MESAS DE ESPERA
Ainda é cedo, mas aproxima-se o momento de
largar o silêncio ensonado como um casaquinho de malha deixado no banco de trás
do carro. O tempo continua abafado. Chegada ao corredor, abro a porta da sala e
cumprimento os colegas com um sonoro BOM
DIA. O ambiente é uma elaborada pauta com diversas extensões de voz, tenores,
sopranos, de diferentes amplitudes e classificações. A claridade matinal
acompanha o entusiasmo exaltado e o esforço afetivo.
Enquanto aguardo o primeiro toque de entrada,
rendo-me à sobriedade dos temas do dia (ministro das finanças reunido com
partidos, restaurantes à pega com nova taxa do IVA, uma mãe de fracos recursos,
o novo namorado da aluna X, a D. que procura o livro de ponto…). Vou ao cacifo
buscar materiais preparados para entregar. Cada um nos seus preparativos. Há
quem aguarde pela máquina do café, chocolate e afins que aquece com ritmo. O
redondo das távolas alberga braços, malas, conversas, assuntos animados. É um
tráfego de pensamentos privados, pensamentos partilhados, pensamentos em
digestão. De vez em quando sente-se um suspense
cúmplice de quem toma nota. Há sempre olhares mais atentos, jornalísticos. Há os
menos inteirados. Os sonolentos descansam mais uns segundos. Os reservados
viajam nos bastidores da mente. É uma sala de compassos de tempo, de
prolongamentos laborais e contemplações protetoras. Muitas vezes solidárias… A
cada aula, oferece-se o intervalo ao lugar do momento, ou procura-se o ânimo no
banheiro mais próximo, ou um suplemento de energia no piso inferior do
alimento.
Os olhares mobilam sentimentos de alegria balsâmica ou de breves
saudações. Sorrisos abertos, feitos de sonhos e comprometimento. Sorrisos
pintados e tonificados de curiosidade alheia. Lábios agitados de palavras sem cantos.
Vozes difusoras ou sussurros comedidos. Convívio concertado e, por vezes, desconcertante.
Algumas mesas tornam-se isentas de papéis e de correções. Outras com portáteis
e certas reflexões. É uma sala de gente docente. De muita gente, também boa. De
quase todos os lugares ocupados. De preferência não marcados. Há um livro à
espera numa mesa bege vazia. Uma mesa de espera numa sala mobilada. Um livro à
espera de um sinal humano, de um gesto decidido de apropriação ou de simples
carícia de contemplação. Será o meu? Asseado e perfumado, parece adormecido no
regaço do tampo claramente vazio. Livro à espera do dono, expectante no seu saber.
Mantém-se atento, ensaiando uma gracinha. Cintila o título e a foto humanizada.
Simula desconforto para que lhe levantem de surra um pouco da sua capa. Digamos
que tem um olhar de simpatia! Jovem, meio conhecido: Filho de mil homens. Um homem que não se quer às moscas, fotografado
com saquinhos de água agarrados à fatiota no meio da destruição. Feliz capa de
tributo aos Pink Floyd. Na mesa de
espera continua este livro de alguém: metade texto, metade gente. Um
livro-mundo ocupado por histórias e pelo Crisóstomo à procura de um amigo
pequeno para adoptar. É um homem ainda metade pai com sede de um filho que o
complete. Intensa personagem nascida de um progenitor biológico, Valter Hugo, que também é sua Mãe. Acaba
completo nas suas metades de gente e no seu bocado escrito em trilogia por
inteiro: pai e filho de tal Mãe. Uma personagem alojada na cabeça da gente e aguardada
no coração do leitor. Já na sala de aula, o embaixador do autor remexe-se nas
mãos do prof.: - A lição de hoje é sobre
o bem mais precioso: o livro. Composição: cuidados a ter com o outro, folheando-o
todos os dias.
Laranjeiro, 14 de outubro de 2011
Rosa Duarte
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