CURVADOS SOBRE UM COPO DE CERVEJA
Somos almas velhas sentadas no alpendre do
barracão à espera de alguém para nos trazer um calendário mágico que nos
indique qual vai ser o próximo momento mais intenso da nossa vida. Ou uma
daquelas bolas de cristal que são autênticas telas vivas do nosso futuro e que adivinham
o pensamento quando queremos sorrir para o gesto do outro e ficamos avisados do
momento provável. Ou ainda daqueles espelhos brilhantes que dão vida ao nosso
reflexo e se convertem no nosso confidente e conselheiro, velado amigo para as
horas suspensas do dia e da aridez humana.
A maturidade do nosso ser desprende-se da estéril rotina e da
vulgaridade da conversa redundante, mas ainda se mostra questionável quando se detém
nas fatiotas previsíveis ou nos frutos envernizados. O nosso material humano atrai-nos
aos lugares de clausura e aos néctares adulterados. Somos velhos que não
sabemos envelhecer, curvados sobre um copo de cerveja, a divagar em círculos
numa chávena de café, a fantasiar com amigos no caos de rodopio humano, sorvendo
incompletos cigarros. A nossa alma respira, mas vai mirrando, em lanhos de
tempo ressequidos, desidratados de sonhos naturais, caudais de peixes retidos
nos rochedos tão próximos dos morros além fronteiras.
Crescemos cegos, de tacto apressado, vendo cada dia um pouco mais para
dentro. Os nossos olhos estão colados pela seiva sacrificada em cada machadada
à vida. O esforço e a vontade devolvem alguns vultos à escuridão. Queremos lamber
as nossas feridas como verdadeiros cachorros. Lamuriosamente. Mas a dor cerra
ainda mais a noite. Tentamos aquietar a fera. Como verdadeiros centauros, trotamos
em direção à imensidão acidentada para sentir o cheiro do céu e refrescarmos a
dianteira na água negra da noite.
A pouco e pouco, o fresco devolve-nos a calma e os nossos olhos vão
ficando macios de madrugada e de dom, gradual desencantamento mundano. Sacudimos
o dorso de pelo curto e fechado, pálpebras num abrir e fechar brusco, expelindo
um sonido extasiado de sentidos em
saudação à colossal serra, senhora vestida de fetos e fragas desenhadas pelo
clima seco e agreste, urzes rasteiras, madressilvas, amoras silvestres
debruçadas nas ribanceiras, folhagem e caruma secas adensadas pelos passos
clandestinos dos solitários contemplativos e românticos.
O nosso corpo vê o que a alma alcança. Distante, o arfar chega-nos ao
coração suspenso por um céu rasgado pelo sonho da fénix bravia de olhar sem
fim. Olha de chispa penetrante e deixa-nos.
Ficamos árvores com medo de nos entregarmos, até mesmo à brisa cálida
dos dias de verão, luminosos, de poucas nuvens. Nossos braços tornam-se ramos
parados à beira rio, com impulsos de abraçar a sinfonia uivante do entardecer.
É então que compreendemos que a vida é como a música, exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão desconhece.
É preciso saber ouvi-la, senti-la e deixá-la voar.
Laranjeiro, 7 de outubro de 2011
Rosa
Duarte
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