SOU BURRA. NÃO VALE A PENA ESTUDAR
Um testemunho curioso. Contado mais ou menos assim:
Hoje arremessei a
almofada contra o despertador.
É assim todos os dias. Desligo o despertador e continuo a dormir. Não
vale a pena contrariar-me. Mesmo que o fizesse, chegava mais uma vez atrasada à
escola e seria novamente repreendida pelo professor que se calhar já não me pode
ver à frente, que deixou de me tirar as faltas e abana a cabeça sempre que
alego, em privado, a real razão do meu atraso: sou burra e, por isso, não vale
a pena vir à escola. Na intimidade, aprendi a admiti-lo. Sou só mais uma nódoa a
juntar à grande amostra no relatório das estatísticas nacionais. Para ser
sincera, até me dá um certo gozo ouvir o lamento de quem se aflige com a iliteracia
em Portugal, regularmente anunciada pela OCDE…
Como cheguei ao décimo ano? Como muitos, à rasquinha, de empurrão, com
muita “água benta”, como me dizem todos os anos. Até ao nono ano “todos os
santos ajudam”. A partir daqui é que é uma cena marada. Os meus velhotes não se
conformam: Olha que não arranjas um emprego de jeito. Aproveita agora que te
ajudamos. Vais ver que consegues.
Os meus cotas são gajos fixes, chatos mas fixes; eu é que não tenho
miolos para isto. Sou burra. Sou tipo daa. Aliás, os outros não mo dizem
diretamente, mas estão sempre a insinuar ou a ironizar. Ó inteligência!. Quando
me explicam alguma coisa, a correr e atabalhoadamente, como de costume, perguntam-me:
percebeste? ou queres que te faça um desenho? e olham-me como se só um milagre me
salvasse. A malta da minha turma podia ser fixe, mas com a minha burrice, que é
muita, eles ascendem a um aspeto bestiário: cada qual luta pela sua paparoca,
pelo seu lugar ao sol, pelos seus serviçais. E os “disponíveis” que se lixem. Quem
não pertence ao clã, é um tadinho. A quem iriam fazer inveja? Somos máquinas em
ponto pequeno, autênticas máquinas, não de videogames, mas daquelas político-partidárias…
tipo assembleia na Grécia que se afirmam à porrada. Quem há-de governar? Quem
são os outlaws (já agora de quais leis?)? Nós, os pseudofracos, somos os sombras,
pelo menos julgam eles, convidados a bater à porta do vizinho. Isco para potenciais
exibições de prepotência (onde é que eu já li isto?)
A mim sobra-me uma coleguinha
que me ajuda, pobrezita, mas para ela não sou tarefa fácil, porque é fraquita e
sente-se mordiscada por se compadecer de mim. É preciso traquejo. Nada de
generosidades gratuitas! Deixa-a que ela é assim mesmo: uma burra. Não adianta
explicar-lhe nada. Às tantas, já me ocorreu que serão eles que me querem fazer
de burra. Ou serei mesmo daa? Devia pertencer a uma confraria. Contratar
guarda-costas. Querem convencer-me de que sou burra e acho que o têm conseguido.
Já pensei seriamente em deixar os estudos. Ir distribuir pizzas. Fazer pastéis
de nata. Estamos no fim do ano. Vou pensar na minha vida. Estou no bom caminho?
Então, já aprendi qualquer coisa. E vou aguardar pelas minhas lindas notas. Parece
que continuo com um problema de autoestima, acho. Pois claro, só alguns é que são bons e outros, como eu,
somos uns losers. Graxas e jogos de
influências. Teorias de conspiração, diria eu, se me viessem contar. Tenho uma
pintinha a mais no canto superior esquerdo do olho. Quem diz uma pintinha, diz
um pelo ou uma mancha num dente. O que vale é que nunca estaremos sós. Não
obstante divididos. Como uma linha que separa a inteligência iluminada da
burrice quadrada. Ou outra que separa a consciência ética das exibições cegas
do ego. Ainda há uns profs que me ensinam estes palavrões, no bom sentido,
claro. Eu gosto é quando fazem expressõezinhas para o lado, a disfarçar, ou sinaizinhos
de nuca virada, com uma invejável perspicácia e audácia. Somos todos uns
heróis, do êxito abortado.
Hoje fui à escola. Nem tive falta à primeira hora. Também está quase no
fim. E em abono da verdade, tem-me valido uma prof. que me tem convencido a ler.
Diz ela que Florbela Espanca recomendava a leitura para males do espírito. Teoria
pela autora comprovada… Hoje estivemos a ler um pouco do bebé Fernando Pessoa a
Ofélia, pois faz hoje muitos anos. Está eternamente vivo. E há dias a setôra falou-me
de um livro chamado O Segredo, que ao princípio me parecia um bocado pro treta,
mas depois comecei a curtir e a perceber qualquer coisa. Aquela cena de um gajo
que, no emprego, era chateado por uns cromos convencidos, ficou-me na ideia. Ele
depois começou a adotar uma outra atitude mental, mais crente nas suas capacidades,
a não deixar que lhe injetassem ideias na mente. Segundo comentaram, tornou-se
um ser humano confiante e bom profissional. Isto de observar os outros, passear
o olhar pelas suas expressões quase sem os ouvir, como num ecrã sem som, só apreciando
o seu (des)propósito, resulta. Sim, conhecê-los, embora a pouco e pouco. Porque
também cansa compreender. Talvez precise de sabedoria e paciência (em doses reforçadas).
Mais uma palavra que estou disposta a aprender: sabedoria. Paciência, essa, já a
conhecia de vista. Sentidos que extravasam estas palavras pronunciadas e as
dimensões físicas em qualquer sala, escola ou membro de espécie inteligente.
Talvez até esta conversa seja estudar. E isto de estudar não seja tão complicado.
Fazer dos outros o objeto do meu estudo. Eh,eh. Daria uma boa psicóloga? Fazer
testes, em vez de ser testada, para variar. Desvendar o tal segredo que sempre
esteve à vista, mas vedado aos cegos, como eu. Não àqueles que querem aprender
e ensinar, sem castigar. Esses, conheço um ou outro, são os meus verdadeiros
heróis. Bom, pus-me p’raqui a opinar como se não fosse um bocado daa. Desculpe.
Laranjeiro,
13 de junho de 2012
Rosa Duarte
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