HISTÓRIA DE UM COPO
- Sinto-me todo partido! – Lamentou-se um copo esguio tombado na berma
da calçada de uma artéria da baixa pombalina. Como era possível ser um modesto
copo e estar ali a falar consigo próprio?!
- Esta agora?! Eh, acabo de ouvir um estalido; devem ser as memórias que
conservo de outras histórias assombrosas, mas esta é mesmo insólita! Sou um
copo rachado falante (antes fosse um grilo falante...). Será que fui vítima
acidental de algum feitiço burlesco?
- Não me parece, senhor Copo – acudiu uma firme garrafa, mais à frente,
no cimo de uma caixa exterior de electricidade. Era uma garrafa de feição
normalíssima, 33 cl de cerveja Sagres, comodamente encostada a uma parede
rugosa de um prédio de dois andares, cor alvacenta um tanto escurecida pela
poluição agressiva daqueles lados. – Lá porque o senhor é um copo não perde o
direito à vida, não acha? Tudo é vida, meu caro senhor.
De olhar esforçadamente curioso, arrastou a voz e concordou:
-Pois! Mas confesso que me sinto estonteado, enjoado até.
Hesitante, a senhora garrafa mostrou-se um pouco incomodada.
- Minha rica senhora, não pense que estou a fazer insinuações a respeito
do seu odor intenso. Mesmo confuso, já percebi que provavelmente somos
cúmplices de algum desacato pela calada da noite. Ou estou enganado?
- Receio que tenha razão. Ontem, uns rapazinhos adolescentes rondaram
por aí, de cigarro na mão, a falar de negócios com carros... uma coisa um tanto
duvidosa. Nós os dois, mais uns quantos que ali estão estilhaçados, fomos
trazidos de um bar daqui das redondezas, que por sinal é irrespirável! Logo que
me trouxeram cá para fora, fiquei hilariante. Até porque, apesar de ser uma
rude garrafa de cerveja, comovo-me facilmente quando posso olhar o brilho das
estrelas, observar as manchinhas no rosto da lua, experimentar o cheiro das
noites quentes de Agosto agraciadas pelo amor dos casalinhos do crepúsculo que
se alimentam de beijos e de montras iluminadas...
- Pareces uma garrafa toda fixe...desculpe, uma senhora toda inclinada à
emoção e à poesia, Dona Sagres.
- Pode tratar-me por tu, se quiser. Eu nem sei que idade tenho. Quando
nasci nas mãos do operário que me fez, não tive consciência naturalmente disso.
Tenho pena! Acho que nem os humanos têm esse dom. Era um belo momento de
deslumbramento, presenciar o primeiro alento na vida do ser que somos, tipo
génesis individual. Mas acho que tem razão, jovem. Acho que tenho alma de
poeta. Aliás, muitos humanos quando bebem do meu líquido ficam mais
espirituosos.
- Ai sim? Bem, então somos uma boa dupla, pois já servimos para alguma
coisa... de útil, claro. Não somos meros causadores de desordem e excessos.
Damos a nossa própria vida por momentos de alguma ilusória euforia... aos mais
incautos, talvez... Acha que vão reciclar-nos?
- Acho que sim. Vão fundir-nos, aos dois, e a outros vidros da nossa
espécie.
- Querida amiga, é um final de vida curta um pouco triste, mas bué
romântico, não lhe parece? Acima de tudo, fraterno.
- Estou devera de acordo consigo, senhor Copo. Bom, a carrinha da Câmara
está a chegar... Hasta la vista, compañero.
E olharam-se, enternecidos.
Olívia Campos
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