Cadê ele?
Para onde foi o Celeiro?
Hoje reduzido a toscos vestígios
no cimento despido da rua Sebastião da Gama, o nosso Celeiro fora outrora uma
casa cheia de trigo dourado, quais jovens alunos que conviviam nos singulares pátios
a céu aberto ou sentados de encontro às ripas de madeira escura das paredes dos
barracões das nossas salas. Com esta alcunha de terra-mãe, a escola secundária
de Corroios nº 2 foi depois rebatizada de Moinho de Maré, por afinidades
etnográficas e históricas, familiarmente acarinhada durante vinte e poucos anos.
Tão discreta nos incaracterísticos subúrbios da margem sul, era, contudo, firme
e ousada na natural modéstia finissecular com honras parentais do santo
cavaleiro, o nobre senhor do mesmo moinho de maré, escudeiro imortalizado pela
história que salvou a nossa nação de uma crise, essa de sucessão, a quem damos
pelo seu recente nome de canonizado São Nuno de Santa Maria.
Assim, a nossa gente pobre, mas
não de espírito, que ia fazendo sobreviver alguns vestígios guerreiros, trabalhou
e fundou nomeadamente um jornaleco, «O Celeiro», que trouxe à nossa humilde morada
algumas alegrias como a vinda do escritor de distinto labor e valor, o sempre
estimado amigo Baptista Bastos. Uma desejada presença no lançamento do nosso
periódico, em fase primária artesanal, que nos brindou com a sua vasta experiência
jornalística e literária. A sua visita foi com orgulho a nossa notícia de destaque
no primeiro número do nosso jornal de escola e cada um se preparou para a inevitável
pergunta do momento: onde estava no 25 de abril?
À velocidade de um pensamento
recordei-me há dias, com alguma comoção (há dias assim), destes momentos do
passado quando escolhi a “Crónica das Palavras” para ler aos meus alunos. Necessariamente
outros alunos, mas com sentimentos conhecidos. Então, noutro tempo e novo
espaço, peguei nas palavras sonoras do Baptista Bastos para refletir sobre a
honra das palavras, a verdade dos factos e as negligências pessoais, a
cumplicidade leviana de uma crítica pedânea, a pobreza lexical confrangedora, a
cor secreta e subtil das palavras e a memória de alguns dos nossos saudosos
mestres da arte da escrita. Como esta sua crónica elevadamente termina com a
ideia de se tratar também de um pretexto para lembrar nomes intemporais da nossa
moderna arte literária, então resolvi fazer deste modesto apontamento um igual pretexto
para o homenagear a ele, Baptista Bastos, que, felizmente, está ainda, graças a
Deus, entre nós vivinho da silva.
E como o agradecimento sentido só
nos engrandece, bichinhos da terra tão pequenos, alacres e sedentos de
deslumbramento, humildemente aproveito aqui para também homenagear todos aqueles
escritores que nos inspiram pela sua sabedoria, graciosidade e humor quando
enlevados, por exemplo, nos lembram que, afinal quanto mais velhos mais futuro
temos ou que o ato de pensar é ouvir apenas com mais força (António Lobo
Antunes no seu piscar de olhos e traje de ganga). Ou quando nos confidenciam
que não sabem escrever sobre tudo, pelo menos por enquanto (risos), mas que as suas ideias são de
humanismo, porque a vida é composta de matizes diferentes, de muitas crises e que
temos, por isso, de manter uma boa relação com a nossa dor (José Luís Peixoto, jovial
no porte e sorriso ladeado de piercings).
Ou quando nos ensinam que, embora a Europa esteja como um barco à deriva, os
seus ideais continuam disseminados pelo mundo inteiro, o que não livra cada nação
de se interrogar a cada passo, quando quer caminhar, e erguer-se dessa
simulação de corpo morto (Eduardo Lourenço). E gratidão a muitos, muitos outros
criativos e pensadores…portugueses e não só…
Já para não falar de diretores e
colunistas, como José Carlos de Vasconcelos e José Matias Alves, incansavelmente
sempre ao serviço do reconhecimento do trabalho pedagógico, artístico e
cultural ao irem descobrindo e concedendo a cada autor ou evento algum espaço
de generosidade pública, porque merecida e encorajadora, e que são exemplo para
muitas instituições do nosso país que precisam de aprender a reconhecer e
reforçar, com os seus meios possíveis obviamente, o esforço dos jovens
empreendedores criativos e inventivos menos apoiados, mas nem por isso menos
dedicados e talentosos. O mundo é grande e a arte é a musa da vida.
Porque não só, mas também de
lamechice vive o homem, é esta a que fica de gratidão da minha pena.
Laranjeiro, 18 de maio de 2012
Rosa Duarte
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