CARTA A TI MESMA
Sempre que nos decidimos a escrever, o nosso pensamento age como se
fosse receber uma visita. A escrita requer uma outra atitude, quase cerimonial.
As palavras podem ser as mesmas que o pensamento escolhe, mas o gosto pela
beleza e pela perfeição faz-nos hesitar nessa escolha. Muitas vezes a primeira
versão é a mais autêntica e espontânea, logo a mais fiel à intenção primeira. Mas
as palavras também são ornamentos gráficos e fonéticos que prezamos, por vezes,
tanto ou mais do que aquilo que queremos dizer. Quem escreve, ergue povoações e
cidades de ideias que nem sempre são agradáveis ou habitáveis, mas se são plástica
e/ou musicalmente belas não queremos desperdiçá-las. A autoria poderá ser
inspirada noutros escritos de outros autores, também originais (quem é ou o que
é completamente original?) e assim se formam e recriam as ideias ou as
descobertas num ventre de aluguer que é o ser humano, à espera das honras da
imortalidade e da atenção do outro.
Diz-se que nada é de ninguém; pelos vistos, nem os pensamentos ou as
ideias. Michel Foucault, no seu livro O
que é o Autor? explica que o que lemos não deve ser influenciado por quem
escreve; por isso, deveríamos sempre usar um pseudónimo para cada trabalho. Será
que, na nossa vida, nos limitamos na descoberta pela experiência a favor de
atitudes de deferência cultural ou de decoro e simpatia? Aceitaremos quando
devíamos rejeitar, ou vice-versa, por submissão ou, pelo contrário, por
irreverência emocional?
Talvez não seja muito importante conhecer pessoalmente os escritores,
antes de conhecer a sua obra. Eu diria mesmo que não facilita a nossa relação
com a obra literária. Até porque quem escreve dá o melhor de si, como escritor,
na intimidade do papel ou do computador. António Lobo Antunes diz que tem
dúzias de defeitos, mas que quando escreve é inteiramente honesto. E tem a
coragem de dizer não à vida social para escrever, o que, pessoalmente, me ajuda
a admirá-lo mais porque eu, quando escrevo é quase sempre por coação da vida, o
que me causa, provavelmente, e só provavelmente, mais sofrimento, não a escrita
em si, mas os momentos de solidão, às vezes sentidos como de ressentimento
pessoal.
Quando nos sentimos ligados à obra de alguém, nessa altura é mais fácil
o mútuo consentimento e aceitação nesta relação desigual de figura
pública/cidadão anónimo. É um amor próximo do verdadeiro que aceita a grandeza
do outro.
Ontem fez um ano sobre o dia da morte do escritor José Saramago. Foram
depositadas parte das cinzas deste no jardim em frente à casa dos Bicos, no
campo das Cebolas. Foram entrevistadas algumas pessoas na rua (tenho pena de
não ter estado presente); um velhote com ar modesto respondeu à entrevistadora
que estava ali porque achava que os escritores eram melhores pessoas e tornavam
este mundo melhor. Considerei um pensamento daquele admirador digno de um
escritor.
Gostava de cultivar relações afetivas mais profundas e presentes. Mas a
vida está repleta de, pelo menos aparentes, contradições: quanto mais nos
esforçamos por alcançar o que desejamos, mais nos afastamos. Temos que
trabalhar com dedicação, mas com proporcional desapego, o que requer serenidade
interna. O sucesso alheio muitas vezes incomoda. José Saramago e António Lobo
Antunes falam da inveja numa entrevista como um sentimento que, embora
mesquinho, impulsiona à ação; por vezes, a sua torpeza é o descontrole que leva
à revolta e à violência. O fadista Paulo Bragança esteve cerca de seis anos
fora do país, segundo ele próprio, ausente de tudo e de todos, sem levar
contatos, anonimamente…
O ser humano está em permanente busca de si próprio. Diz Harold Bloom no
seu livro Onde Está a Sabedoria? o
seguinte: Quanto mais prementemente
buscamos o si-próprio verdadeiro dentro de cada um de nós, mais este tende a
furtar-se (p.80). A posse distorce a liberdade de ser. Por isso é que a
sabedoria do pensamento pessoano se vai manifestar de forma particularmente
discernida nos seguintes versos de Álvaro de Campos no poema Tabacaria: Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer/E não tivesse mais
irmandade com as coisas/Senão uma despedida(…). Quando aceitamos
verdadeiramente o despojamento, desistindo da posse mais visceral que é a do
nosso corpo e da nossa mente, numa entrega incondicional ao curso da
existência, então a nossa consciência ganha espaço dentro de nós e expande-se.
Será o momento em que ficamos mais próximos de nós próprios. Por isso as
dificuldades, as crises, são oportunidades de mudança, em que a quase-morte é o
auge dessa consciência, o último apeadeiro, quando não há danos mentais incapacitantes,
naturalmente. As experiências essenciais, invisíveis aos nossos olhos (como nos
diz Antoine Saint Exupéry) são individuais. Aprendemos uns com os outros, mas o
ritmo e a vontade são inevitavelmente individuais.
A força cresce também ou sobretudo na dor da conquista, ou na aceitação
do fracasso ou da perda, da compreensão das atitudes de rejeição do outro. A
fraqueza só entra em nós se não a reconhecermos a tempo. Como os escuteiros
dizem: Sempre alerta!, até para saber receber amigavelmente a morte.
Rosa Duarte
Lisboa, Junho/2011
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