sábado, 28 de julho de 2012

carta a ti mesma


                                                          CARTA A TI MESMA


   Sempre que nos decidimos a escrever, o nosso pensamento age como se fosse receber uma visita. A escrita requer uma outra atitude, quase cerimonial. As palavras podem ser as mesmas que o pensamento escolhe, mas o gosto pela beleza e pela perfeição faz-nos hesitar nessa escolha. Muitas vezes a primeira versão é a mais autêntica e espontânea, logo a mais fiel à intenção primeira. Mas as palavras também são ornamentos gráficos e fonéticos que prezamos, por vezes, tanto ou mais do que aquilo que queremos dizer. Quem escreve, ergue povoações e cidades de ideias que nem sempre são agradáveis ou habitáveis, mas se são plástica e/ou musicalmente belas não queremos desperdiçá-las. A autoria poderá ser inspirada noutros escritos de outros autores, também originais (quem é ou o que é completamente original?) e assim se formam e recriam as ideias ou as descobertas num ventre de aluguer que é o ser humano, à espera das honras da imortalidade e da atenção do outro.

   Diz-se que nada é de ninguém; pelos vistos, nem os pensamentos ou as ideias. Michel Foucault, no seu livro O que é o Autor? explica que o que lemos não deve ser influenciado por quem escreve; por isso, deveríamos sempre usar um pseudónimo para cada trabalho. Será que, na nossa vida, nos limitamos na descoberta pela experiência a favor de atitudes de deferência cultural ou de decoro e simpatia? Aceitaremos quando devíamos rejeitar, ou vice-versa, por submissão ou, pelo contrário, por irreverência emocional?

   Talvez não seja muito importante conhecer pessoalmente os escritores, antes de conhecer a sua obra. Eu diria mesmo que não facilita a nossa relação com a obra literária. Até porque quem escreve dá o melhor de si, como escritor, na intimidade do papel ou do computador. António Lobo Antunes diz que tem dúzias de defeitos, mas que quando escreve é inteiramente honesto. E tem a coragem de dizer não à vida social para escrever, o que, pessoalmente, me ajuda a admirá-lo mais porque eu, quando escrevo é quase sempre por coação da vida, o que me causa, provavelmente, e só provavelmente, mais sofrimento, não a escrita em si, mas os momentos de solidão, às vezes sentidos como de ressentimento pessoal.

   Quando nos sentimos ligados à obra de alguém, nessa altura é mais fácil o mútuo consentimento e aceitação nesta relação desigual de figura pública/cidadão anónimo. É um amor próximo do verdadeiro que aceita a grandeza do outro.

   Ontem fez um ano sobre o dia da morte do escritor José Saramago. Foram depositadas parte das cinzas deste no jardim em frente à casa dos Bicos, no campo das Cebolas. Foram entrevistadas algumas pessoas na rua (tenho pena de não ter estado presente); um velhote com ar modesto respondeu à entrevistadora que estava ali porque achava que os escritores eram melhores pessoas e tornavam este mundo melhor. Considerei um pensamento daquele admirador digno de um escritor.

   Gostava de cultivar relações afetivas mais profundas e presentes. Mas a vida está repleta de, pelo menos aparentes, contradições: quanto mais nos esforçamos por alcançar o que desejamos, mais nos afastamos. Temos que trabalhar com dedicação, mas com proporcional desapego, o que requer serenidade interna. O sucesso alheio muitas vezes incomoda. José Saramago e António Lobo Antunes falam da inveja numa entrevista como um sentimento que, embora mesquinho, impulsiona à ação; por vezes, a sua torpeza é o descontrole que leva à revolta e à violência. O fadista Paulo Bragança esteve cerca de seis anos fora do país, segundo ele próprio, ausente de tudo e de todos, sem levar contatos, anonimamente…

   O ser humano está em permanente busca de si próprio. Diz Harold Bloom no seu livro Onde Está a Sabedoria? o seguinte: Quanto mais prementemente buscamos o si-próprio verdadeiro dentro de cada um de nós, mais este tende a furtar-se (p.80). A posse distorce a liberdade de ser. Por isso é que a sabedoria do pensamento pessoano se vai manifestar de forma particularmente discernida nos seguintes versos de Álvaro de Campos no poema Tabacaria: Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer/E não tivesse mais irmandade com as coisas/Senão uma despedida(…). Quando aceitamos verdadeiramente o despojamento, desistindo da posse mais visceral que é a do nosso corpo e da nossa mente, numa entrega incondicional ao curso da existência, então a nossa consciência ganha espaço dentro de nós e expande-se. Será o momento em que ficamos mais próximos de nós próprios. Por isso as dificuldades, as crises, são oportunidades de mudança, em que a quase-morte é o auge dessa consciência, o último apeadeiro, quando não há danos mentais incapacitantes, naturalmente. As experiências essenciais, invisíveis aos nossos olhos (como nos diz Antoine Saint Exupéry) são individuais. Aprendemos uns com os outros, mas o ritmo e a vontade são inevitavelmente individuais.

   A força cresce também ou sobretudo na dor da conquista, ou na aceitação do fracasso ou da perda, da compreensão das atitudes de rejeição do outro. A fraqueza só entra em nós se não a reconhecermos a tempo. Como os escuteiros dizem: Sempre alerta!, até para saber receber amigavelmente a morte.

                                                                  Rosa Duarte

                                                                 Lisboa, Junho/2011


  

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