sábado, 28 de julho de 2012

o conto «a casa da praia»


A CASA DA PRAIA



   Tudo era de madeira. As cadeiras abraçavam as mesas de tampo rectangular castanho, manchado pela claridade que atravessava os vidros das janelas, igualmente castanhas, simples e divididas ao meio, unidas apenas por fechos metálicos. O sol, ora coloria as paredes ripadas com verniz, ora pincelava de sombra o ambiente, quando uma nuvem passava mais demorada no céu. As duas portas para o lado do mar, uma aberta, a outra fechada, ligavam aquele espaço interior familiar à animação sonora das ondas espumosas e tão próximas do paredão. A força do sal marinho perfumava as gotículas que beiravam o ar respirado pelos amantes das manhãs costeiras e alcançava o interior da casa desinibidamente pela sua habitual abertura autorizada.

   Ao fundo, uma figura feminina estava sentada na mesa ao canto a contemplar o movimento das águas, através da transparência embaciada das vidraças pela maresia intensa daquela costa. O silêncio das palavras sufocava a expressão de um rosto deslumbrado. Olhava e escrevia. Era Maio. Ela gostava de escrever em Maio. Também de descrever Maio. Ou de pensar naquele mês para os seus escritos. Há um ano atrás, antes de comprar o portátil, escrevia num bloco pautado. Depois o objecto electrónico impôs-se e fez-se seu amigo. Trazia-o muito consigo, mesmo quando não o ligava. Teclava como se estivesse a conversar ou a falar a um telemóvel. Depois parava para observar. Ouvia algumas vozes sem rosto que se misturavam com o ruído silencioso das teclas, baptizadas com letras, que continuavam a trabalhar na sua mente. Erguia o rosto sereno para as várias pinturas a óleo originais que decoravam aquele café de praia. E tentava imaginar o cheiro da tinta fresca das cores mais vivas que representavam o fluxo espontâneo da natureza circundante. Volteava a cabeça pela amplitude da sala, a demorar o olhar nos objectos marinhos expostos espalhados pelos recantos do espaço acessível. E, como se o decidisse reflectidamente, tornava ao teclado, mexia nas teclas amigavelmente, tão ao de leve que parecia fazer daqueles desabafos os seus mais profundos segredos.

   O mar, esse, continuava agradavelmente defronte, a exibir a sua natural expressão incontida de energia, tão generosa quão indomável. E a visitante vislumbrou naquele pedaço marinho, emoldurado pela janela, um lindo cavalo alado que se formara sem freio, com recortadas crinas espumosas, a galgar a própria ondulação encapelada, soltando vibrantes relinchos decrescentes que se espraiavam junto à areia beijada pela frescura do mar. E sentiu a sensualidade daquela imagem seguida de impulsos discretos de um clímax emocional ao reparar no encontro grandioso do azul do mar com o castanho bronzeado da areia húmida, rendida à virilidade que a sobrepunha.

   Dali se aproximaram um grupo de surfistas, que pareciam avaliar o estado do mar. De prancha debaixo do braço, conferenciavam. O vigor marinho estimulou três dos mais afoitos que se prontificaram a descer a inclinação pedregosa do pontão e a receber os primeiros açoites de uma vaga pouco rendida a banhistas. À distância, a visitante observava, expectante. Os outros surfistas e alguns veraneantes largavam uma ou outra frase curta, de reserva. Mas as águas depressa se deleitaram com a entrega dos rapazes às suas ondas que se erguiam, firmes, até à beira da praia, aguentando no seu dorso a radicalidade talentosa da rapaziada. As suas proezas estavam então a deliciar os espectadores. A visitante, do seu canto, via em cada jovem um dos seus alunos, recebendo do mar as lições de aventura, poesia e gratidão que nem sempre conseguia explicar-lhes. E sorria agradecida à Natureza, sua colega mais graduada na escola da Vida. E escreveu sobre o que sentiu no interior do seu peito, àquela hora, naquele dia, quando extravasou de dentro de si um amor tão grande por tudo o que estava à sua volta como aquela casa de madeira que se tornou de repente tão pequena e diluída no interior do seu novo ser expandido e receptáculo, maravilhado, de todas as bênçãos pulsantes por mais um dia.  



                                                                  Rosa Duarte, Maio/2006


Sem comentários:

Enviar um comentário