouco e pouco, o fresco devolve-nos a calma e os nossos olhos vão ficando macios de madrugada e de dom, gradual desencantamento mundano. Sacudimos o dorso de pelo curto e fechado, pálpebras num abrir e fechar brusco, expelindo um sonido extasiado de sentidos em saudação à colossal serra, senhora vestida de fetos e fragas desenhadas pelo clima seco e agreste, urzes rasteiras, madressilvas, amoras silvestres debruçadas nas ribanceiras, folhagem e caruma secas adensadas pelos passos clandestinos dos solitários contemplativos e românticos.

   O nosso corpo vê o que a alma alcança. Distante, o arfar chega-nos ao coração suspenso por um céu rasgado pelo sonho da fénix bravia de olhar sem fim. Olha de chispa penetrante e deixa-nos.

   Ficamos árvores com medo de nos entregarmos, até mesmo à brisa cálida dos dias de verão, luminosos, de poucas nuvens. Nossos braços tornam-se ramos parados à beira rio, com impulsos de abraçar a sinfonia uivante do entardecer.

   É então que compreendemos que a vida é como a música, exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão desconhece. É preciso saber ouvi-la, senti-la e deixá-la voar.

                                                                                     Laranjeiro, 7 de outubro de 2011 

                                                                                                     Rosa Duarte   

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