quinta-feira, 26 de julho de 2012

só a arte me amparou


SÓ A ARTE ME AMPAROU!


   Afinal, perguntas-me, como conviver com os diferendos sociais e culturais no mesmo espaço de crescimento? Pretendo saber como melhorar uma relação desigual entre pessoas que se afirmam pela força da ignorância ou pela angústia da frustração. Pausa. Arregalo o sobrolho em expectativa. Consulto-me. Revejo no espelho quotidiano as valências individuais em potencial comunicação e as evitáveis consequências da desistência. Pois é…, vamo-nos dedicando a nós próprios. Devemo-lo. E de preferência numa sobrevivência não ruidosa. O certo é que perpetuamos as experiências dos nossos primeiros educadores. E o medo do desconhecido que há em nós. Inovamos pouco. Um dia partiremos à procura do anonimato. Viajaremos à procura daquilo que, a seu tempo, todos descobriremos que é o que de mais discreto saber há: o silêncio. As pausas nas pautas do acontecer. O amor no esforço de aprender. Do conhecer. O berço preparado para o som da criação. Ainda antes do verbo primordial. Ainda ovo lexical. O espreitar do dealbar sinfónico. A infância pressentida. Cada vida em impacientes contrações. É que nos sonhamos na continuação do outro. Na imagem e na semelhança. À espera de fazermos a demanda do testemunho do não alheio. Como um poema em bebedeiras de azul. Seremos uma espécie de “letradólatras” em processo, não disciplinar, mas de desintoxicação para integrar uma atmosfera mais respirável. Onde tudo seja pensável. Conversável. Recriável. Ouvir-se-á então o embalar dos berços de palavras ainda viscosas. Como que expurgando-se para, de seguida, se perfumarem. Soltas de placenta e esvaimentos. Ensaiarão e esvoaçarão em livros como diários de parto. Prenhes de sofrimento e confidências. Como serão os de muitos, esquecidos. Como também serão os nossos? Decerto como o de Anne Frank, muito diarístico, aberto sob o seu conceito mais verdadeiro e amordaçado de liberdade, mais tarde reinterpretado pelo seu pai, após a guerra em rarefeita pacificação. Recordo algumas das suas palavras numa possível visita a uma escola primária: Prometo-vos, disse Otto Frank, que continuarei a procurar compreender porque é que o ser humano faz mal ao seu semelhante. O que é a liberdade? Para mim, a liberdade é quando há bondade. Eu só consigo dormir descansado quando, em consciência, sinto que não fiz mal a ninguém.

   Ainda perscrutador, aguças o pensamento por palavras: como conhecer e narrar a experiência do êxtase da autêntica liberdade? Alguém de facto a conhece? (Procuras uma resposta?) Até o génio se questiona sobre a compreensão desta no momento da realização humana. Talvez uma libertação amorosa do inevitável. Um ato duradouro de fluir e fruir a causa. Educacional, ética, artística, familiar ou outra. Assumir-se indivisível, infundível e não catalogável no vasto pantagruel da esfera social que acarreta um forte estigma grupal, por vezes dilacerante, mas que se eleva à consagração do inefável. Como se fosse determinado à nascença, mas reconhecido em cada sinal no trilho sinuoso da conquista de cada ato libertário, de cada ato criativo. Como foi com Beethoven. E com os beethovens em germinação de hoje, os jovens que ainda se atrevem a sonhar com a realização humana. Primeiro a estranheza e a resistência de si. A descrença. A desconfiança. A malquerença. O cinzento. Depois uma saraivada de compassos, andamentos, colcheias, adágios, allegros, prestos…Como um banho de crescendo de sons…um tá-se bem. Agraciados e traduzidos em linguagem primária. Verdadeiro grito de chegada ao colo. A sorver e a soprar. Será um ato divino em estilo clássico? Haverá gritos classificáveis? Escancaram-se para todos os ouvidos. Códigos afetivos em todas as culturas. E aqui entre nós, também multicultural para ouvidos angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos, portugueses, ainda verdes meio adultos? Não hesito em reconsiderar. Sim, as peças clássicas são autênticas narrativas musicais de coragem e predestinação. Sobejamente reais e viscerais. Transculturais. Ocorre o exemplo do músico, com 26 anos, que deixa de ouvir as suas composições geniais. E rompeu com convenções musicais. Criou infinitos. Amaldiçoou e abençoou. Isolou-se. Exasperou-se. Refugiou-se e desprezou o mundo, mas entregou-se à arte sem ressentimentos, aquela que verdadeiramente o habitou a tempo inteiro. A música, o universal idioma de Deus. A respiração suprema de Deus.

   Em melopeia, eleva-se enamorada de todas as formas de arte. Em plena liberdade criadora. Não obstante, reafirma os votos matrimoniais duradouros com a sétima arte, qual Corrigindo Beethoven (2006), vislumbrado como estratégia motivacional exitosa. A excentricidade e genialidade de um músico, corrigido e compreendido por uma jovem compositora, que o ajuda a encontrar a grandeza na surdez que culmina em apoteose rejubilada e aplaudida na sua nona sinfonia, unificadora de todos os sons do mundo. Dos homens e das suas múltiplas expressões musicais. O maior hino à Alegria. À liberdade genuína do reencontro com a génese: o ato dadivoso da criação.

   Dele recordo este espontâneo testemunho:

Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram o meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!

   E eis que por fim humildemente te respondi, lenta e compenetradamente: creio que um dia, todos compreenderemos que só a experiência da arte nos poderá libertar do confinamento da surdez do nosso vulnerável espírito.

                                         

                                                                                 Laranjeiro, 21 de junho de 2012              

                                                                                                        Rosa Duarte

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